O impacto da crise do capital no mercado de trabalho global em 2020
Cem Flores – 12.02.2021
Foto: Trabalhadores/as aguardam na fila para receber refeições gratuitas nos EUA. Com a explosão do desemprego em 2020, uma onda de fome se alastrou pelo país. Uma a cada quatro pessoas estão sofrendo de insegurança alimentar.
O ano de 2020 foi marcado por mais uma violenta crise do sistema imperialista mundial. A economia global, que em 2019 já se encaminhava para uma nova recessão, foi fortemente abalada pelos impactos da pandemia do novo coronavírus, detonador e agravante da crise. Além dos impactos imediatos, vários são seus efeitos permanentes, a aprofundar o atual estado depressivo do imperialismo e agravar suas contradições, como demonstrou o texto de Michael Roberts sobre as projeções para 2021. Um desses efeitos permanentes, a ser analisado com muita atenção pelos comunistas pela sua relevância para a luta de classes, será no mercado de trabalho.
A elevação do desemprego e da miséria, a destruição de empregos e a piora no mercado de trabalho são características centrais das crises capitalistas. Como demonstrou Engels em sua genial, e gritantemente atual, análise das classes trabalhadoras na Inglaterra:
“[Nas crises] os salários caem, por causa da concorrência entre os desempregados, da redução do tempo de trabalho e da falta de vendas lucrativas; a miséria se generaliza entre os operários; as eventuais pequenas economias dos indivíduos são rapidamente devoradas; as instituições beneficentes se veem assoberbadas; o imposto para os pobres duplica, triplica e entretanto continua insuficiente; cresce o número de famintos; e de repente toda a massa da população ‘supérflua’ revela sua impressionante magnitude”.
As crises acirram as contradições do sistema capitalista e modificam as condições da luta de classes. Por isso, dissemos recentemente: “as crises são também luta de classes”. A depender da organização e luta proletária, elas podem ser momentos de fortalecimento da nossa classe ou do reforço da burguesia, pela redução dos salários e aumento da exploração – construindo, assim, as bases para a recuperação das taxas de lucro e da acumulação capitalista.
Mas a intensidade e as formas dessas mudanças no mercado de trabalho a partir das crises são variadas ao longo da história e dos países. A crise de 2020 gerou enormes impactos no mercado de trabalho e nas condições de vida das massas trabalhadoras em todo o mundo. Em alguns aspectos, impactos cuja magnitude não possui precedentes históricos.
Um panorama sobre essa devastação se encontra na sétima edição do relatório da OIT “COVID-19 e o mundo do trabalho”, lançado em 25 de janeiro. Esse relatório possui um conjunto de dados atualizados sobre a dramática situação do mercado de trabalho no mundo em 2020.
Trazemos aos/às leitores/as e camaradas alguns dados do relatório da OIT, fundamentais para compreender a situação concreta das classes trabalhadoras no mundo e as condições atuais da luta de classes, assim como fizemos no início de 2020, com o relatório da OIT sobre 2019. Começaremos com uma síntese da visão da OIT daquele ano, para compreender a situação do mercado de trabalho global pré-crise de 2020 e contextualizar os atuais impactos.
O mercado de trabalho global em 2019: enorme desemprego, informalidade e precariedade
Em 2019, a OIT já alertava para um mercado de trabalho global extremamente deteriorado. Para dimensionar tal deterioração, a medida clássica de desemprego era insuficiente. De acordo com essa medida, a taxa de desemprego no mundo seria de 5,4%, ou “apenas” 188 milhões de trabalhadores/as. No entanto, uma massa muito maior de trabalhadores/as estava de fato no desemprego, seja por compor a força de trabalho potencial, seja por insuficiência de horas trabalhadas, mas não era considerada nesses 5,4%. Caso se somasse esse conjunto de trabalhadores/as, compondo assim a taxa de subutilização da força de trabalho mundial, chegaríamos a 13,1%, ou 473 milhões de trabalhadores/as. Quase meio bilhão!
E dentre os/as empregados/as, 61% estavam informais, chegando a 2 bilhões de trabalhadores/as no mundo na informalidade. A OIT lembrava que a informalidade, globalmente, “registra as taxas mais altas de pobreza entre os trabalhadores e um elevado porcentual de pessoas que trabalham por conta própria ou de trabalhadores familiares auxiliares que carecem da proteção adequada”.
Mesmo o setor formal vinha em piora contínua, com um conjunto de reformas trabalhistas e elevação da automação, do trabalho parcial, intermitente, por hora. Esta foi uma das principais expressões da ofensiva burguesa após a grande crise imperialista de 2008, que trouxe mais exploração e pobreza para as classes trabalhadoras.
A OIT projetava, à época “que a escassez de postos de trabalho continue no futuro próximo. A taxa de desemprego mundial se situou em 5,4% em 2019 e não se prevê que haja variação essencial nos próximos dos anos”. Como se vê, uma projeção otimista, mesmo sem considerar a pandemia. Por fim, ela vinculava esse cenário ruim e de baixas expectativas aos protestos que, em vários países, explodiram em 2019 diante do descontentamento das massas trabalhadoras, após anos sucessivos de desemprego, arrocho e piora nas condições de trabalho.
Os impactos da crise de 2020 no mercado de trabalho global
Foi esse mercado de trabalho global que a crise de 2020 encontrou e agravou. Houve um aprofundamento, uma intensificação de tendências anteriores, de alto desemprego e de piora nos empregos e salários.
Como sabemos, a pandemia implicou inúmeras medidas de isolamento e distanciamento social, visando à contenção do vírus. E estes, além dos efeitos típicos de uma recessão (falências, redução de consumo de serviços e mercadorias etc.), foram motivos fundamentais para a elevação do desemprego durante esta crise.
Segundo o novo relatório da OIT, mais de 90% da força de trabalho do mundo em 2020 estava em países com algum tipo de restrição sanitária nos locais de trabalho. Essas restrições foram diminuindo ao longo do ano, mesmo com a pandemia ainda em crescimento, mas alguns setores, intensos em mão de obra, permaneceram fortemente afetados, como é o dos serviços (alimentação, alojamento, cultura, varejo).
A soma dos efeitos das restrições sanitárias e da crise econômica global fez as horas trabalhadas no mundo desabarem. Como resultado, diz a OIT, os mercados de trabalho globais foram interrompidos “em uma escala sem precedentes na história”.
Em 2020, o mundo perdeu quase 9% de horas trabalhadas comparado com o final de 2019. Isso equivale a 255 milhões de empregos com jornada de trabalho semanal de 48h, impacto “aproximadamente quatro vezes maior do que durante a crise financeira global em 2009”. A renda do trabalho caiu quase 4 trilhões de dólares, empurrando milhões para a miséria e elevando as desigualdades, como veremos à frente.
Horas trabalhadas por pessoa na população com idade ativa (15 a 64 anos), no mundo, 2005-20. Gráfico à direita, o ano de 2020 detalhado por trimestre.
A OIT estima que cerca de metade da perda de horas trabalhadas tenha ocorrido por conta do aumento do desemprego e da inatividade (desalento), e a outra metade por redução de jornadas/salários, seja imposta pelos patrões ou por medidas dos estados.
“Em contraste com as crises anteriores, a maioria absoluta das perdas globais de empregos em 2020 se traduziu em aumento da inatividade em vez de aumento do desemprego, levando a um adicional de 81 milhões de pessoas à inatividade ao lado de 33 milhões novos desempregados. Consequentemente, a participação global da força de trabalho taxa caiu 2,2 pontos percentuais devido à crise COVID-19, em comparação com apenas 0,2 pontos percentuais entre 2008 e 2009 como resultado da crise financeira global”. Ou seja, o atual cenário reforça a incapacidade da medida clássica de desemprego em medir o tamanho da deterioração do mercado de trabalho no mundo.
O desalento, o desemprego e a redução de jornadas e salários afetaram diferentemente as regiões do mundo e os setores das classes trabalhadores. No que se refere às regiões, destaca-se o enorme impacto sofrido pelas Américas, como consta no gráfico abaixo.
Decomposição das perdas de horas trabalhadas em mudanças no desemprego, na inatividade e na redução de jornadas, no mundo e por grupo de renda e região, 2020. Azul escuro: desemprego. Azul claro: inatividade. Vermelho: redução ou suspensão de jornada.
Isso reflete o que vimos ao longo do ano, por exemplo, com a explosão de pedidos de seguro-desemprego nos EUA. Nas Américas a região mais atingida foi a América do Sul, com perda 17,7% de horas trabalhadas (comparado 9% na média mundial). Vivemos isso na pele, com mais da metade com população brasileira em idade para trabalho sem estar empregada e o governo sendo forçado a distribuir um auxílio emergencial para milhões de trabalhadores/as.
Dentre os setores das classes trabalhadoras mais afetados, destaca-se a juventude (15-24 anos). O aumento de desemprego e inatividade nessa faixa foi mais do que o dobro comparado ao dos adultos. Segundo a OIT, “esta crise exacerbou o desligamento dos jovens do mercado de trabalho, destacando o risco muito real de uma geração perdida”. A juventude, que já sofre com taxas de desemprego bem acima da média em todo o mundo, também foi a mais afetada com a paralisação ou piora global da educação através do ensino remoto.
Mas também se destacam as mulheres (as mais atingidas pelo aumento do trabalho doméstico) e os empregos mais precários e de menor qualificação como setores especialmente afetados. Como disse Michael Roberts: “a renda para os profissionais mais bem pagos e trabalhadores de escritório, que puderam trabalhar de casa, permaneceram elevados, enquanto os trabalhadores não qualificados, de menores salários, que precisam sair para trabalhar, viram seus empregos desaparecerem. Até 40% daqueles nas faixas de renda mais altas das principais economias conseguiram trabalhar de casa durante a pandemia, mais que o dobro da proporção entre os que ganham menos. Os primeiros não gastaram, e suas poupanças aumentaram enormemente”. Ou seja, de forma geral, esta crise reforçou a desigualdades pré-existentes no mercado de trabalho.
Perspectivas e a luta de classes em 2021
Segundo a OIT, 2021 ainda é de muita incerteza. A pandemia continua e a vacinação em massa não é uma perspectiva de curto prazo para muitos países. As confluências entre pandemia e crise econômica devem continuar, no máximo reduzindo sua intensidade. Sendo assim, é bem provável que não se consiga recuperar as perdas nas horas de trabalhadas de 2020 e os empregos e salários que elas representam. No seu cenário base para 2021, a OIT projeta que estas horas permanecerão 3% abaixo do nível de final de 2019, ou 90 milhões de empregos de 48h semanais a menos em todo o mundo.
Somado aos problemas da falta de recuperação econômica de fato, mesmo com imenso e crescente endividamento estatal, há ainda a perspectiva de perda permanente de vagas por alterações tecnológicas intensificadas pela pandemia. O avanço da automação, da digitalização e da aplicação de inteligência artificial em vários setores da produção e dos serviços paira como ameaça cada vez mais concreta em diversas categorias pelo mundo, inclusive as fortemente afetadas pela atual conjuntura. Discutimos esse assunto em nosso site aqui.
Ou seja, não há perspectiva positiva para as massas trabalhadoras em todo o mundo. O capitalismo aprofunda a tendência de aumento da força produtiva com concomitante substituição de força de trabalho por novas tecnologias; de crises periódicas, cada vez mais globais e graves, com explosões de desemprego e miséria; de aprofundamento das desigualdades.
Diferente do que iludem os reformistas a cada eleição da democracia burguesa, a esperança das classes trabalhadoras encontra-se fora desse sistema de exploração. Solução que é construída nas resistências concretas dessas classes, na união e solidariedade contra as divisões e concorrências entre a massa, nas suas revoltas contra sua dura situação, que hoje ainda se encontram em patamar muito espontâneo e disperso política e ideologicamente. Mas estas podem e devem ser reforçadas com a posição revolucionária, proletária.