Lições do caso Snowden
Por Augusto Tavira
Quando August Thalheimer introduziu o conceito de “cooperação antagônica”, ao analisar a situação política após a Segunda Guerra Mundial, para caracterizar as relações entre as potências imperialistas, tinha em mente, sobretudo, a inquestionável supremacia militar dos Estados Unidos em relação a todas as demais potências capitalistas. Passados quase 70 anos do desfecho da última guerra interimperialista, mesmo o desaparecimento do bloco soviético não modificou o caráter geral do conceito e dessas relações.
No chamado “bloco ocidental” – comandado pelos Estados Unidos e secundado pelas antigas potências imperialistas rebaixadas para a segunda classe desde 1945, como a Grã-Bretanha, a França e os inimigos vencidos do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) – essas antigas potências não têm alternativa a não ser se entender e cooperar com os EUA nos assuntos centrais da política internacional.
O “Caso Snowden” revela a que ponto a cooperação interimperialista é capaz de chegar, quando os interesses da potência-líder são contrariados. Vítima da própria política de terceirização que o capitalismo disseminou por toda parte, para baixar salários e reduzir direitos trabalhistas, o governo dos EUA viu-se contra a parede quando um jovem terceirizado resolveu divulgar os documentos a que tivera acesso sobre a máquina de vigilância mundial das telecomunicações e da internet, construída pelos órgãos de espionagem americanos.
De repente, pela ação corajosa de Snowden, o mundo teve confirmadas suas piores suspeitas: tudo que se conversa pelas redes de telecomunicação ou se escreve utilizando a rede mundial de computadores passa, com a ajuda de empresas gigantes do ramo de tecnologia, pelos filtros da agência americana de inteligência (NSA), tornando realidade o que antes só existia em romances de ficção: o controle total sobre os passos das pessoas físicas e jurídicas e especialmente dos movimentos políticos, em escala mundial.
Assim, a NSA desembolsa milhões de dólares para ressarcir os custos de empresas de tecnologia, como Google, Facebook, Microsoft e Yahoo!, por sua colaboração com o programa de espionagem, afinal patriotismo e desejo de colaborar têm limites e as empresas, coitadas, não podem arcar com essas despesas. Tudo isso veio à luz depois que o jornal britânico “The Guardian” divulgou que uma corte norte-americana declarou inconstitucionais algumas práticas da agência, por violarem a Quarta Emenda da Constituição americana, atingindo a privacidade não apenas de estrangeiros, pois até aí tudo estaria bem, mas também de cidadãos do país.
O mundo soube então que programas especiais, como o “Prism”, “Cimbri”, “Mainway” e “Dishfire” atuam dentro da rede de telecomunicações e na internet para colher informações de forma indiscriminada, abrangendo pessoas físicas, governos, diplomatas, empresas comerciais e tudo mais que tenha relevância política ou econômica no mundo e possa ser utilizado pelo “Grande Irmão”. Soube-se também que os EUA compartilham gentilmente essas informações com os demais componentes do chamado “Five Eyes”, seus irmãozinhos de confiança anglo-saxões (Grã-Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia).
Ciente dos perigos a que se expôs, Snowden procurou refúgio em países que se encontram fora do círculo imediato das potências imperialistas que, sob o comando americano, dão as cartas no mundo. Tanto a China, quanto a Rússia, por terem feito parte do bloco socialista e ainda possuírem um poder militar respeitável, podem exercer uma política no cenário mundial que, ainda que seja meramente defensiva, não é de completa submissão.
E é exatamente de submissão que se trata, quando se avalia o papel de países do centro e da periferia imperialista no exercício da cega obediência aos chefes americanos, nos casos recentes de vazamento de informações secretas. No caso Assange, do Wikileaks, a Grã-Bretanha esteve muito próxima de rasgar todas as convenções diplomáticas e capturar o australiano dentro mesmo da Embaixada do Equador em Londres. A “democrática” Suécia aceitou participar de uma pantomima jurídica, na qual Assange foi acusado de ter cometido estupro naquele país. França, Itália e Espanha fecharam o seu espaço aéreo para a passagem do avião de um chefe de estado, Evo Morales, com o único objetivo de capturar Snowden. O serviço secreto americano, além de ser incapaz de evitar vazamentos, parece que não conta com uma estrutura muito eficiente em Moscou, pois a informação de que Snowden estaria dentro da aeronave se mostrou totalmente falsa, gerando um incidente diplomático e um desgaste com a América Latina, sem nenhum benefício.
As máscaras das “liberdades democráticas”, especialmente da “liberdade de imprensa”, caíram a cada novo episódio do Caso Snowden. Os paladinos dessas liberdades, Estados Unidos e Grã-Bretanha, foram pegos ameaçando de forma truculenta a imprensa e os jornalistas, como no caso do “The Guardian” e do seu correspondente no Brasil, Glenn Greenwald, cujo parceiro teve todo o equipamento e material de reportagem que trazia apreendido e foi mantido por quase 10 horas incomunicável numa sala do Aeroporto de Londres, com base numa lei “antiterrorista” que nada tinha a ver com o caso.
E as “liberdades individuais”? O sacrossanto “direito à privacidade” e o “sigilo de correspondência” deixaram formalmente de existir, desde que a NSA conseguiu os meios para controlar todas as comunicações dentro e fora dos EUA, sem qualquer limite legal, ou com limites tão frágeis que na prática não existem.
Ou seja, quando se trata de preservar os interesses e segredos do centro imperialista, todos os procedimentos são válidos e as constituições são rasgadas sem qualquer contemplação ou remorso. E, assim, a democracia burguesa mostra o seu verdadeiro caráter, de ditadura disfarçada de classe, que não vacila em lançar mão de expedientes de exceção quando o seu domínio é posto em risco.