A isto chegamos! Sobre a manifestação em Lisboa: um fato, duas interpretações

Apresentação

“A onda diretista varre a Europa, mas encontra resistências. Tal como aconteceu no sábado, 11 de janeiro de 2025, em Lisboa, na manifestação de massa contra a repressão policial aos imigrantes. Os dois textos publicados a seguir, de Raquel Varela e de António Barata, são testemunhos e tomadas de posição de uma intelectual e de uma organização de esquerda; referem-se ao mesmo fato porém interpretado com ênfase distinta quanto à participação dos manifestantes e das palavras de ordem assumidas pela maioria.” CVM

 

A manifestação em Lisboa

Raquel VarelaFacebook


A manifestação de ontem merece alguns comentários. Não sou boa de cálculo de gente por metro quadrado mas era bastante compacta e demorei 3 horas a descer da Alameda ao Martim Moniz . Creio que posso afirmar que a maioria era gente mais jovem. Talvez 25 mil pessoas.

As classes empresariais e políticas que dirigem o país testaram o seu projecto de fechar urgência e encostar imigrantes à parede para culpabilizar os trabalhadores pelos estado miserável a que chegámos e tiveram uma resposta. 25 mil.

A parte mais emocionante, além da presença de muitos jovens militantes de grupos à esquerda do PCP e do BE (nestes grupos e movimentos fora destes partidos – agora em crise – formam-se quadros) foi a fila de imigrantes do subcontinente indiano na frente a cantarem “25 de abri sempre” (chorei de alegria).

No tempo da IA, estes homens carregam, como na antiguidade, comida às costas, trabalham 14 horas na agricultura ou 16 a conduzir um carro. Que emocionante ouvir a sua voz a lutar e em movimento.

No seu conjunto a manifestação pode ser interpretada como uma força social para se pedir a queda do governo. De um lado, o governo a governar com repressão policial, do outro quem quer trabalho com direitos e prazer, hospitais abertos e escolas com professores felizes, casas e respeito pela reserva agrícola e ecológica. Nunca estivemos tão mal como hoje – não se discute se vamos a um médico especialista em menos de 2 anos mas se temos uma urgência aberta.

Finamente a comunicação – ao início da manif 30 neonazis e no fim 150 fascistas. Tiveram todo o tempo de Antena que queriam. Os mesmos empresários que financiam estas organizações e que querem pagar aos imigrantes 30% menos, financiam os

Partidos que perseguem os imigrantes e – por um passe de mágica -conseguem definir o que é a agenda mediática, colocando um grupo de jagunços como pessoas passíveis de respeitabilidade ou ideais.

Sobre a linha política da manifestação. É a linha dos “direitos humanos” abraçada pelo PS, Livre, Bloco, PCP, PSD e Iniciativa Liberal – somos todos iguais, devemos respeitar-nos, falta mão de obra ao país.

Na verdade, para se fazer a ponte com os trabalhadores portugueses e tirar o chão aos fascistas é preciso mais – é preciso uma política de solidariedade radical que recorde que os imigrantes ganham 30% menos e que por isso pressionam os salários dos que já cá estavam para baixo ( portugueses , brasileiros, africanos ). A questão é que qualquer aumento do contigente de força de trabalho faz os salários cair. A menos que haja lutas comuns. A única forma de evitar isto é criar sindicatos, comissões de trabalhadores que juntem todos (migrantes ou não) e exija redução do horário de trabalho para todos e igualdade salarial com direitos. Como aliás um manifestante levava em cartaz “Não somos só mão-de-obra”.

No mundo ninguém devia ser mão-de-obra. Mas gente. Com trabalho prazeiroso, tempo para amar, casa, alimentação saudável, conhecimento e arte. Falta-nos uma política que responda à extrema direita não só com o elementar – direitos humanos na livre circulação de mão-de-obra – mas com a humanidade plena, não podemos continuar a aceitar salários miseráveis e salários distintos para as mesmas funções. Sem luta comum organizada nos locais de trabalho não haverá direitos humanos.

À frente da manif não deveria estar um cartaz a dizer que somos todos iguais. Isso é elementar e defensivo. Mas um cartaz a dizer “Redução do horário de trabalho e aumento salarial para todos os trabalhadores”. Porque só assim seremos todos iguais. É preciso romper com o liberalismo humanitário – que faz crescer o fascismo – e a ele opor o socialismo original – uma humanidade igual e emancipada, solidária. Muito para além das palavras. Onde ninguém vale menos 30%.

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A ISTO CHEGAMOS!

António BarataBandeira Vermelha


Porque é que uma manifestação que juntou dezenas de milhar de pessoas não produziu qualquer efeito ou sobressalto político. Porque é que os responsáveis pela manifestação desejaram e aceitaram como “normal” o aproveitamento político dos partidos da “esquerda democrática” que tudo fizeram para que o protesto se limitasse ao que pequena, média e grande burguesia entendem por liberdade, democracia e Estado de direito.

A manifestação de dia 11, de repúdio pelo tipo de intervenção policial e ela ter tido por alvo uma comunidade imigrante específica, reuniu largos milhares de pessoas e a totalidade dos partidos à esquerda do PSD, que nela se fizeram representar, principalmente pelos putativos candidatos às próximas eleições presidencial e autárquicas, para fazerem o habitual “boneco” para os telejornais. Alheios a estes aproveitamentos políticos, os imigrantes oriundos do hindustão (os visados pela rusga policial que motivou o protesto) estiveram em grande número, sendo o sector mais politicamente consciente da manifestação. Apesar da sua presença marcante e significativa e de ter sido deles que partiram as palavras de ordem mais radicais e substantivas – ilegal é o capital, liberdade e justiça, ninguém é ilegal – umas gritadas em inglês, outras nas línguas hindustânicas e português, eles foram ignorados pela comunicação social (tal como o foram os organizadores da manifestação) que só teve olhos e ouvidos para as “personalidades” dos partidos. O resto dos manifestantes, os portugueses e outros estrangeiros, limitaram-se a conversar ou a de vez em quando gritar as vazias palavras de ordem do costume – o povo unido jamais será vencido, fascismo nunca mais, 25 de Abril sempre fascismo nunca mais, estamos juntos, somos fortes. O que não impediu que, ao passar pela esquadra de polícia no Martin Moniz, a cabeça da manifestação, onde se concentrava boa parte dos imigrantes, tenha brindado a PSP com uma tremenda vaia.

 

INDIGNAÇÃO IMPOTENTE

Mas a grande questão é a de saber porque é que uma manifestação que juntou dezenas de milhar de pessoas não beliscou o poder nem produziu qualquer efeito ou sobressalto político. Porque é que os responsáveis pela manifestação desejaram e aceitaram como “normal” o aproveitamento político dos partidos da “esquerda democrática” que tudo fizeram para que o protesto se limitasse ao que pequena, média e grande burguesia entendem por liberdade, democracia e Estado de direito. Porque não se lançaram palavras de ordem nem se fez nenhuma intervenção que, como se exigia, denunciassem e afrontasse a sua ordem democrática e o seu aparelho repressivo, dando voz e substância ao repúdio dos milhares de manifestantes?

Com o seu silêncio, os organizadores do protesto deixaram que o PS, PCP, BE, Livre e PAN o moldassem segundo os seus cálculos e interesses políticos e se tornassem os reais porta-vozes da manifestação, fazendo dela uma espécie de “desabafo” impotente e não uma demonstração inequívoca de raiva contra a injustiça, o racismo, a violência policial, a farsa da justiça e do Estado de Direito e, na circunstância, a lógica securitária fascizante perseguida pelo actual governo.

 

UMA ESQUERDA POUCO À ESQUERDA

Com a sua omissão, a esquerda democrática, parlamentar, tal como os organizadores “oficiais” do protesto, deixaram que o debate político se realizasse em torno das realidades alternativas inventadas pela extrema-direita (com a conivência da direita democrática) e se reduzisse a saber (como o Chega quis) se a manifestação era ou não contra a polícia, se temos um problema de segurança, imigração descontrolada e criminosa. E que em consequência disso se tenha gerado uma bafienta unanimidade nacional sobre o papel insubstituível e bondoso das polícias na manutenção da ordem pública e democrática, das liberdades e do Estado de direito, a necessidade de mais segurança (de proximidade, segundo a esquerda e o PS, “musculada” segundo o governo e a extrema-direita) e de manter com rédea curta os imigrantes para que o país continue a ser “seguro”, produtivo e atrativo aos investidores. E assim, de uma penada, a infiltração dos órgãos repressivos pela extrema-direita; os recorrentes espancamentos e assassinatos de pessoas negras pelas forças de segurança; os assassinatos de Ihor Homeniuk e Odair Moniz (só para falar destes); as torturas na esquadra da PSP na Reboleira e outras; o recorrente abuso a que são sujeitos os pobres, os ciganos, os negros e brasileiros que vivem nos ”bairros problemáticos”, onde o encostar à parede é a norma (a diferença, a que não estávamos habituados, foi o de isso agora ter sido feito no centro da cidade e fotografado); o habitual recurso à mentira por parte da PSP para defender os seus (veja-se o desmentido da PJ sobre a descrição das circunstâncias que levaram à morte de Odair, feita pela PSP); a verborreia racista e nazi vomitada por membros dos corpos repressivos nas redes sociais; a benevolência e a compreensão dos tribunais param com os polícias que vão a julgamento acusados de crimes e abusos; a impunidade dos crimes de “colarinho branco”; a manipulação da justiça pelo Ministério Público por via das “fugas”, ao ponto do “segredo de justiça” ser uma farsa; os maus-tratos e abuso praticados pelas polícias que controlam as fronteiras, cometidos contra os oriundos dos países asiáticos, africanos e da américa do sul; as investigações intermináveis e os mega-processos que garantem a impunidade dos ricos, etc., é como se não existissem. Mas sobre tudo isto, a “nossa” esquerda nada disse, no preciso momento em que era imperioso dizê-lo, recordando que o Estado de direito, a democracia, a liberdade e o acesso à justiça varia de acordo com o poder económico e político de cada um. Ou seja, cada um tem a liberdade, igualdade e o bom-nome que consegue comprar e os preconceitos permitirem.

 

A REBOQUE DA EXTREMA-DIREITA

O actual quadro político-partidário caracteriza-se por uma governação sem rumo político e pelo vazio de alternativas. O país segue à deriva, ao sabor das determinações da EU, da sua deriva fascizante e belicista – e da agenda do Chega. Pelo que tanto o estado comatoso das “esquerdas” que temos como os rumos que o país está a seguir não são um exclusivo de Portugal.


Neste contexto, e elucidativo da instrumentalização do protesto pelo PS e pelos partidos da esquerda ordeira, e da menoridade política que os caraterizam, é o facto de todos eles aceitarem esgrimir as suas razões nos termos imposto pelo Chega – ou seja, como acima se disse, saber se a manifestação era ou não contra a polícia, a criminalização e a suposta impunidade dos imigrantes. Prisioneiros desta lógica, sem uma visão alternativa de sociedade à dos ricos e poderosos (mesmo os que se dizem socialistas), os promotores e toda a oposição juraram que esta não era contra a polícia, mas pelos direitos dos imigrantes, que era contra a xenofobia e o racismo e a instrumentalização das polícias pelo governo, mas a favor de uma polícia protectora dos cidadãos independentemente da cor, origem, credo ou condição social destes… e por aí fora.
Como se a polícias não fossem um órgão repressivo defensor da propriedade privada dos ricos e poderosos, cuja razão de ser é garantir e defender a ordem burguesa, a prevalência da democracia do capital sobre a do trabalho. Será que alguém tem conhecimento de um único caso em que as polícias se tenham posto ao lado dos trabalhadores quando estes reivindicam aquilo a que têm direito, mesmo quando os tribunais decidem contra os patrões e estes ignoram as decisões judiciais?
Colocada a discussão nos termos impostos pelo Chega e a extrema-direita europeia, numa lógica de suposta confrontação entre extremos inimigos da democracia, das liberdades e da harmonia entre povos, que convenientemente mete no mesmo saco fascistas e esquerdas, veio o governo agora dizer que é ele o elemento moderador e pacificador da sociedade, como se não andasse num contínuo namoro ao Chega e a sua governação a convergir com a da extrema-direita europeia e nacional. Como se o exercício da democracia se limitasse ao acto de ir votar de quatro em quatro anos e não se fizesse também, dia-a-dia nas ruas e nos locais de trabalho.

Esta fantasia de uma direita pacificadora e equidistante dos extremos foi de imediato apadrinhada pela comunicação social que tratou com igual destaque a manifestação antifascista, com largos milhares de pessoas, e os ajuntamentos fascistoides, que não juntaram mais que duas ou três centenas. Como se tivessem a mesma relevância, peso, significado político e social uma manifestação de dezenas de milhares de pessoas e um ajuntamento de pouco mais que uma centena. E assim falaram de duas manifestações, quando só houve uma (o próprio Chega, à cautela e escaldado pelo fracasso da última contra manifestação, chamou-lhe “vigília”). E não contente, fez desfilar – em particular a TVI, NOW e CM uma série de inqualificáveis comentadores e analistas, descobertos não se sabe em que esgoto – que querendo fazer de nós parvos se desdobravam em imbecis malabarismo retóricos para defenderem com toda a desfaçatez os ponto de vista da extrema-direita e nos informarem que quem afirmasse o contrário “nada percebia de segurança”.

De qualquer maneira, em termos de eficácia comunicacional o que marcou, por via dos favores de uma comunicação social sempre “ávida de sangue” e de “sensacionalismo”, foi o discurso por ela amplificado do André Ventura/Chega, que foi claro e incisivo na sua catilinária securitária, racista, anti-imigrantes e anti esquerda, face a um vazio da esquerda que nada disse, ou quando disse, teve todo o cuidado em preservar o bom nome a e imagem democrática das instituições da república, em não beliscar a polícia, o sistema repressivo, o racismo e a xenofobia institucional.

A isto chegámos!

 

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