Fatos & Crítica 50: Corte de gastos, eleições, Venezuela e perspectivas para os trabalhadores

 

Corte de gastos às custas de quem?

A grande mídia empresarial está empenhada há algum tempo numa campanha virulenta em favor do chamado “corte de gastos” do governo federal. Todos os dias seus jornais e telejornais martelam na cabeça da audiência que o governo não pode gastar mais do que arrecada e que medidas, mesmo que “dolorosas”, têm que ser imediatamente colocadas em prática. Reverberando os interesses da classe dominante – em especial de sua fração hegemônica, o capital financeiro – mostram-se preocupados com a elevação da dívida pública e com a capacidade de o governo honrar o pontual pagamento dos juros.

Algum inocente poderia sugerir que uma das medidas que colaborariam para o equilíbrio das contas públicas seria o fim da desoneração fiscal para as grandes empresas de comunicação. Atualmente, elas recolhem menos impostos sob a falácia de serem grandes empregadoras de mão de obra. Mas é evidente que, para elas, o fim desse benefício fiscal está totalmente fora de questão.

O que os órgãos da imprensa burguesa têm em mente quando falam de “medidas dolorosas” diz respeito àquelas cujo peso será descarregado exclusivamente nas costas dos trabalhadores. E nesse aspecto, a mão pesada da burguesia não tem limites: defendem o fim da aplicação do minguado aumento real do salário-mínimo aos benefícios previdenciários e ao benefício de prestação continuada (BPC), aquele destinado a pessoas de baixa renda idosas ou portadoras de deficiência.

Propõem também a abolição ou restrição do abono salarial do PIS/PASEP, ou seja, o auxílio anual de um salário-mínimo dado para todos os trabalhadores que recebem mensalmente menos de dois salários-mínimos. Além disso, encontra-se no rol das “medidas dolorosas” a proposta de retirar das mãos dos trabalhadores demitidos sem justa causa a multa de 40% do FGTS, destinando os recursos para o pagamento do seguro-desemprego.

E se tudo isso não bastasse, o “corte de gastos” defendido pelo capital financeiro prevê liquidar com os mínimos constitucionais para as despesas do governo federal com saúde (15% da receita líquida de impostos) e educação (18%), ao fixar um crescimento real máximo dessas despesas em 2,5% ao ano.

Tamanha investida contra os direitos sociais dos trabalhadores deveria ter sido objeto de uma campanha de denúncia por parte das centrais sindicais, de forma a preparar uma forte mobilização contra essas medidas. Infelizmente, as centrais estão comprometidas com o governo e as manifestações de repúdio ao “corte de gastos” às expensas dos trabalhadores se restringem a pequenas notas de protesto de representações sindicais isoladas.

As centrais sindicais acham que serão capazes de excluir as medidas mais aberrantes em conchavos de gabinete com os ministros das áreas sociais, mas o fato é que os governos petistas, sempre que pressionados a optar entre as exigências da burguesia e a defesa dos interesses dos trabalhadores, acabam por decidir pelas primeiras.

Curiosamente, enquanto os arautos da classe dominante se esforçavam por encontrar fórmulas para despejar o peso do ajuste das contas públicas sobre as costas dos trabalhadores, a Câmara dos Deputados rechaçou em 30 de outubro a emenda que regulamentaria na Reforma Tributária o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), a ser cobrado daqueles com patrimônio superior a R$ 10 milhões.

Apesar de o imposto estar previsto desde 1988 na Constituição Federal, o resultado da votação revelou mais uma vez, de forma transparente, a natureza de classe do parlamento brasileiro: com 262 votos contrários e 136 a favor, o IGF foi sumariamente rejeitado. Mas isso não é novidade. Em 36 anos, mais de vinte projetos de Lei Complementar prevendo o IGF tramitaram na Câmara dos Deputados e no Senado, sem qualquer sucesso.

Fica evidente que a previsão do IGF na Constituição foi uma mera declaração de intenções. Sua regulamentação está fadada a ser reprovada reiteradamente, pois é contrária aos interesses gerais da classe burguesa e aos interesses particulares de seus representantes no parlamento, os deputados e senadores.

 

Tragédia eleitoral

Os partidos de direita que participam do governo Lula e que são indevidamente chamados de “Centrão” (PSD, MDB, União Brasil, PP e Republicanos) foram os grandes vencedores das eleições municipais de 2024. Em conjunto, conquistaram 63,5% das prefeituras do país e 65,4% daquelas situadas em capitais, entre as quais se destacam São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

Os seus métodos eleitorais são os tradicionais: exercício do clientelismo, do voto de cabresto e da compra pura e simples de votos, agora muito facilitada pelo uso dos recursos públicos instituídos pelas emendas parlamentares, que injetam dinheiro nas prefeituras sem qualquer tipo de controle ou fiscalização.

A extrema direita agrupada no partido de Bolsonaro (PL) conquistou 517 prefeituras (9,3% do total), sendo que 4 em capitais. Perdeu o segundo turno em 15 das 22 cidades nas quais concorreu, porém saíram de suas fileiras os vereadores mais votados em São Paulo (um “influenciador digital”) e no Rio de Janeiro (um dos filhos de Bolsonaro). Em São Paulo, seu candidato oficial (Nunes, do MDB) quase foi atropelado por Pablo Marçal, outro “influenciador” que foi capaz de atrair parte significativa do eleitorado de extrema direita e colocar-se como alternativa a Bolsonaro nas eleições presidenciais.

A extrema direita utiliza os mesmos métodos fisiológicos do “Centrão” para conseguir votos, mas também lança mão dos venenos ideológicos disseminados pelos “influenciadores digitais”, pelos pastores neopentecostais e pelos meios de comunicação burgueses, no sentido de promover à exaustão a ideia de que o esforço individual é capaz de superar a miséria. A ideologia do “empreendedorismo”, por exemplo, procura transformar em virtude o penoso exercício de atividades informais, por parte dos trabalhadores vitimados pelo desemprego.

Se os resultados eleitorais podem ser considerados excelentes para o “Centrão” e razoáveis para a extrema direita, para a esquerda institucional revelaram-se uma verdadeira catástrofe. O PT elegeu apenas 252 prefeitos (4,5% do total), sendo apenas um numa capital (Fortaleza). Entre as cidades mais importantes, conquistou as prefeituras de Juiz de Fora, Contagem, Pelotas, Camaçari e Mauá. No Estado de São Paulo, foram apenas quatro cidades. Já o PSB conquistou 312 prefeituras (5,6%) e apenas uma capital (Recife).

Outro ponto a destacar é o elevado nível de abstenção observado nas eleições para o segundo turno nacionalmente (29,26%). No ano 2000 esse índice já era de 16,2%, mas foi crescendo gradativamente nas sucessivas eleições municipais. Em São Paulo, onde se esperava uma disputa acirrada entre o candidato do “Centrão”, apoiado pelo bolsonarismo, e o candidato do PSOL (Boulos, apoiado pelo PT), 31,54% dos eleitores da cidade decidiram simplesmente não comparecer à votação. Em Porto Alegre, com uma “polarização” semelhante, a abstenção atingiu o recorde de 34,83%.

O resultado dessa indiferença em relação à eleição, num país de voto obrigatório, é que em São Paulo e Belo Horizonte, por exemplo, o número de eleitores que decidiram não ir à votação, somado aos que votaram nulo ou em branco, acabou sendo superior aos votos obtidos pelo candidato eleito em cada cidade.

A que se deve esse “desengajamento cívico”? As causas podem ser variadas, mas certamente pesa o descrédito de que a eleição de vereadores e prefeitos possa ter qualquer efeito significativo para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores, que constituem a imensa maioria da população.

A extrema direita tem sido capaz de capitalizar a insatisfação antissistema das massas, aqui e em outras partes do mundo, criando ilusões e bodes expiatórios diversos. Mas a esquerda institucional se abstém de canalizar a insatisfação social para uma crítica ao sistema capitalista, o grande responsável pela perpetuação das péssimas condições em que vivem os trabalhadores no país. Também tem sido incapaz de apelar e contribuir para a auto-organização nos locais de trabalho e moradia, como condição fundamental para que possam pesar na luta política.

Vencer a qualquer custo, aliando-se com quem quer que seja, despolitizar a campanha, participar de sabatina com o candidato da extrema direita, como fez Boulos em São Paulo, na esperança de conseguir algum voto entre seus seguidores, tudo isso contribui para a derrota, o descrédito e a desmoralização.

Enquanto isso, um candidato a vereador pelo PSOL, Rick Azevedo, que recebeu a maior votação de seu partido no Rio de Janeiro, apontou para um caminho diferente. Praticamente sem verbas partidárias, ele usou as redes sociais para denunciar a tristeza de seu dia a dia e a impossibilidade de viver plenamente, por conta de sua condição de escravo assalariado. Seu lamento sincero recebeu a solidariedade de outros na mesma situação, sob a forma de votos. Mas não parou por aí. O movimento “Vida além do Trabalho”, por ele fundado, apresentou recentemente na Câmara dos Deputados um projeto de emenda constitucional (PEC) para a redução da jornada de trabalho para 36 horas, sem redução salarial.

 

Veto à entrada da Venezuela no BRICS

O governo Lula é sustentado por uma coligação política de partidos burgueses de centro-direita e atende em última instância aos interesses da classe dominante, especialmente do capital financeiro. As políticas de austeridade, como o “arcabouço fiscal”, são a marca indelével desse caráter burguês.

Já no plano internacional, o governo vinha praticando uma política externa “independente” em relação ao imperialismo americano, ao condenar Israel pelo genocídio em Gaza e ao tentar “mediar” com a China um acordo entre a Rússia e a Ucrânia. Faz parte das tradições do Itamaraty manter-se equidistante dos interesses imperialistas, de forma a barganhar alguma vantagem de algum dos lados.

Mas as limitações dessa “independência” acabam se revelando de tempos em tempos. Devemos lembrar que foi no primeiro governo Lula que o Brasil foi chamado para participar de uma “missão de paz” no Haiti, como uma espécie de gendarme a serviço do imperialismo americano na América Latina. No governo Bolsonaro houve até a disposição de participar de uma invasão da Venezuela a partir de Roraima, mas a aventura não foi adiante.

No governo atual, o Brasil se arvorou na posição inusitada de “fiador” das eleições presidenciais na Venezuela e, ao não ter tido acesso às correspondentes atas eleitorais, colocou sob suspeição os seus resultados. Caindo em outra armadilha, aceitou se responsabilizar pela administração da embaixada argentina em Caracas, que abrigava uma penca de refugiados políticos de extrema direita.

Como a Venezuela não apresentou as atas eleitorais exigidas, nem forneceu salvo-condutos para os refugiados sob sua custódia, o Brasil se sentiu desprestigiado e manifestou “quebra de confiança” em relação ao governo Maduro. Em atitude retaliatória, vetou a admissão da Venezuela como país parceiro do BRICS, na reunião realizada em Kazan no mês de outubro.

A Venezuela não é um país socialista, nem mesmo é possível admitir que haja ali um governo de transição, ou seja, um governo em que os trabalhadores estejam no poder, mas ainda não tenham consciência da necessidade de instituir a ditadura do proletariado.

Porém, ainda que predominem na Venezuela as relações de produção capitalistas, que uma fração bolivariana da burguesia exerça a hegemonia política e que os trabalhadores estejam afastados do exercício do poder, é inegável que os governos de Chávez e Maduro adotaram uma posição anti-imperialista e que sofreram por isso graves consequências, sob a forma de drásticas sanções econômicas.

Nessas condições, o veto brasileiro à entrada da Venezuela no BRICS é mesquinho e criminoso, pois cria obstáculos para o acesso do país a mercados e créditos que poderiam aliviar as sanções que tanto penalizam a população venezuelana. O veto só pode ser entendido como mais um meio de pressão política para que o governo Maduro entregue o poder à extrema direita, representante dos interesses imperialistas no país. O cumprimento desse triste papel pelo governo Lula extingue definitivamente qualquer veleidade de ver-se caracterizado, ainda que apenas nas relações exteriores, no campo da esquerda.

 

As perspectivas para os trabalhadores

O “corte de gastos” imposto pelo governo, conforme analisado na primeira parte do texto, ataca a sobrevivência das classes trabalhadoras, via diminuição da renda e do investimento em políticas sociais. Como temos apontado em nossos boletins, a aposta nas eleições (municipais, estaduais e nacionais) e em “salvadores da pátria” (sejam políticos ou sindicalistas) são esperanças ilusórias que só retardam o desenvolvimento político da classe trabalhadora no Brasil.

O único caminho para a classe trabalhadora é a mobilização e luta a partir dos locais de trabalho. Neles, os trabalhadores seguem sendo explorados para a produção da mais-valia, adoecendo e morrendo por acidentes e doenças do trabalho, mas também seguem resistindo. Nesse sentido, citamos três movimentos ocorridos no último período.

Em primeiro lugar, a greve dos trabalhadores terceirizados da REFAP em Canoas (RS) a partir do final de setembro de 2024, reivindicando isonomia salarial e aumento no vale-alimentação. Segundo os relatos, cerca de 90% dos trabalhadores operacionais da REFAP são terceirizados, e o salário praticado pela refinaria está entre os piores do país.

Em segundo lugar, a greve dos trabalhadores de três empresas terceirizadas da Transpetro, no Rio de Janeiro, a partir de finais de outubro de 2024, com apoio dos trabalhadores efetivos. As reivindicações incluem a luta por isonomia e piso salarial e aumento do efetivo de trabalhadores. Vale a leitura da fala de um diretor do SindiPetro-RJ a respeito da greve:

Os efetivos lutam contra a falta de pessoal que coloca as unidades em risco, aumentam os acidentes, adoecem os trabalhadores e lutam pela recomposição de seu efetivo e em solidariedade com os terceirizados. Nessa luta também fica muito patente a denúncia feita pelos trabalhadores e pelo SindiPetro-RJ de que a Petrobrás, mesmo passados dois anos de governo Lula, deixa intacta a reforma trabalhista, o que significa que tem trabalhadores na Transpetro com contrato intermitente, um nível de precarização do trabalho inaceitável e escandaloso em se tratando da maior empresa do país. Na prática, tudo continua organizado para a empresa obter maiores lucros e dividendos para os acionistas estrangeiros.

Por fim, cabe mencionar a redução na jornada de trabalho em algumas empresas da região de Campinas, SP que praticavam jornadas superiores a 40 horas semanais, conquistadas pela mobilização dos trabalhadores durante a campanha salarial entre setembro e outubro de 2024 (“40 anos 40 horas”). Embora restrita a algumas empresas e ainda insuficiente, sem conseguir uma redução significativa da jornada (abaixo das 40 horas), trata-se, como apontado em boletim anterior, de bandeira de interesse de toda a classe trabalhadora e que traz à tona a contradição fundamental entre trabalho e capital.

O surgimento do movimento “Vida além do Trabalho”, anteriormente referido, revela que a luta pela redução da jornada de trabalho e contra a jornada 6 x 1 não está circunscrita apenas a algumas categorias mais organizadas dos trabalhadores, como os metalúrgicos de Campinas. Ela tem condições de atrair e mobilizar trabalhadores de norte a sul do país, abrangendo todos os ramos de atividade econômica. Entretanto, apenas as mobilizações dos trabalhadores serão capazes de enfrentar a feroz resistência dos patrões e de seus representantes no parlamento.

Coletivo do CVM – 12/11/2024

Leia em PDF: CADERNO F&C 50

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