Solidariedade internacional, antimilitarismo e memória social dos trabalhadores
Eduardo Stotz
As manifestações estudantis nos campus universitários dos EUA contra a guerra de aniquilação dos palestinos por Israel, em curso na Faixa de Gaza, trouxeram de volta o ativismo antimilitarista característico da época da luta contra a Guerra do Vietnã.
Registre-se que a ajuda militar estadunidense a Israel vem de longe, transformando-o em sua “ponta de lança” nuclear no Oriente Médio. No ultimo ano do governo de Barak Obama, em 2016, foi estabelecido o valor de US$38 bilhões a ser transferido em 10 anos, sendo que 3,3 bilhões destinados a equipamentos militares comprados a empresas americanas. A bomba MK-84, com peso de 900 kg fabricada nos Estados Unidos pela General Dynamics, tem sido usada massivamente contra a população civil em Gaza. Com o apelido de “Martelo” devido a seu poder destrutivo (pode formar crateras com 15,2 m de largura e 11 m de profundidade e perfurar 380 mm de metal ou 3,3 m de concreto, dependendo da altura que for lançada), começou a ser usada na Guerra do Vietnã (O Globo, 14.04.24: Empresas dos EUA lucram com a guerra em Gaza, p. 21; Wikipedia, Mark 84).
Esses valores estão subestimados. Como Labor Notes aponta em recente artigo, apenas “em 2021, o Departamento de Defesa gastou 7,4 mil milhões de dólares em investigação nas universidades dos EUA.” Nesta matéria fica claro que, junto com o movimento estudantil, está surgindo outro, capaz de conquistar, nas universidades norte-americanas, o apoio de pesquisadores contra o esquema industrial-militar e ao próprio Estado no centro do país hegemônico do imperialismo.
É importante ressaltar que a construção da solidariedade internacional se expressa de diferentes formas, encontrando apoio entre os portuários de diferentes países, como ocorreu recentemente no envio de armamentos a Israel e mesmo em greves de cunho econômico, a exemplo do bloqueio à Tesla na Suécia. Mas também se dá em processos menos visíveis e passíveis de identificação pública, como será relatado a seguir em narrativa extraída do livro “O tempo no Planetário e outros ensaios” (Edição do Autor, 2002, 2008):
OBSERVAR, ENTENDER
Em novembro de 1980, uma equipe da Carta Arqueológica do Algarve identificou um extenso povoado num lugar denominado Vale do Boto. Apesar da indiferença oficial, os arqueólogos conseguiram recursos mínimos e o adiamento, por um ano, do plantio da vinha que, por meio da destruição de um secular olival e da remoção de centenas de pedras emparelhadas e fragmentos de cerâmica, conduzira à descoberta. As escavações e os estudos permitiram salvar para a História estes traços fósseis no sítio do Vale do Boto, em Olhos de São Bartolomeu de Castro Marim, traços identificados como de origem árabe-medieval.
Dentre as conclusões, vale a pena destacar a suposição de ter havido uma ocupação centrada em pleno período muçulmano, entre os séculos IX e XI, período do califado e das taifas. Referem-se os pesquisadores, ainda, à extrema pobreza desta ocupação. Contra a opinião de alguns, seria necessário prosseguir os trabalhos. Eles afirmaram, em apoio a esta assertiva:
É que, mais que as opulentas cidades, onde cresceu e se extinguiu uma brilhante civilização, nos interessam esses humildes lugarejos, onde se forjou toda uma história agrária que está na gênese da nossa própria.
Em apêndice ao artigo [1] , os arqueólogos fazem ainda referência a uma história recolhida entre trabalhadores rurais e pescadores da região, a um primeiro olhar pouco crível, mas de registro indispensável, repassada a eles por intermédio de Augusto Cavaco, proprietário do Vale do Boto, entretanto falecido; versões idênticas foram posteriormente recolhidas.
A história é a seguinte:
Trabalhadores portugueses que haviam migrado para Marrocos, ao se identificarem como provenientes da região do Vale do Boto, em Castro Marim, ouviram repetidas vezes os marroquinos lhes dizerem ser aquele o lugar de uma das suas antigas cidades, de onde, em épocas remotas, teriam fugido, perseguidos pelos cristãos. A frequência com que ouvimos esta história ser contada por pessoas sem qualquer contato entre si, justifica que a mencionemos.
Eduardo Stotz
[1] Helena Catarino, Ana Margarida Arruda e Victor Gonçalves. Vale do Boto: escavações de 1981 no complexo árabe/medieval. Clio, revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, vol. 3, 1981.
Imagem de capa: United Auto Workers Local 4811