Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 8]

Bernardo Kocher
Prof.  História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense
Publicado no Opera Mundi em 2 de julho de 2024.

Netanyahu representa a corrente que defende uma dimensão muito clara de que o que de fato interessa, não é o Estado sionista atual, mas o “Grande Israel”

– Isto é mera destruição, não um Nakba.
  Ryad al-Sheik Ali (cidadão palestino desalojado)

– O Nakba de 2023-2024 foi planejado contra o povo palestino há muitos anos. No entanto, a oportunidade surgiu agora, intencionalmente ou não, para um Nakba ainda maior do que em 1948. E sua extensão terá repercussões por um prazo ainda maior.
  Atef Shakfa (psicólogo palestino)

Tendo decorrido mais de um mês desde o início da invasão de Rafah e quase nove meses desde o início do massacre do povo palestino na Faixa de Gaza, podemos agora, com maior clareza, esmiuçar o sentido e consequências da política social genocida sionista.

Era inevitável que os primeiros indícios de desgaste do sionismo interno (e suas formas de compensá-lo) começassem a se apresentar perante a opinião pública, já que a violência praticada não se viabilizou sem uma grande dose de rompimento de regras básicas de convívio social. Um stress político multifacetado está em curso no interior do Estado sionista, apontando ao esgotamento da “guerra pela guerra” contra o povo palestino. Muitos fatos indicam a possibilidade de uma crise política futura, já que uma declaração formal de vitória pelos invasores não foi feita e não há perspectivas de que venha a ser num futuro próximo. Os invasores se atribuem vitórias seguidas, mas continuam enfrentando a resistência militar daqueles que já haviam sido derrotados! Ou seja, há uma predisposição por parte do governo sionista em continuar o estado de guerra. Esta é a raiz da crise que fizemos referência. Por quais caminhos esta situação se tornou factível? O problema agora aponta a crônica política e os fatos, é a incontida necessidade de continuidade do sentimento voraz de vingança contra tudo e contra todos do Estado sionista, mudando apenas o local deste sentimento negativo a ser exercido: a fronteira norte com o Líbano. Os tambores da guerra estão sendo mais uma vez acionados.

Todo o intenso processo de agressão física e moral contra um povo desarmado e indefeso é também um atentado às ordens política e jurídica internacionais, firmadas e desenvolvidas lentamente após a 2a. Guerra Mundial. Conceitos e práticas como “direitos humanos”, “soberania” (dos Estados e dos povos), “justiça” (internacional), “diplomacia”, “negociações”, “leis da guerra”, entre tantos outros elementos, que surgiram para regular a vida de um pujante sistema internacional, saído da libertação da Ásia e África, sucumbiram. Tal desgaste ocorreu pela existência de uma situação que não é nova: a atuação de um grupo de Estados Nacionais que desde o século XIX se esmera em controlar direta (através de colônias) ou indiretamente (através do neocolonialismo, após a libertação nacional das metrópoles europeias) os recursos naturais, os mercados, as propriedades territoriais, as rotas comerciais, etc., de sociedades menos desenvolvidas com o fito de favorecer suas economias nacionais. No Oriente Médio o neocolonialismo se manifesta pelo abandono formal do sistema metrópole-colônia, passando a legar a um proxy (o Estado sionista) o papel de ser o controlador de uma imensa e rica área  (principalmente em energia).

Foto: Soldados das Forças de Defesa de Israel (IDF) durante exercício militar em agosto de 2017. (Foto: Cpl. Eden Briand / IDF)

Criado numa fase em que prevalecia o espírito libertador da descolonização, e em resposta a esta, o neocolonialismo implantado pelos sionistas omitiu e tergiversou o quanto pôde sua relação torpe de espoliação da população nativa do local onde o Estado sionista foi instalado. No momento atual, as tensões acima indicadas ganham mais uma faceta: esta característica ímpar do Estado sionista de se fazer de desentendido (e convencer) sobre o que ocorria nas terras palestinas está sendo olimpicamente cancelada pela divulgação em grande escala nas redes sociais dos massacres ocorridos. Antes havia a falta de informação, criando uma espécie de “silêncio socialmente aceitável” sobre a conduta dos sionistas, agora as informações visuais estão disponíveis. É possível, então, obter o que chamamos de “experiência sensorial” da violência praticada há quase cem anos contra o povo palestino.

As imagens e conteúdos gerados no local e divulgados universalmente, muitas vezes no momento exato em que ocorrem, colocaram singelamente a ordem internacional pautada na democracia e na justiça em uma crise que, diríamos, é quase terminal. O pior é que poucos estão se dando conta da envergadura desta crise. O que restou deste arcabouço foi uma única certeza: quando se faz necessária a implementação de práticas concretas deste ordenamento jurídico (como em momentos de crise em que países ou povos mais fracos são agredidos) ele fracassa ou demora muito a ter os mecanismos de defesa dos atingidos acionados com sucesso. Enfim, perdem a eficácia na sua aplicação.

Indiscutivelmente, não há quase mais espaços físicos a serem ocupados pelo exército sionista na Faixa de Gaza, pois falta pouco para a conquista física total de Rafah. Também quase já não existe resistência militar organizada por parte do islã político. A partir de agora a desorganização da força militar unificada provida pelo Hamas e a Jihad Islâmica tenderá a desaparecer, o que provavelmente aprofundará o caos já existente no enclave. Isto ensejará a formação de grupos armados lutando ferozmente uns com os outros pela sobrevivência e pela imposição da sua autoridade pela força. Lidar com esta dramática situação afetará sobremaneira as já precárias condições de vida da população palestina, tornando inadministráveis quaisquer propostas de reconstrução organizada da vida social. Se não ocorrer de pronto algum tipo de unificação de uma autoridade civil (com poder militar para impor sua autoridade) não cremos que surgirão possibilidades de reconstrução pacífica, o que, mais uma vez, reporá o problema para a segurança do Estado sionista na Faixa de Gaza.

Rafah já foi ocupada pelas forças militares sionistas até o sensível “corredor Filadélfia”, localizado no extremo sul do enclave, que tem a proibição de sua ocupação regida pelo tratado de paz assinado com o Egito em Camp David, em 1978. Aquele ato estabeleceu que não haveria permanência de forças militares no local. Não obstante a avassaladora e eficaz ocupação pelo seu exército formal, os sionistas não estão colhendo os pretensos frutos da conquista baseada na fórmula idealizada pelo gabinete de guerra: “destruição leva à vitória”. É o que percebemos, por exemplo, pela sintomática declaração do porta-voz dos militares, contra-almirante Daniel Hagari, afirmando a impossibilidade de destruição do Hamas, já que este é uma ideia e não uma força política organizada. Depois de ter declarado justamente o contrário, meses atrás, a nova posição do poder militar institucionalizado do Estado sionista indica claramente que é necessário encerrar a atual fase da política social genocida. Uma guerra (mesmo a assimétrica) se trava entre forças organizadas, o que em curto prazo não será mais o caso. Assim, o representante do poder militar abriu uma clivagem com o atual chefe de governo, indicando que os melhores caminhos para o futuro próximo da Faixa de Gaza (do ponto de vista do poder militar do Estado sionista) são: a) declarar-se vitorioso e abandonar o campo de batalha; e, b) elaborar rapidamente um plano para o futuro imediato, sem a participação dos militares, ou seja, sem ocupação, já que uma eventual presença física do exército no terreno exigiria a ampliação do tempo de serviço militar obrigatório, que poderia ser ampliado para quatro anos para os homens.

Tais carências de tropas tornaram mais visíveis o cenário de stress político e militar, depois de uma longa crise política que o atual governo vivia há anos e que foi sobrepassada temporariamente apenas pela união produzida pela “guerra” contra o islã político. As atuais demandas militares exigem que novos contingentes de civis disponíveis sejam incorporados aos batalhões. Neste caso esta pressão recai sobre os religiosos, que são subsidiados pelo Estado para suas atividades e não possuem obrigação em relação ao alistamento compulsório como os laicos. A renitente recusa deste grupo privilegiado em prestar esta penosa e arriscada função, alegando que esta não seria a obrigação dos jovens estudantes e futuros religiosos profissionais, ameaça a estabilidade política do governo no parlamento. Lá existem partidos religiosos que indicam que irão se afastar da coalizão caso o serviço militar obrigatório seja determinado pelo poder legislativo ou pelo judiciário. Alguns líderes destes religiosos ameaçam até sair do país caso a conscrição alcance seus jovens.

Por outro lado, nadando de braçada contra a maré política aparentemente adversa, encontramos um primeiro-ministro firmemente decidido em continuar a ancorar sua ação genocida na tese de “guerra pela guerra” contra o povo palestino, retroalimentando a crise aberta com a declaração do porta-voz do poder militar. Sem se preocupar com as celeumas do cotidiano político que podem implicar na inviabilidade da continuidade de seu governo. Ele retrucou a declaração do porta-voz das Forças Armadas lembrando que a atuação militar é uma obrigação da força e que esta seria cumprida sob as ordens do primeiro-ministro. É desconhecida na História do Estado sionista cisão tão profunda e pública das duas instituições.

Mantendo seu gabinete na posição “ON” para a guerra e para o extermínio do povo palestino, agindo para evitar a perda de adesão da extrema-direita no interior da coalizão que o sustenta no Knesset, acossando seus aliados históricos como se fossem adversários, Benjamin Netanyahu não dá sinais de ceder a qualquer tipo de contemporização com os fatos. Prefere, pelo contrário, manter uma orientação principista de ataque contínuo contra tudo e contra todos que se interpõem no seu caminho. Esta atitude alcançou até mesmo seu maior financiador, o governo norte-americano, que se tornou alvo de seus vitupérios. Ele se pronunciou publicamente em 18 de junho, em língua inglesa, tentando abalar a candidatura à reeleição de Joe Biden, afirmando que era inadmissível por parte da atual administração norte-americana qualquer atraso ou embargo no envio de armas para o esforço de guerra sionista. Este embaraço estaria prejudicando a qualidade da ofensiva à Rafah.

O primeiro-ministro demonstra cabalmente, e sem maiores constrangimentos, o porquê se mantém vivo no topo da política de seu país há vinte e oito anos (sendo primeiro-ministro durante quatorze dos últimos quinze anos). Sua arrogância, a falta de pudor e prepotência são as marcas de personalidade mais pronunciadas de um governante pusilânime e feroz na defesa dos interesses do Estado sionista e dos seus próprios; esta característica possui uma valoração positiva do seu eleitorado, acorde de que esta é a única marcação clara para fazer funcionar a política sionista dentro do sionismo interno. Itzak Shamir, primeiro-ministro entre 1983-1984 e 1986-1992, certa vez fez o seguinte comentário sobre o atual governante sionista: “os árabes estão aí. Netanyahu também”.

Ilude-se ingenuamente quem imagina Netanyahu como um ponto fora da curva na política do Estado sionista. Ele é o melhor que poderia acontecer, sob a ótica sionista, para um país cuja visão de exclusão física, histórica, social e política das populações nativas é tida como única via para se construir um Estado seguro. Netanyahu é um membro do deep state sionista, pertencente à “geração dos assentamentos”, apesar de sua família servir ao projeto sionista desde quando predominavam os trabalhistas no poder. Durante seu longo governo, foi produzida uma “camada protetora” para as conquistas da “geração kibutz” de sionistas. Esta, caso ainda hoje estivessem governando com as mesmas orientações que produziram a ocupação inicial e a expulsão da população nativa da Palestina em 1948 (o Nakba – “catástrofe”) e 1967 (o Naksa – “revés”), poderiam pôr em risco o verdadeiro projeto sionista: a construção do “Grande Israel”, um território bem maior do que o atualmente usurpado.

Os episódios que cercam o fracasso da implementação dos Acordos de Oslo (1993) e as tentativas de obter a paz por negociações – a fórmula “terra por paz” –, fez implodir a possibilidade de continuidade da hegemonia política da “geração kibutz”. Seu predomínio já havia sido abalado em 1977, com a eleição de um político de extrema-direita, Menahin Begin; daí por diante o declínio do Partido Trabalhista tornou-se regra. Esta agremiação cometeu, no decorrer das tentativas de dar vida a um acordo em negociações com a Autoridade Nacional Palestina, um verdadeiro suicídio político (mas não do ponto de vista do projeto sionista) ao fazer o duplo jogo da negociação com os representantes palestinos e a extrema-direita. A “geração dos assentamentos” estava, então, nascendo, e a “geração kibutz” não entendeu nem a natureza da transformação do processo de ocupação nem o processo de crise da esquerda e da democracia. A duplicidade foi expressa: a) na aceitação da necessidade de um acordo final que criasse o Estado da Palestina em terras ocupadas então pelos sionistas; e, b) por outro lado, foi leniente/cúmplice com a ampliação dos assentamentos na Cisjordânia justamente durante o penoso e longo processo negocial, o que negava na prática a possibilidade de concessões territoriais. Esta ambiguidade – que tomamos como sendo na verdade uma escolha velada dos gabinetes de Yitzak Rabin (1992-1995), Shimon Peres (1995-1996), e Ehud Barak (1999-2001) –, tornou os trabalhistas dispensáveis para o sionismo interno, principalmente após o assassinato de Yitzak Rabin, em 1995.

O que viria a se constituir depois com o que temos chamado de “geração dos assentamentos” surge ainda em 1967 (após a vitória na Guerra dos Seis Dias). Depois da tão sonhada conquista de Jerusalém e da Cisjordânia (que os sionistas chamam de Judéia e Samaria) ocorreu o início dos assentamentos em terras palestinas, sob as bênçãos da “geração do kibutz”, então hegemônica politicamente. Esta usurpação foi alimentada por permissividade, leniência e cumplicidade da esquerda sionista ao permitir a expansão das ocupações alegando impotência para impedi-las. Quando estas ganharam musculatura e vida própria, os governantes da esquerda sionista perderam sua razão de ser e, inclusive, não conseguiram cativar o voto dos novos assentados.

Netanyahu representa a corrente que defende uma dimensão muito clara de que o que interessa, o que realmente está em disputa, não é o Estado sionista atual, mas o “Grande Israel”. Ele trabalha diuturnamente, em cada ação e confronto, pela “continuidade da continuidade”, ou seja, manter a política de assentamentos ilegais, que são a marca registrada da formação do Estado sionista. A “geração kibutz” parecia indicar em princípios dos anos 1990 que estava satisfeita com o a área já usurpada do povo palestino, mas não demonstrou coragem e discernimento de frear a expansão dos assentamentos na Cisjordânia. Alegaram cinicamente, no meio das negociações com as delegações de negociação palestinas, que a disputa interna entre as duas gerações de sionistas (kibutz x assentamentos) tinha prioridade de ser resolvida antes de realmente cederem territórios para viabilizar a criação do Estado da Palestina. Como governantes, não podiam se dar a este luxo, mas foram lenientes com a continuidade do roubo de terras, financiaram generosamente o parasitismo dos novos assentamentos, armaram os novos usurpadores e forneceram proteção do Estado às novas construções, enfim, escancararam as portas para uma nova geração de imigrantes que iniciavam sua participação na espoliação do povo palestino. Tais fatos ocorreram quase cinquenta anos depois do fim do Holocausto, quando a situação dos judeus no mundo ocidental não demandava esta “corrida do ouro” sobre as terras palestinas. Estes fatos marcaram o fim patético da hegemonia política desta corrente.

No momento atual, a “geração kibutz” abre mais um flanco de stress para o governo: ela promove e se faz representar em constantes e crescentes manifestações em via pública de oposição ao atual governante. Tentando se imunizar dos compromissos imorais de toda ordem e práticas sórdidas para lidar com a população palestina enquanto estiveram no poder, e perante a força do pacto político sólido que sustenta o atual primeiro-ministro, eles não fazem mais do que formar um préstito de chorões e vivandeiras inconformadas com o governo. Se manifestam publicamente contra o que chamam genericamente de “radicais”, mas escondem seu repúdio a estes por detrás da questão dos cativos de 7 de outubro de 2023. De fato, só querem expressar que o seu problema concreto é a impotência política de ganhar democraticamente as eleições. Estes sionistas “bonzinhos” não formulam nem reformulam nenhuma linha de conduta do (seu) governo atual em relação à política social genocida que está sendo aplicada; tocam no assunto nas suas alocuções públicas, chegam até discordar do que está ocorrendo há alguns quilômetros de distância, mas acabam (devido a um sentimento de culpa não assumido) sempre produzindo argumentos que levam a desenvolver um tom condescendente com as ações do governo.

Parece-nos que, apesar de que o senso comum indique o contrário, Netanyahu é o político que atualmente possui a mais coerente posição de defensor do que estamos chamando nesta série de artigos de pax israelensis, um elemento basilar da atuação do Estado sionista em relação aos vizinhos. Não nos surpreenderia se no novo pleito eleitoral que a oposição demanda publicamente ele voltasse a ser vitorioso, montando um bloco ainda mais sólido de poder com a ampliação de assentos nos legislativo conquistado pela extrema-direita. Sua proatividade não é ingênua; seu foco em defender a continuidade da guerra é a de criar uma sinergia entre o que existe e o que existirá. A pax israelensis, depois da derrota militar do Hamas e do esvaziamento da provocação ao Irã, está se voltando para a fronteira norte do país. Este é um passo contundente na construção do Grande Israel, não da produção da segurança interna do país. A esquerda sionista não consegue admitir que sua atuação entre 1948 e 1995 também foi esta; fica agora estatelada após a brutal perda de protagonismo, perante a realidade que ajudaram a construir e, por pruridos morais incoerentes com os fatos, renegam a forma mas não o conteúdo da política social genocida do atual governo. No fundo, eles fazem parte do problema, não da solução do stress político atual. Inconscientemente (talvez), se coadunam com a política social genocida do seu Estado.

No Líbano encontramos presente, na sua vida política e social, outra vertente do islã político, o Hezbollah (Partido de Alá). Solidário com o congênere da Faixa de Gaza, o Hamas (Movimento de Resistência Islâmico), atuou desde o início da invasão em Gaza com ataques cotidianos sobre alvos estratégicos dentro das fronteiras do Estado sionista. Sua alegação básica para justificar tais ataques é a de que eles estão em sinergia com a agressão à Faixa de Gaza; quando esta parar, eles também cessarão seus ataques. A intenção não era a de entrar em guerra com o Estado sionista, mas diminuir a pressão militar sobre Gaza. Obtiveram sucesso neste intento, esvaziando em cerca de 30% os efetivos militares, deslocados para a fronteira norte.

Com o tempo, os foguetes e mísseis lançados do sul do Líbano foram ampliando a distância em relação ao ponto de lançamento, criando uma expressiva população de desabrigados que abandonou a região próxima da fronteira norte do Estado sionista. A resposta deste também foi na mesma direção, alargando cada vez mais a distância dos alvos a serem atingidos, chegando até o Líbano “profundo”. A diferença básica entre os dois atacantes é que o Hezbollah não atingiu a população civil, só alvos estratégicos; seus adversários lançam mísseis certeiros sobre alvos da infraestrutura, lideranças políticas e militares, além da população civil.

Sendo assim, a derrota (apenas) militar do islã político em Gaza não está se dando sem acirrada resistência, apesar de todo o cerco e as baixas dos seus soldados. E, principalmente, nenhum sinal eficaz de que este já longo processo de destruição de um povo levará à libertação dos que estão cativos desde 7 de outubro de 2023. Já afirmamos anteriormente que, caso não haja reféns vivos ou que o número destes seja insatisfatório para a opinião pública sionista, a vitória militar se transformará em derrota política. Mas o que importa para a busca do Grande Israel e do fortalecimento da pax israelensis é manter o foco no objetivo a ser alcançado, não nas dificuldades de sair vitorioso. A solução para o impasse do stress político atual pelo governo Netanyahu é mudar o alvo de um islã político para outro, do Hamas para o Hezbollah.

Neste sentido, um certo senso comum está se formando: a escalada militar na fronteira norte (Estado sionista) – sul (Líbano) pode, potencialmente, iniciar uma guerra cuja amplitude será transportada para o ambiente regional e, certamente, global. Vários sinais de atividade militar, noticiados pelas redes sociais e pela imprensa, indicam contínuos embates no norte do Estado sionista. Emboscadas, batalhas, mortes de civis no Líbano, expõem uma chaga: a ação sionista para produzir intencional e intensamente a banalização do extermínio do povo palestino – quase tornada atávica e emocionalmente desgastante para a audiência que não está diretamente envolvida com a questão –, parece no fundo ser um processo que se auto-alimenta com o propósito de fazer uma espécie de “engenharia política”. Por este caminho a “bússola” do Estado sionista virou o ponteiro do sul para o norte. A depender desta orientação, a guerra na sua fronteira norte ocorreria logo.

Nesta campanha militar tresloucada imposta pela pax israelensis não importa realmente o resultado das batalhas, mas a forma como esta será apresentada num cenário internacional de crescimento da extrema-direita e sua forma algo paranoica de compreender a realidade política. Ou seja, todas as mortes que já ocorreram (ou que venham a ocorrer) estão imersas numa luta política, ideológica ou numa “guerra cultural”, contra um pretenso e delirante combate ao “islamonazista”. Esta expressão foi divulgada por um ex-político do partido Likud, Moshe Feiglin, que cinicamente se referenciou no líder alemão nazista que tanto mal fez ao povo judeu.

Não podemos afirmar com toda a certeza que haverá guerra no Líbano. Fatores externos, como a eleição norte-americana em novembro próximo, e internos ao Estado sionista (como limitação física das tropas e reação popular contra o governo) podem determinar um adiamento do conflito. Mas temos em conta que o “contrato de guerra” já foi assinado pelas partes, faltando apenas a sua execução concreta.

Em termos de resistência da vida humana na Faixa de Gaza, encontramos mostras de que a luta pela sobrevivência do povo palestino persiste. Mesmo desgastada e difamada, sua população dá mostras de que pretende voltar a uma vida normal tão logo seja possível. Esta resistência, pautada no “islã popular”, é a prova cabal de que todas as calúnias lançadas sobre a população palestina não se sustentam, pois o mito de que o islã político transformou-se numa demoníaca orientação da sua vida social e política só é útil em meio ao requentamento da teoria do “choque de civilizações”.

Muitas provas estão presentes nas redes sociais, no entanto, de que a população palestina não é menos civilizada do que qualquer outra sociedade. Uma das cenas mais importantes vinculadas nestes últimos dias foi a de um civil, Mujahed Azmi, da cidade de Jenin, amarrado na frente de um veículo militar sionista que passa ao lado de duas ambulâncias do Crescente Vermelho. Utilizado como proteção contra o apedrejamento que os bravos jovens palestinos fazem como signo da sua luta pela sobrevivência, o exército sionista não se preocupou em esconder o que sempre fez com o povo palestino. Abaixo demonstramos como fica ridícula a tese do “escudo humano” que o mundo ocidental em conluio com os sionistas afirmam repetidamente sobre a ação da resistência na Faixa de Gaza.


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Outra imagem que queremos incorporar nesta análise é a da defesa de uma Dissertação de Mestrado ocorrida em meio à devastação, realizada em uma barraca precária. Presentes estão: o candidato ao título de Mestre e a banca examinadora, composta (conforme padrão para este tipo de exame) por três professores. É conhecida por todos a preocupação da população da Faixa de Gaza com a educação formal de seus filhos. No enclave, em meio a tantas condições adversas, a taxa de analfabetismo é de menos de 1%. Suas treze universidades formam profissionais em inúmeras áreas, o que cria uma mão-de-obra altamente qualificada. Infelizmente, o eterno cerco dos sionistas à população local não permite a formação de um mercado de trabalho que absorva este patrimônio cultural formado com muita luta e dedicação. Na Defesa de Dissertação que fazemos referência, o esmero e a postura digna de todos os envolvidos em cumprir este ritual da vida acadêmica são tocantes. Nota-se ao fundo da imagem o que deve ser uma projeção da apresentação do trabalho com um slide, certamente incluída pelo mestrando na apresentação do seu trabalho para a banca examinadora. Parabéns ao novo Mestre.

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