Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 6]
Bernardo Kocher
Prof. História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense
Publicado no Opera Mundi em 23 de maio de 2024.
A invasão de Rafah indica um ponto crucial sobre a relação de Israel com os países vizinhos; alguns deles já estão em prontidão para uma futura crise política
Nos últimos quinze dias a situação na Faixa de Gaza continuou a se deteriorar, expondo a cada momento os efeitos cumulativos da destruição de vidas e da infraestrutura sobre a sobrevivência do povo palestino, afetado pela política social genocida praticada pelo Estado sionista. A aplicação em Rafah da mesma conduta contra a população civil indefesa do norte do enclave indica que a crise aberta com os episódios de 7 de outubro está alcançando um novo “ponto de não retorno”. Ou seja, em meio a uma crise que aos olhos de muitos é estratosférica, o governo sionista indica que está disposto iniciar outra(s), buscando agora objetivos estratégicos mais amplos. Como veremos abaixo, uma fase significativa do que chamamos de “sionismo interno” está por se encerrar, e outra, do “sionismo externo”, poderá ser iniciada logo em seguida.
Nossa análise nesta coluna não trará detalhes sobre as barbaridades possíveis de serem lançadas sobre os palestinos em Rafah, nem suas consequências duradouras. Elas já são visíveis, mas podem piorar. O que importa neste momento é perceber que a situação nesta localidade, com o enorme afluxo de população que para lá se dirigiu para tentar se preservar da carnificina, gerou um timing (temporalidade) que precisa ser catalogado e analisado para que se dê conta da sua inteireza dentro da política social genocida dos sionistas. Esta temporalidade deve ser vista em função: a) do início da incursão em outubro de 2023; e, b) do início da ação do Estado sionista após a incursão, que ocorrerá em data ainda não prevista.
O ataque ao enclave que vem se desenrolando há cerca de sete meses não terá resultados totalmente positivos em relação à aniquilação da insurgência do islã político, como se sabe amplamente. Mas o gabinete de guerra sionista não abandona a obsessão de eliminar fisicamente todos os membros da guerrilha em atividade que estejam ao seu alcance. A partir desta orientação basilar, o exército sionista utiliza a população civil como escudo para debelar a força militar opositora, destruindo vidas humanas inocentes com o intuito de alcançar a militância do islã político. O que ocorreria se a situação fosse decentemente normal como numa guerra simétrica seria o inverso: as baixas da militância seriam maiores do que os danos colaterais. Comodamente, o Estado sionista utiliza o mecanismo de terra arrasada – calcado em Inteligência Artificial, o sistema Lavender – para limitar ao menor número possível o número de baixas entre os seus soldados.
Não obstante a prepotência, que permitia que já estivessem se considerando vitoriosos no norte do enclave, nos últimos dias reapareceram combates na cidade de Gaza (ao norte, no campo de refugiados de Jabalia), localidade na qual, segundo o que o governo sionista afirmou em janeiro, não havia mais militantes em armas. Isto ocorre porque – tal como a Al-Qaeda –, o Hamas, a Jihad Islâmica e os demais grupos do islã político são brands (marcas registradas) e não instituições; os movimentos de resistência obtêm adesão de indivíduos descontentes que podem agir livremente ou em ações coordenadas para defender sua causa. Com a existência de depósitos de armas ocultos espalhados pelo enclave, é fácil qualquer indivíduo tentar alvejar o invasor sionista. Sendo assim, como constata o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, a destruição da Faixa de Gaza e a violência contra seus habitantes não trará a paz. Segundo esta autoridade:
“Sem um plano para o dia seguinte à guerra, Israel ficará com as mãos numa insurreição duradoura porque muitos [terroristas] armados do Hamas permanecerão, não importa o que façam em Rafah.”
Manifestante segura cartaz com os dizeres “vida longa à Palestina” durante ato do 1 de maio em solidariedade à Palestina em Nova York, nos EUA.
(Foto: Pamela Drew / Flickr)
E analisando um cenário para o pós-invasão, Blinken afirma:
“Se eles [os sionistas] partirem e saírem de Gaza, como acreditamos que precisam fazer, então teremos um vácuo que provavelmente será preenchido pelo caos, pela anarquia e, em última análise, pelo Hamas novamente”
A invasão de Rafah (que está ocorrendo mais lentamente do que na parte norte da Faixa de Gaza) nos indica que também chegamos a um ponto crucial de definições sobre o relacionamento do Estado sionista com os países vizinhos; alguns deles já estão em prontidão para uma possível futura crise política regional que poderá envolvê-los diretamente. Mesmo sem o pleno aval dos patronos norte-americanos, a razia que se anuncia em Rafah representa a porta giratória entre o que até aqui foi praticado como pretensa retaliação aos episódios de 7 de setembro de 2023 e uma robusta aplicação de uma política de afirmação de dois projetos sionistas, já analisados aqui neste Opera Mundi: o da formação do Grande Israel e, simultaneamente, o estabelecimento da Pax Israelensis no Oriente Médio. Após Rafah, não haverá (ou não deveria haver) mais um combate justificável contra o islã político; mas mesmo que a vitória dos sionistas ocorra, muitos analistas estimam que os movimentos armados contestatórios ainda sobreviverão com uma guerrilha perene contra o invasor.
Quanto à continuidade da política social genocida, e sua função norteadora das ações do Estado sionista, indicamos uma afirmação do seu primeiro-ministro:
“Hoje, o governo expressou sua oposição à decisão da ONU da semana passada de avançar com o reconhecimento de um Estado palestino. Não recompensaremos o terrível massacre de 7 de outubro [de 2023], apoiado por 80% dos palestinos, tanto em Gaza quanto na Judeia e Samaria. Não permitiremos que eles estabeleçam um Estado terrorista a partir do qual possam nos atacar vigorosamente”, concluiu.”
A citação acima reflete com toda clareza a busca de emulação da política social genocida aplicada sobre o povo palestino. A declaração é um atestado de (in)sanidade política, fechando todas as portas para quaisquer considerações dos direitos dos palestinos, condenados de pronto já que, segundo a visão torpe dos que os consideram um “povo não eleito”, 80% deles apoiariam o Hamas e os demais grupos de resistência. Como (ou melhor, por que?) a autoridade máxima do poder sionista chegou a esta cifra? É simplesmente fantástico o poder de síntese/invencionice desta criatura sinistra!
Uma outra análise do conteúdo da afirmação acima, agora pelo lado do que não foi dito, refletirá com toda a certeza a extrema obliteração das opções militares dos sionistas neste quadro. Inicialmente, constatamos que não há nenhuma referência por parte do governante sionista em relação à libertação dos cativos desde o 7 de outubro e, por conseguinte, quanto a existência de mecanismos diplomáticos para tratar da libertação destes. As negociações para o cessar-fogo ocorridas nas últimas semanas no Cairo foram intermediadas pelo Egito e pelo Catar e suportadas pelos EUA, mas apenas toleradas pelo Estado sionista, que participou enviando como representante o seu chefe da inteligência e não um diplomata. Quando consolidadas e aceitas pelo Hamas, foram denegadas pelo Estado sionista; neste exato momento a invasão de Rafah tornou-se realidade.
Como até o presente momento somente dois reféns foram libertados em decorrência da invasão do enclave e três foram mortos por “fogo amigo” das Forças de Defesa de Israel (IDF) – que não identificaram a tempo os protocolos implementados pelas vítimas que haviam fugido do cativeiro –, a única suposição que pode ser feita é a de que os cerca de cem outros cativos estejam em Rafah e adjacências. Eles serão afetados diretamente pelo bombardeio aéreo e incursões terrestres e, certamente, ficarão em uma situação de exposição máxima ao risco.
Dentro desta conduta de promoção da política social genocida para forçar a libertação dos cativos de 7 de outubro, como analisado abaixo, surgiu uma fratura na sociedade sionista: de um lado os que aderem à proposta de um acordo de cessar-fogo; de outro os que estão no poder implementando a política de “guerra pela guerra”.
O racha na sociedade israelense
Nos dispomos no momento a apenas analisar superficialmente o stress que afeta a sociedade sionista. São raros os momentos de manifestação explícita, contundente e pública de rupturas políticas neste país, mais comumente explicitadas apenas durante os processos eleitorais. Mas devemos apontar a crescente insatisfação de um segmento da sociedade local que, tendo como base a revolta dos parentes dos cativos desde 7 de outubro, se manifesta publicamente (e é tão reprimida quanto os estudantes universitários nos EUA e Europa) contra a continuidade da guerra. Eles advogam a mesma palavra de ordem central que as manifestações públicas dos estudantes universitários mundo afora: “Cessar-fogo agora” (“Cease fire now”). Certamente os segmentos envolvidos nas manifestações de rua em Tel Aviv e outras poucas cidades padecem de limitações econômicas e de direitos, situação trazida pelo aumento vertiginoso do gasto público em despesas militares e da restrição das liberdades públicas por parte dos governantes que comandam o conflito. Seu padrão de vida (levemente) contraído e, centralmente, o abalo causado pela sensação de vulnerabilidade e insegurança introduzidas na sua sociedade pelo sucesso imediato dos ataques de 7 de outubro, colocaram estes setores (também beneficiados pela usurpação das terras palestinas) em posição desconfortavelmente defensiva no seu próprio país. Não se trata, para este segmento social, de apenas conviver com as sucessivas derrotas eleitorais para uma miríade de partidos da direita radical, reguladores em última instância da governabilidade do sistema político. Sem rota de fuga, a política interna na sociedade sionista condena os segmentos insatisfeitos a um isolamento, pois são aquelas forças políticas que fornecem a sustentação de votos necessários no parlamento à manutenção de qualquer governo. A frustração está calcada na percepção de que o projeto sionista inicial (de Herzel, Ben Gurion, Golda Meir, Itzak Rabin, Shimon Perez, etc.) possui agora outros gestores (Menahim Begin, Itzak Shamir, Benjamin Netanyahu, etc.). Motivos adicionais para a sensação de perda não faltam.
Em primeiro lugar, para este segmento não existe a opção de “des-migração”, ou seja, de um possível abandono de Eretz Israel de volta aos países de origem em caso de uma crise grave. Sendo assim, seu sentimento mais íntimo é o desejo de ter um máximo controle da situação, induzindo políticas estatais na direção da sua visão de mundo (menos religiosa) e interesses econômicos corporativos; estes seriam os melhores meios de restaurar a confiança total na manutenção da sua segurança física e prosperidade econômica. Em segundo lugar, sua fragilização política e emocional vem de uma concorrência com a base social (e eleitoral) da extrema-direita no país, que foi ampliada com a migração (allya, que é considerada quase uma obrigação para os judeus da diáspora) de centenas de milhares de indivíduos altamente devotados ao “fundamentalismo sionista” que são instalados nos assentamentos da Cisjordânia. Tal processo, criador da segunda onda massiva de usurpação das terras palestinas, ocorre incessantemente desde a vitória sionista na guerra de 1967 e se tornou endêmico e com crescimento geométrico a partir do início do primeiro mandato do atual primeiro-ministro, em 1996. A reação dos manifestantes se dá em oposição ao controle de elementos básicos da vida social pelos sionistas fundamentalistas, como o capital simbólico que o sionismo enseja, a decisão de ir à guerra e a ausência de negociações para a libertação dos reféns.
Os “sionistas de segunda geração” são vitoriosos na imposição da espoliação, descartando qualquer tipo de modus vivendi com os palestinos; já os “sionistas de primeira geração” admitem (ou fantasiam a possibilidade) da convivência pacífica com a população palestina, mesmo que este eventual futuro comum contenha a guerra como elemento definidor da sua execução. Os de “primeira geração” tergiversam sobre seu passado tão conquistador quanto seus sucessores e, como pode se depreender pela passagem dos trabalhistas pelo poder, não adotaram políticas de apropriação do território palestino distintas daquelas que criticam. Esta necessidade de criar este modus vivendi – que se tornou uma normativa após o fim da Guerra Fria, quando parecia que a questão palestina poderia ser resolvida sem o concurso da intervenção da URSS e da esquerda revolucionária –, não foi viabilizado por esta corrente de governantes, como demonstra a complexa política do “sionismo interno” que inviabilizou a aplicação dos Acordos de Oslo.
A atual manifestação visceral de oposição ao governo de Benjamin Netanyahu como mote da crítica da “primeira geração” à realidade do pós 7 de outubro (as principais palavras de ordem do movimento das ruas são: a) a deposição do primeiro-ministro, b) negociação para a libertação dos reféns e, c) a convocação de novas eleições) não nos parece suficiente para isolá-los das responsabilidades na montagem da espoliação brutal e sem motivos do povo palestino. Estes segmentos não podem (mas tentam) se eximir do envolvimento com a política social genocida, insinuando (quando conseguem) que se distanciam daquela, na esperança de montar uma narrativa histórica que lhes seja favorável na interpretação do passado que lhes favoreça no presente. Sem compromissos com uma crítica visceral ao sionismo e seu papel espoliador, tentam figurar apenas uma atuação teatral em relação à situação do povo palestino que é, em substância, diametralmente oposta àquela que os estudantes universitários em várias partes do mundo desempenham no momento.
Desta forma, grosso modo, sionistas de esquerda e de direita concorrem na aquisição de capital político e simbólico (além da reprodução da vida material) na sociedade sionista. Este conflito se manifesta metaforicamente numa espécie de briga (de vizinhos) entre o que chamaremos da “geração do kibutz” e a “geração dos assentamentos”. O lugar que escolhemos ficar, para apenas repousar nossa base analítica, é o da observação contemporânea da briga.
O sionismo externo
Analisando agora o “sionismo externo” citamos duas situações. A primeira é o pronunciamento do primeiro-ministro turco Recep Erdogan, que aponta que o processo de incorporação territorial do Estado sionista não se resume à Faixa de Gaza. Este importante dirigente do mundo muçulmano percebeu com precisão que a atual situação na Faixa de Gaza e Cisjordânia não se explicam em si mesmas; elas apontam à ameaça do encerramento do ciclo de predominância do “sionismo interno” e o início de uma expansão sub-imperialista escalada do “sionismo externo”. Segundo o dirigente turco, o intento do Estado sionista é a sua contínua expansão territorial ou de área de influência; teme-se que esta chegará até a península Anatólia. Sendo assim, o governante que apoia política e logisticamente (mas não militarmente) o Hamas, como também não o considera um grupo terrorista mas uma força de libertação nacional, a luta deste segmento do islã político é a primeira linha de defesa contra a expansão sionista. Segundo ele:
“Não pensem que Israel vai parar em Gaza. Se este estado desenfreado não for travado, mais cedo ou mais tarde, eles colocarão os olhos na Anatólia com a sua ilusão da ‘Terra Prometida’. O Hamas está a fazer a defesa da linha da frente da Anatólia em Gaza. São assim tão cegos que não conseguem ver isto?”
A segunda é a declaração do governo egípcio, que está ameaçando romper a cooperação militar com as forças militares sionistas, já que estas não estão mais dispostas a respeitarem cem por cento o acordo firmado em 1979, em Camp David, que estabeleceu a paz entre ambos os países. O mal-estar pelo lado egípcio se dá pela situação na Faixa de Gaza como um todo mas, mais especificamente, suas preocupações se focam em Rafah, onde se encontra a passagem legalizada entre o enclave e o país. A tensão na relação dos dois países pode ser vista ainda, por exemplo, na pressão que o Estado sionista fez diretamente sobre o governo egípcio propondo (mais) uma barganha sórdida envolvendo seu país e a população da Faixa de Gaza. O governo sionista articulou com os EUA e os demais apoiadores europeus a pressão para que o Egito faça a liberação da alfândega de Rafah, para que os palestinos fossem excluídos do enclave Gaza e instalados no deserto do Sinai. Ali seriam implementadas em várias etapas as condições para a construção de um novo assentamento populacional. Em troca, o governo egípcio receberia o perdão de suas dívidas com o FMI, com o Banco Mundial, com credores privados e com os diversos países árabes e europeus, sistemáticos credores do governo egípcio. Dado o aprofundamento das duas principais fontes de renda do país devido às duas grandes guerras em andamento (a da Ucrânia, fornecedora principal de trigo, e a de Gaza, prejudicando o turismo e o trânsito no Canal de Suez) esta oferta pode até ter se tornado atrativa macroeconomicamente, mas encontrará resistências na população egípcia, com larga simpatia à causa palestina.
Este quadro aponta para um ambiente absolutamente obtuso nas expectativas de manutenção da integridade física e psicológica do povo palestino, já abalado por meses de bombardeios, mortes, perdas materiais, escassez de alimentos e bens e serviços, doenças, etc. Estamos diante de uma espécie de “solução final”, versão sionista. Rafah deverá ser o ápice da concretização deste objetivo.
De fato, nenhuma força política foi suficiente para frear a sanha liquidacionista que o “povo escolhido” demonstra de forma inequívoca contra o que eles fantasiam ser uma ligação carnal Hamas-Irã-povo palestino. Suas manifestações públicas desavergonhadas não negam que há na sociedade sionista uma psicopatia coletiva de corte freudiano (ou reichiano?) sendo vivenciada com capricho, intensidade e tenacidade: parecem estar numa catarse histérica (ou vertigem neurótica) de produção industrial da morte do povo palestino, causada por um frenesi erótico/teológico depois de milênios de repressão sexual/religiosa. Ou seja, se acham as vítimas das vítimas e se atribuem quaisquer direitos de vida ou morte (física, política, social ou de poder de narrativa) dos inimigos.
As manifestações
Mas, de forma materialista, compreendemos que existe, enfim, uma espécie de economia política do sionismo baseada na fabricação de uma ameaça histórica conjugada com a auferição de rendas externas à sua economia nacional para combater esta ameaça. Nesta vibe de insanidades, a História do povo palestino é sacrificada: sempre e sempre os sionistas referenciam as violências que praticam a partir de um fato histórico imediato ou aleatório do passado, sem a devida consideração da enorme cadeia de eventos que eles participaram desde o início da usurpação da Palestina há cem anos.
Excetuando-se movimentos de rua, mesmo contando com grande número de presentes, e o eros effect das manifestações estudantis nas universidades em várias partes do planeta, os sionistas encontraram largo apoio para praticar sua indefensável política social genocida. Este suporte conta com a leniência de uns e com o silêncio comprometedor e na incompreensão da causa palestina de muitos, ambas condutas alimentadas na classe trabalhadora – e até em setores médios altamente intelectualizados –, por uma pesada máquina de propaganda e repressão ao direito de opinião associada com intimidação focada dos defensores de um povo barbaramente oprimido.
Logo no início da implementação da política social genocida pelos sionistas, em outubro de 2023, as ruas foram ocupadas em várias cidades importantes do mundo desenvolvido. A reação inicial dos governantes foi desabar a repressão sobre os manifestantes, tentando proibir a ocupação de espaços públicos por apoiadores dos palestinos. O temor inicial das classes dominantes mundo afora era que a defesa dos direitos de um povo oprimido se transformasse num questionamento maior, afetando as bases da hegemonia burguesa duramente conquistada com a derrota do nazi-fascismo e a expansão territorial da URSS e mantida após o fim da Guerra Fria e da crise da hegemonia dos EUA nas relações internacionais. Indicamos que, na demonstração pública cabal da ascensão econômica, política e militar da Federação Russa (que demonstrou, na “Operação Militar Especial” na Ucrânia, não ser fato verídico sua inferioridade material) e, principalmente, no virtuosismo econômico da China (um país onde o poder político é exercido por comunistas!) encontraram as classes dominantes dos países desenvolvidos temores de que um déjà-vu de contestação social típico das décadas de 1960-70 retornasse.
O ânimo dos manifestantes no primeiro momento de brutal repressão da crítica à política social genocida sionista não foi o de confrontar o poder do Estado burguês, mas sim o de apenas afirmar um único direito estabelecido pelo direito internacional: o da soberania dos povos. Os donos do poder entenderam os limites que os manifestantes se auto-impuseram. Foi, então, estabelecido um compromisso. Ajustados os parâmetros que regulavam tanto a contestação quanto a repressão, já que as manifestações por sua própria natureza eram pacíficas, a partir de dezembro de 2023, por várias e repetidas vezes, as populações de grandes cidades foram às ruas portando bandeiras e símbolos da causa palestina; os manifestantes não se deixaram levar para o apoio ao islã político (sábia decisão!) e nenhuma bandeira de qualquer destes grupos foi apresentada ao público.
As manifestações de rua, abafadas pelo silêncio indecoroso da mídia mainstream, não obtiveram resultados práticos, mesmo depois da entrada de uma petição inicial por parte da África do Sul na Corte Internacional de Justiça em dezembro de 2023. Desde então, o movimento anti-genocídio ficou limitado à repetição de manifestações ordeiras, com palavras de ordem facilmente deglutidas pelas forças políticas que apoiam a política social genocida dos sionistas. Quem quebrou este marasmo foi o movimento estudantil. Suas manifestações públicas críticas, consorciadas com a quebra da rotina universitária e a instalação de acampamentos dentro dos espaços comuns dos prédios universitários, reavivou a crítica social contrária ao extermínio ora em marcha no Oriente Médio. Mais do que isso, mesmo sendo constituída por uma fração do número de participantes das manifestações de rua, a ação dos estudantes representavam uma força potencialmente muito maior do que as manifestações públicas: traduziam a rejeição do genocídio numa crítica social a partir da sua origem embrionária na classe trabalhadora.
Os estudantes universitários não são uma classe social, mas figuram esta condição como sendo uma verdadeira classe. Esta dimensão foi a que deu força política exponencial para uma possível ameaça de expansão de um questionamento que poderia ser apenas iniciado na crítica estudantil à situação da Faixa de Gaza e se transbordar para a classe trabalhadora como uma crítica válida também para suas condições de trabalho e vida. Por este caminho, a oposição ao sionismo poderia passar para a crítica ao imperialismo e, daí, quem sabe, para uma reflexão sobre a natureza das contradições sociais.
Os estudantes universitários, realizando potencialmente a função de uma classe trabalhadora (já que estão em formação acadêmica para ingressar no mercado de trabalho) possuem o condão de ser um ator muito próprio, como Edward Thompson abordou na análise que fez sobre a formação da classe operária inglesa no século XVIII; eles estariam, seguindo a análise do autor, atuando numa “luta de classes sem classes”. A ação estudantil poderia se impor ao universo estático de pensamento único, que perdura entre nós desde a ascensão da agenda neoliberal, uma dinâmica de reflexão e questionamento que ameaçaria quebrar o encanto do mercado autorregulado.
Por outro lado, o do sionismo, formou-se desde 7 de outubro um quadro de fortalecimento lento mas vigoroso dos argumentos em favor da agressão ao povo palestino, o que fortaleceu o atrevimento do Estado sionista em ir contra orientações dos EUA, desdenhar quaisquer ameaças de condenação ou ordem judicial oriunda da Corte Internacional de Justiça e iniciar a invasão de Rafah. Calcados nos mantras “o Hamas é terrorista” e “quem apoia a Palestina é favorável ao Hamas”, o sionismo argumentativo e sua grotesca campanha de propaganda, o Hasbará, ganhou asas e voou. Não é incomum que consiga se impor com uma argumentação paralisante de grande impacto e efetividade, já que recorrem com eficácia à consciência democrático-burguesa largamente predominante na consciência política da classe trabalhadora. Nesta, está consagrado, o terrorismo (e não as contradições sociais) é o mal a ser eliminado.
Os sionistas não se manifestam massivamente nas ruas (tentam mas não conseguem) possuindo, no entanto, grande poder de oferecer fácil cognoscibilidade e aceitável emulação para tocar adiante o tratamento com hostilidade da população palestina. Esta verdadeira contra-argumentação negacionista de direitos é forte no interior das sociedades burguesas, dedicadas a manter os argumentos pró-política social genocida imersos num quadro mais amplo de dominação de classes, induzindo a desvantagem política da classe trabalhadora. Além disso, sem perder de vista as ameaças da formação de blocos contra-hegemônicos (como os BRICS), o poder do mainstream dos universos político e econômico, além do comunicacional, que apoiam sem restrições o Estado sionista, objetiva gritar aos quatro cantos que o botão “guerra” ficará ligado o maior número vezes e o maior tempo possível. Eles querem replicar os mecanismos de condicionamento da classe trabalhadora contra os Estados Nacionais que de alguma forma ameaçam a dominação imperialista inter-atlântica.
Retida durante algum tempo por injunções políticas derivadas das preocupações do presidente norte-americano em conter os danos causados no seu eleitorado com o apoio sistemático ao Estado sionista – em um delicado momento de início da campanha eleitoral e a consolidação da candidatura competitiva do ex-presidente Donald Trump –, o ataque a Rafah indica a consolidação tanto de um fim quanto de um recomeço. Quando a agressão terminar ficará claro qual a futura política do Estado sionista para a Faixa de Gaza.
Em nossa conclusão, para além da gestão do “sionismo interno”, a política social genocida funciona simultaneamente para criar mecanismos subjetivos de sujeição moral e psíquica do mundo do trabalho ao capital; o Estado sionista é o executor perfeito desta metafórica construção de uma hierarquia social mantida tanto por hegemonia (para os judeus de origem europeia e outros poucos grupos que recebem direitos altamente regulados do Estado sionista) quanto por coerção (afetando brutalmente apenas o povo palestino), ambas dimensões incontornavelmente construídas por argumentos pusilânimes. É assim que funciona o Estado burguês sionista, numa análise que se pretende herdeira de Antônio Gramsci: consenso/hegemonia e coerção/violência ficam em operação diuturna, lado a lado e com cem por cento da sua capacidade. Este é o Estado burguês perfeito!
Esta administração da reprodução da vida funcional criada e desenvolvida pelo “sionismo interno” é funcional e não deixará de ser sistematicamente utilizada para sustentar uma nova etapa do “sionismo externo”. Isto consolida e amplia a posição (sub)imperialista que o Estado sionista possui.
Por fim, nossa admiração e solidariedade irrestrita à jovem jornalista Bisan Owda, uma das vítimas dos constantes deslocamentos e agressões ao povo palestino na Faixa de Gaza. Bisan sustenta a produção de conteúdos num contexto adverso, relatando com sensibilidade e profundidade toda a dramaticidade o cotidiano de seus compatriotas. Não desiste de ser resiliente, de bem com a vida e uma saudável intérprete do povo palestino, da sua cultura e identidade. “Hey everyone, This is Bisan from Gaza. I’m still alive.”
Palestina livre do rio ao mar.
Notas:
[1] Cf. Edward P. THOMPSON, “Eighteenth-Century English Society Class Struggle without Classes?”, Social History, vol. 3, n 2, may 1978.
LEIA EM PDF: GAZA ANO ZERO, PARTE 6