Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 18]

As declarações sionistas de que eliminariam fisicamente o islã político independentemente dos danos colaterais causados não nos parece conter toda a essência da sua estratégia

Bernardo Kocher

Épico e impressionante é o espetáculo documentado e divulgado mundialmente da caminhada dos desalojados na Faixa de Gaza que estavam no sul do enclave no seu retorno à cidade de Gaza. O início do cessar fogo estabelecido em 19 de janeiro de 2025 ensejou por parte das vítimas da política social genocida do Estado sionista uma humana reação de busca de identidade territorial. O contexto trágico e a plasticidade das imagens de dezenas e dezenas de milhares de cidadãos imolados durante longos 15 meses em meio à destruição física total do seu habitat fornecem elementos sensoriais substantivos para uma reflexão do processo ora em curso da ocupação da Palestina histórica. Também consideramos que, de certa forma, esta situação demonstra a atual forma da gestão política da classe trabalhadora em todo o mundo capitalista. Devemos considerar que a democracia política não exclui a implementação de um genocídio como forma de controle social!

Tudo o que tem passado o povo palestino desde o início da usurpação das suas terras pelo movimento sionista desde fins do século XIX, e depois pelo Estado sionista a partir de 1948, está sintetizado nas impressionantes imagens tomadas na costa marítima do enclave onde vivem mais de dois milhões de habitantes. Mais do que simples imagens coletivas, são apresentadas despudoradamente para a impotente audiência em todos os cantos, que assiste a este retorno de forma passiva, uma dantesca cena de migração forçada perante tão medonha violência ilimitada. Aqui assistimos ao lado mais brutal da dominação burguesa, a coerção pura e simples como meio de regulação da vida social.

Muito se poderá dizer daqui em diante sobre o ocorrido neste período, que ora encerra mais uma catarse de episódios trágicos que tem se abatido sobre o povo palestino. Certamente desejamos que haja uma inflexão no interior da “batalha de narrativas” sobre toda a História da ocupação da Palestina pelos sionistas. Esta situação, ocultada pelos sionistas por mecanismos de reinventar e distorcer continuamente fatos não constatáveis na realidade poderá tornar mais ampla e divulgada, além de criticamente analisada pela sociedade civil de diversas sociedades, o que representou esta “sessão” de genocídio praticado pelo Estado sionista em termos de negação de direitos básicos de um povo e sua nacionalidade. Tal ação é toscamente justificada pelos perpetradores como uma necessidade para as vítimas do Holocausto, desconsiderando completamente que os princípios do próprio genocídio do povo judeu está sendo mais uma vez aplicado, agora pelas vítimas deste.

O júbilo da população local com a cessação dos bombardeios em massa, bem como sua sensação de vitória sobre a proposta propalada pelo governo sionista em exterminar o islã político, repetidamente centrado no Hamas, é emocionante. Tendo se mantido vivos e centrados na necessidade de sobreviver, o povo palestino suporta as marcas da violência contra ele cometida demonstrando sua capacidade de metabolizar seu destino em função não apenas das vicissitudes do passado e do presente, mas também do futuro político de sua nacionalidade.

Apesar do seu impacto emocional gigantesco, os episódios acima apontados nos dão uma mostra mais do que é a essência do sionismo e seu Estado do que propriamente das vítimas da sua política social genocida. A vitória moral do povo palestino, manifestada através do sacrificado percurso de retorno ao lar em meio a manifestações de alegria e à destruição material e perdas afetivas, contrasta vivamente com o cinismo e mal contido pessimismo dos promotores da política social genocida na Palestina. Estes só terão como conduta no futuro a patética tentativa de ocultar seus gestos pérfidos e inexplicáveis, principalmente se se considera os episódios que justamente produziram a reunião destas criaturas nas terras usurpadas do povo palestino.

Não se pouparam de se exibir e debochar nas redes sociais do sofrimento que estavam produzindo. Sabiam exatamente o que estavam fazendo e só não alcançam a dimensão exata da bestialidade de suas condutas por motivos fúteis e o desejo de se reproduzirem materialmente de forma parasitária. Participam de um processo de usurpação e limpeza étnica em meio ao favorecimento material e (a conferir empiricamente) transferência de rendas da economia mundial para o interior de seu Estado Nacional. Uma tese: o Estado sionista é uma democracia burguesa perfeita, pois conjuga dois elementos fundantes da instituição de um Estado (consenso e coerção) de formar perfeita e máxima, 24 horas por dia, todos os dias. É por isso que aos olhos de muitos a defesa deste Estado, através da prática social genocida contra o povo palestino, com o fim de combate ao terrorismo, é tida como normal. Todos os demais Estados Nacionais do mundo ocidental observam este proativismo com admiração e inspiração. Afinal de contas, regular a aplicação da coerção em meio ao sistema democrático de produção de consenso é uma tarefa árdua e desgastante para o modo de produção capitalista.

Assim, a batalha simbólica sobre o significado do ocorrido desde outubro de 2023 deve ser aberta. Até porque não poderemos desconsiderar que o processo de confinamento, criminalização e limitação da existência física e social do povo palestino foi iniciado há mais de cem anos e não dá mostra de ter se esgotado. 

Mas a disputa subjetiva do que ocorreu em Gaza, Khan Younis, Rafah, Nuseirat, Jabalia, além do que está se passando na Cisjordânia, pode iniciar o processo mortal de corrosão das bases ideológicas que justificam a política social genocida dos sionistas sobre o povo palestino. Cabe-nos manter a chama destes episódios viva, uma forma de honrar os que se foram e os que virão. Para isto, uma consorciação entre o que está ocorrendo na Palestina com os interesses objetivos e subjetivos da classe trabalhadora deve ser o caminho para desmontar o arcabouço genocida que se armou pelas potências econômicas (e democráticas) da Europa ocidental e dos EUA.

Malgrada a sensação de vitória que a população palestina manifesta, deve ser considerado, no entanto, o resultado destes 15 meses de massacre sob a ótica da funcionalidade que os sionistas estabeleceram como meta para a sua política social genocida. Eles agiram sob a cobertura de um grupo de patrocinadores e só encerraram os bombardeios e a invasão da Faixa de Gaza quando a vitória de Donald Trump produziu os elementos que os obrigaram a encerrar sua agressividade mais proeminente.

As declarações sionistas de que eliminariam fisicamente o islã político independentemente dos danos colaterais causados não nos parece conter toda a essência da sua estratégia. Sendo assim, de forma objetiva, não consideramos que o sionismo saiu derrotado por não realizar a limpeza étnica que se propôs e nem eliminou a militância armada do islã político. Por várias vezes ao longo da História da ocupação da Palestina pelos sionistas, eles procederam utilizando estratagemas retóricos extravagantes, logo em seguida praticando atos bem diferentes destes para alcançar objetivos que não eram manifestados publicamente. A impossibilidade de que o fim do Hamas fosse alcançado pelo bombardeio inclemente foi, certamente, considerada em todos os níveis da máquina de guerra sionista. Mas o grau máximo de destruição causado na Faixa de Gaza foi, em nosso modo de ver, o verdadeiro e único objetivo dos sionistas. Eles projetaram uma forma de se manterem ativos no cenário geopolítico mundial (que chamamos de sionismo externo nos artigos anteriores) e tentaram implodir por todos os meios possíveis as formas de reprodução da vida social e humana do povo palestino (praticando o sionismo interno). As consequências do que está acabando de ocorrer perdurarão durante muitos anos, o que fornece ao Estado sionista uma vantagem estratégica ainda maior do que existia anteriormente. Agora as tarefas da difícil reconstrução serão prioridade e os empecilhos criados pelos sionistas para que esta ocorra é uma forma de continuação da política social genocida.

Além disto, mais uma vez atuando na clave do seu sionismo externo, o bombardeio contínuo do Líbano ocorreu de forma indiscriminada, desconsiderando se havia presença ou não de membros do Hezbollah nas áreas bombardeadas. No sul do Líbano o sionismo externo colheu a sua maior derrota neste conflito. Suas tropas não conseguiram furar o bloqueio do exército do Hezbollah, dada as condições de excelente treinamento e posse de armamento deste, além das dificuldades da geografia montanhosa da região que impediam a formação de colunas de tanques Merkava. Daí a opção pelo bombardeio aéreo de todo o Líbano, uma forma de compensar a derrota no sul. O acordo de cessar fogo assinado em novembro de 2024 está sendo continuamente descumprido pelo Estado sionista através de invasões pontuais no sul, aproveitando-se da opção estratégica do Hezbollah de não mais sacrificar a população do país, expondo-as com reação militar aos covardes bombardeios de bombas norte-americanas pelo invasor.

A derrubada do Partido Baath do governo sírio foi mais uma vitória do sionismo externo. O grau de envolvimento de sua inteligência sionista e concessão de recursos estratégicos para que o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) chegasse ao poder deve ter sido considerável. De qualquer forma, podemos tranquilamente supor que o Estado sionista preferiu oportunisticamente participar da derrubada de um governo laico e anti-imperialista, substituindo-o por um governo representante do islã político. Junto com a Turquia, os EUA e, possivelmente, a França, o novo governo optou pelo estabelecimento de uma espécie de “não-Estado” islâmico, pois abriu mão da soberania territorial e dos equipamento públicos militares (destruídos pelo Estado sionista) como forma de se viabilizar politicamente. Trata-se aqui, como admitem os próprios governantes sionistas, de uma opção de risco, já que o passado de membro da Al-Qaeda da sua liderança, Ahmed Hussein al-Sharaa (conhecido publicamente como Abu Mohammad al-Julani) entre outros membros do HTS não é propriamente uma credencial válida para os sionistas dentro do perigoso quadro político do Oriente Médio. De qualquer forma, dada a fragilidade das estruturas estatais sírias trazidas com a mudança do novo governo (e após 13 anos de guerra civil e bloqueio econômico), o Estado sionista colheu aqui sua maior aquisição territorial. Largas parcelas do território sul do país e vários equipamentos públicos essenciais estão sob o controle direto de forças sionistas ocupantes, não havendo perspectiva de reintegração destas regiões no Estado sírio. Destaque-se aqui o controle do importante Monte Hermon no interior do território ocupado, importante ponto estratégico para implantação de inteligência. Outro objetivo deste expansionismo é o de interromper fisicamente, ainda no interior do território sírio, o fluxo de apoio ao Hezbollah no interior do território libanês.

A cessação do bombardeio da Faixa de Gaza está neste momento (ao menos) suspensa. Ela foi imposta pelo novo presidente norte-americano eleito, Donald Trump, preocupado em rotacionar as prioridades da política externa de seu país. Sua ênfase passa a ser a recuperação da competitividade da economia produtiva norte-americana, enfrentado o “fator China” de forma incisiva e, se preciso, com o uso da violência. A essência desta orientação é a troca da clave multilateralista que caracterizou o papel dos EUA no pós 2.a. Guerra Mundial para a unilateralista. Dentro deste quadro, o Oriente Médio, e a Palestina em específico, precisam estar modelados com uma submissão mais visceral à geoeconomia norte-americana, e não ficar estacionado em disputas colossais de hegemonias regionais. O papel do Estado sionista nesta nova orientação da política externa norte-americana contexto é claro: ele é tão importante agora como fora no passado, sua capacidade defensiva e ofensiva não será desconsiderada ou diminuída, mas suas prioridades nestes campos devem estar articuladas a conquistas pacíficas. Os Acordos de Abraão, pedra de toque da política externa do presidente Donald Trump em seu primeiro mandato, é a bússola de um processo pactuado de desenvolvimento econômico como base de uma convivência voltada para a acumulação de capitais no Oriente Médio. Supomos que os EUA atuarão neste mandato em relação ao Oriente Médio da mesma forma como a China procura agir, buscando convergências e não dissonâncias e conflitos. O atual governo sionista não parece considerar esta diretriz como válida na sua totalidade, pois enxerga a República Islâmica do Irã como um inimigo eterno que ameaça sua existência pelo potencial de desenvolvimento de armas nucleares. Não está claro no presente momento qual será a orientação do governo estadunidense quando ao potencial militar e, principalmente, atômico do país persa.

Nota-se aqui, conforme analisamos em artigos anteriores a este, a prevalência do papel de potência sub-imperialista, teoria desenvolvida no interior da Teoria da Dependência por Rui Mauro Marini,  Totalmente submissa e dependente das decisões e apoio material e político por parte dos EUA, o Estado sionista ainda conseguiu impôr sua perspectiva ao governo de Joe Biden. Na nova administração a orientação mudou e não restou ao governo de Benjamin Netanyahu literalmente “obedecer” a decisão do presidente recém-empossado e cessar o bombardeio massivo.

Fica como rescaldo deste processo a nossa conclusão e o desfecho analítico de elementos analisados anteriormente. Estes não podem ser tomados como uma antítese do tipo “perdeu” ou ganhou”. Há vários elementos parciais para uma análise conclusiva, que só poderá ser corretamente captada no futuro. Os elementos que alinhamos para uma futura análise são:

1) o Estado sionista não foi derrotado – Se houve derrota na implementação da política social genocida esta ocorreu em 7 de outubro de 2023, quando os sistemas de segurança colapsaram.

2) as vitórias do Estado sionista estão circunscrita a um processo mais amplo de manutenção do Estado sionista no Oriente Médio. Vários elementos podem ser aqui alinhados. O primeiro é o desejo (até psicológico) dos sionistas de eliminar fisicamente parcelas amplas (ou a totalidade) do povo palestino. Os bombardeios foram feitos quase sem nenhum limite durante a administração Biden. Esta situação corresponde a uma espécie de “razão de viver” de imensas parcelas da sociedade sionista. O Líbano é um segundo elemento a ser considerado como vitória parcial. Os ataques aéreos surtiram os efeitos desejados pelos sionistas, sacrificando sobremaneira o povo libanês. A possibilidade de reação dos mísseis do Hezbolla, armamento que as forças militares sionistas são mais débeis, não foi suficiente para servir de dissuasão. Os acordos de retirada das forças do Hezbullah para o norte do Rio Litani estão se implementando, mesmo com o flagrante desrespeito das tropas sionistas, que executam mais bombardeios e invasões pontuais em aldeias. A deposição do governo de Bashar Al Assad também pode ser contabilizada como uma vitória do sionismo externo, por motivos já explicados acima.

3) A expansão territorial do Estado sionista não ocorreu conforme temíamos e indicamos nos artigos anteriores. A ocupação do sul da Síria não é um alvo desejado neste momento pelos sionistas para a expansão e formação do Grande Israel. O norte da Faixa de Gaza não foi incorporado às ambições dos colonos e do poder militar sionista. As imagens do retorno acima demonstrado assim o demonstra. De qualquer forma o novo e quase exclusivo foco de atacar a população da Cisjordânia indicam que os objetivos agora abandonados não o foram de forma definitiva.

4) O Estado sionista, de certa forma, “perdeu” território. Trata-se aqui a parcela norte do território ocupado ilegalmente pelos sionistas, onde os colonos se ausentaram por questões de segurança. Diferentemente do que ocorre em Gaza, estes estão ainda na espera da resolução da situação no sul do Líbano.

5) Fica em suspenso uma avaliação criteriosa das perdas materiais e humanas do Estado sionista. A censura militar impede que uma avaliação precisa do que ocorreu com os bombardeios do Hezbollah e do Irã produziram. Além disso, o número de baixas (mortos e feridos) que informado pelas instituições sionistas é, com toda certeza, subestimado.

Sendo assim, entre perdas e ganhos, a sociedade sionista não aponta uma inflexão da mudança de quaisquer das políticas contra o povo palestino vigente há mais de um século. Esta é, certamente, a maior vitória do sionismo. As críticas contra o governo atual por parcelas dos eleitores (analisados em artigos anteriores) parecem drenar emocionalmente as insatisfações e frustrações para uma situação mágica: tudo muda se o governo de extrema-direita mudar. Quanto ao que ocorreu em na Faixa de Gaza os habitantes do Estado sionista de esquerda se dizem preocupados com a “situação humanitária”.(sic) Esta ilusão, desconsiderando a instalação de um mar de colonos de extrema-direita trazidos pelos governos radicais demonstra que o caminho eleitoral para qualquer mudança será árduo. A possibilidade de mudança real do sionismo interno para tratar da questão palestina é praticamente nenhuma, pois mesmo os sionistas não vinculados ao campo da atual coalizão de poder retórica e politicamente concedem muitas razões ao atual governo para justificar a política social genocida.

Esta série de artigos, dado o fim do processo mais intenso de aplicação da política social genocida do Estado sionista contra o povo palestino, não será descontinuada. Voltaremos a este assunto em próximas colunas de forma mais esparsa, quando houver justificativa para compreender e indicar aspectos centrais da política social genocida. Até mesmo por que consideramos que a situação que estamos tratando nesta série de artigos está muito longe de ser adequadamente compreendida e explicada. Faz-se necessário desenvolver conceitos que abarquem a natureza do Estado sionista e suas relações com o sistema internacional e, por conseguinte, com a estrutura de classes dos países que promoveram a política social genocida junto com os sionistas. Nosso intento é formatar uma análise para alcançar a compreensão de porque dentro de um mundo que valoriza a democracia e os direitos humanos praticou-se contra o povo palestino uma usurpação de direitos e negação de valores cruciais para o modo de produção capitalista. Categorias como “sionismo interno”, “sionismo externo”, “sub-imperialismo”, “geosionismo”, “Grande Israel”, “política social genocida” foram por nós utilizadas para alterar o eixo do debate tradicional que se funda em descrições e apelos e analogias (“colonialismo”, “apartheid”, “necropolítica”, etc.) que não ajudam a analisar a situação.

Palestina Livre do Rio ao Mar!