Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 5]

Bernardo Kocher
Prof.  História Contemporânea
Universidade Federal Fluminense
Publicado no Opera Mundi em 10 de maio de 2024.

É possível que os atos estudantis estejam adiando (ou impedindo) o ataque mais mortal de todos os até agora praticados contra o povo palestino, em Rafah

 

 

Neste início de maio de 2024, é imprescindível considerar que um fator indiretamente vinculado à política genocida aplicada pelo Estado sionista na Faixa de Gaza está se tornando relevante na opinião pública mundial: as manifestações dos estudantes universitários norte-americanos e, a partir deste “ponto zero”, o espraiamento dos protestos para vários centros acadêmicos da Europa, Ásia, Oceania e América Latina. É relevante e também alvissareiro que finalmente um verdadeiro movimento com base social de massas tenha ao menos potencialmente atingido a autoestima e, eventualmente, os interesses dos apoiadores da política social genocida em curso. Isto ocorre para além da imersão destes discentes na cultura humanística na qual eles foram formados, de respeito aos direitos humanos. Após meses de massivas manifestações de rua que se replicaram em várias cidades daqueles continentes, um verdadeiro ponto nevrálgico da questão foi finalmente criado com a inserção estudantil no processo de denúncia do que está ocorrendo. As passeatas e comícios desde o início da “guerra” não haviam logrado sensibilizar as forças políticas da sociedade civil do sistema imperial para o cometimento de seus crimes.

Embora não possa haver um levantamento preciso das instituições paralisadas, já que o número de instituições é crescente, sabe-se que a maior parte está nos EUA (principalmente), Reino Unido, França e Austrália. Encontram-se disponíveis na internet ações estudantis da mesma monta na Alemanha e Suécia. Temos ainda como inicial as informações de que o movimento alcançou a Cidade do México. É emblemático também que no interior dos próprios países perpetradores de uma barbárie inaudita contra uma população civil indefesa são produzidos os movimentos sociais contestatórios mais expressivos. A repressão para a retirada dos acampamentos já se iniciou, produzindo nos EUA alguns milhares de manifestantes presos, por vezes professores destes, e alguns feridos. Mimeticamente, replica-se em escala reduzida a conduta e o ódio contra os palestinos na conduta crítica dos jovens, que não raras vezes são vistos como “terroristas”.

Intuímos que um dos impactos das manifestações é que estas têm a capacidade potencial de interferir num timing muito próprio da política social genocida em execução; seu encorpamento e presença na mídia nas últimas semanas enseja uma necessária ação rápida por parte de governos e autoridades universitárias para minimizar seu impacto de denúncia, que elas realizam cotidianamente. Esta tensão criada pela proatividade dos jovens poderia radicalizar a opinião pública num eventual ataque sobre a cidade de Rafah, intenção que o Estado sionista está anunciando há semanas. Caso ocorra, é unânime a opinião de todos os analistas que assistiremos uma mortandade ainda maior do que a que até agora foi produzida pelos mísseis com tecnologia de última geração embarcada, lançados por aviões norte-americanos doados ao governo sionista. Com a altíssima concentração demográfica que se produziu no sul da Faixa de Gaza, os desalojados das outras regiões do enclave estão por um fio de serem alvejados pelas hostes sionistas sedentas de ódio fútil, mas sem a perspectiva de que com tal ato haja a libertação dos que estão no cativeiro desde 7 de outubro. Talvez (saberemos no futuro) as manifestações estudantis estejam adiando (ou quiçá impedindo) o ataque mais mortal de todos os até agora praticados contra o povo palestino. Assim, a continuidade do protesto estudantil ao longo das próximas semanas e meses pode se transformar num contrapeso importante contra a decisão de aprofundar ainda mais a política social genocida, já que caso este ataque ocorra, traria ainda maior legitimidade aos manifestantes. O risco para os genocidas é que o ponto de vista exposado pelos universitários extrapole para a sociedade civil, reforçando as marchas e comícios em favor do cessar-fogo, tal como ocorrido, por exemplo, na luta estudantil contra a Guerra do Vietnã.

A repulsa à ação militante dos seus estudantes fez com que as autoridades universitárias, uma após a outra, mobilizassem um forte aparato de repressão para dispersar acampamentos improvisados, mas solidamente ancorados num ponto de vista antissistêmico. Os estudantes não estão promovendo uma ação dispersa, já que apresentam uma proposição (como veremos) para a reavaliação de relacionamentos que as imponentes universidades norte-americanas e europeias mantêm com doadores e compradores – além de investimentos destas instituições em empresas produtoras de bens e serviços – que possuem laços figadais com o Estado sionista.

O que mais nos chama a atenção é o fato de que o diagnóstico e as reivindicações estudantis são precisas e firmes, sendo impossíveis de serem respondidas pelas autoridades universitárias com um simples “NÃO”. Caso isto ocorra, a denúncia dos universitários sairia fortalecida. Assim, sem se abrirem ao diálogo, somente dentro de um quadro de “crise” histriônica, as autoridades universitárias e governamentais podem tratar a questão sem se revelarem abertamente favoráveis à política social genocida a que fazem referência os universitários.

Protesto pró-Palestina em Londres, em maio de 2024.
(Foto: Steve Eason / Flickr)

A questão que se coloca então é: como e por que ocorreu o encontro das manifestações estudantis com a causa palestina? Para além da perspectiva humanista, os estudantes universitários possuem razões concretas (contradições na sociedade onde vivem) para se exporem na defesa de um povo altamente estigmatizado pela cultura política de seus próprios países.

A condição transitória entre o mundo juvenil e o adulto dos manifestantes não lhes dá força para rotacionar a estrutura de funcionamento extra-acadêmico das instituições universitárias; mas a agregação de vários indivíduos, promovendo catarticamente manifestações que não podem deixar de serem percebidas pela opinião pública, tem produzido stress no relacionamento confortável que os alunos das melhores e mais influentes universidades do mundo possuem com as mantenedoras das instituições em que estudam. Daí – e esta é a natureza do stress –, a denúncia trazida pelos acampamentos está produzindo incômodo nas relações sociais que defendem a política social genocida na Faixa de Gaza. Estas, por seu turno, demandam para seu pleno funcionamento uma aprovação unânime (ou quase) para a sua consecução. Se houver silêncio (ou poucas vozes dissidentes) um certo sentido democrático está assegurado à política social genocida. O pró-ativismo dos universitários, mesmo que circunscrito ao efeito “demonstração”, produz junto à sociedade da qual fazem parte uma exibição pública de uma denúncia sabidamente grave, o que expõe todo um sistema de poder de dominação sobre os destinos dos povos periféricos e a própria justificação deste mesmo poder.

O que estas manifestações também parecem indicar – considerando a História das lutas sociais norte-americanas nas quais os estudantes universitários tiveram relevo, notadamente a oposição à Guerra do Vietnã, ao Apartheid Sul-Africano e às invasões do Afeganistão e do Iraque –, é que os protestos atingiram o ponto nevrálgico do relacionamento que o Estado sionista e sua natureza burguesa (quase) perfeita mantém com os outros estados burgueses que lhes dão viabilidade através de um “convite”. Os estudantes se socializaram em barracas, o que nos lembra simbolicamente das precárias tendas em que a população da Faixa de Gaza está vivendo. Eles estão voluntariamente se ausentando de instalações confortáveis de seus alojamentos ou residências para produzir uma ação pontual coletiva de repulsa, que deveria ser automaticamente condenada por qualquer indivíduo que possua a consciência formada na cultura escolar norte-americana: de valorização de direitos humanos, de respeito à soberania dos povos, de liberdade de manifestação do pensamento, de justiça igual para todos, enfim; conceitos que foram transmitidos a eles desde a infância. Estes valores também estão impregnados na cultura política americana e a juventude está tendo o primeiro contato com os desvios e limitações destes honoráveis princípios ao adentrarem na vida adulta.

Depois de décadas de neoliberalismo ocupando o lugar de mainstream no pensamento social, agravado pela ascensão do neofascismo desde a ascensão de Donald Trump à presidência em 2016, o papel reflexivo intrínseco ao estudo universitário vem sofrendo reveses sem fim. Uma disputa de poder sobre o controle do capital simbólico trazido pela cultura científica encontra os estudantes em frágil posição, já que o controle dos bens imateriais (a serem) produzidos pela pesquisa científica está sob o domínio de uma espécie de plataforma reformista que intenta recorrentemente aplicar a regra do mercado como meta da produção científica. Nesta ambiência, vitoriosa na macroeconomia e na sociedade, participam na defesa desta orientação todos os tipos de negacionistas da ciência, especuladores da riqueza social e políticos focados nas oportunidades do “mercado” de votos que as eleições sempre ensejam. Todos eles ambicionam uma partição mais confortável tanto do poder político quanto do orçamento público; para que tal estrutura de poder seja viabilizada é necessária uma produção universitária apartada da polêmica, acrítica, e com um forte sentido prático de exclusiva formação qualificada para o mercado de trabalho. O que se almeja é a abolição da reflexão científica como um princípio autodefinidor da produção científica. As ações estudantis contra a política social genocida que está em andamento contra o povo palestino acentuam quase ao paroxismo esta disputa simbólica.

Diversos atritos entre o saber científico social e o poder constituído têm ocorrido nas duas últimas duas décadas. No campo de estudos sobre o Oriente Médio, o Estado sionista e o povo palestino, por exemplo, temos como demonstração máxima desta confrontação a literal exclusão de Norman Finkelstein da vida universitária norte-americana. Por obra e graça do poderosíssimo lobby sionista o autor consagrado foi “cancelado” por uma enxurrada de argumentos que não se sustentam em pesquisa empírica, mas que são úteis ao status quo do sionismo no interior da formatação da política externa norte-americana para o Oriente Médio. Finkelstein foi afastado de seu emprego (em 2007) e da possibilidade de obter outro emprego formal com a dispensa da prestigiosa Universidade De Paul, em Chicago, por alegações não acadêmicas. Segundo ele denunciou, em entrevista concedida em 23 de setembro daquele ano, outros acadêmicos também sofreram sanções por possuírem posições ou inserções na vida pública que contabilizassem a causa do povo palestino, entre eles: Rashid Khalidi, Juan Cole, Joseph Massad e Nadia Abu el-Haj.

Um outro episódio recente de cancelamento de autoridade do saber universitário foi a renúncia forçada da reitora Claudine Gay, da Universidade de Harvard. Primeira dirigente máxima da instituição de origem afro-descendente, ela é – segundo a vertente crítica que se avolumou após a sua manifestação pública sobre os episódios envolvendo o 7 de outubro – um exemplo do que deve ser combatido na atual orientação de admissão do público universitário em Harvard e em todas as universidades norte-americanas. Nesta oposição, alinham-se argumentos de que as instituições universitárias se transformaram em promotoras de reforma social e não de formadoras de quadros cientificamente relevantes. Esta questão já fora tratada na Suprema Corte do país, que em 29 de junho de 2023, derrotou por 6 x 3 a causa da “ação afirmativa” praticada há décadas pelo ensino universitário norte-americano. Por seu turno, o antigo caminho tradicional de obtenção de uma vaga universitária em Columbia, baseada em critérios que privilegiam a população branca do país (ter parente que tenha cursado na instituição, ser filho de doador ou praticar esportes), a chamada legacy admission, está sob escrutínio legal movido pela Lawyers for Civil Rights, que alega que a população branca tem muito mais chances de adentrar nos bancos universitários dos que as minorias sociais e/ou étnicas.

Este encontro – das políticas de afirmação com eventuais posições antissemitas – produziu um cenário de questionamento da política pública voltada para a formação universitária da população jovem. Esta “crise dentro da crise” formata um impasse que potencialmente fragiliza a posição dos estudantes pobres, afro-descentes, árabe-descentes e outros migrantes como produtores legítimos de conhecimentos. A partir do que já havia ocorrido com vários professores consagrados, os estudantes formam o quadro analítico do que os espera no futuro. Compreende-se, desta forma, o surgimento de um bolsão crítico de solidariedade ao povo palestino, já que esta ação incorpora intrinsecamente uma reação necessária à expansão da re-elitização da ascensão ao ensino universitário e da produção científica nos EUA.

As manifestações de caráter contestatório à política social genocida da juventude segue um percurso já conhecido de disseminação espontânea de outras manifestações libertárias presentes na História política do ocidente, tais como: a “Primavera dos Povos” (revoluções europeias em 1848), a “Primavera Árabe” (luta contra as ditaduras em vários países do mundo árabe-muçulmano em 2011) ou nas diversas “ondas” de democratização nas décadas de 1970 (América Latina) e na década seguinte (Europa Oriental e Ásia). Estas ocorreram simultaneamente, sem combinação ou articulação prévia por parte de quaisquer grupos ou partidos políticos, alcançando várias regiões, que construíram agendas de reivindicações similares. Respeitando as devidas proporções do que está acontecendo agora nos meios universitários em relação aos movimentos políticos gerais indicados acima, estaríamos assistindo ao que o sociólogo norte-americano George Katsiafiacas chamou de eros effect.

Uma vez se consolidando o eros effect para outros vários centros universitários para além dos EUA, a juventude acaba por denunciar uma limitação crassa na forma de como o Estado burguês contemporaneamente tem administrado sua reprodução social do ensino universitário, mesmo que a crise esteja de fato se desenvolvendo numa parte reduzida do Oriente Médio. A nossa questão para reflexão é: por que tal a amplitude que tomaram os protestos estudantis?

Os estudantes demandam o rompimento de relações com quaisquer empresas ou indivíduos que possuam vinculações ou que estejam atuando para a concretização dos projetos de limpeza étnica dos sionistas. Tanto o diagnóstico quanto a demanda são perfeitamente sólidos e objetivos, malgrado as dificuldades de, em primeiro lugar, romper a inércia da emulação passiva da agressão ao povo palestino amplamente estimulada pelos meios de comunicação e, em segundo lugar, apresentar meios materiais de substituição das receitas que seriam perdidas pela tesouraria das instituições de ensino caso o rompimento proposto se consumasse.

Por um viés voltado para a crítica ideológica, considerando o impacto que a ação estudantil possui como uma (inadequada) arma política, temos a avaliar o argumento de que os estudantes estão submetidos, segundo Demétrio Magnoli, a uma espécie de logro intelectual: a capitulação à miragem da questão “decolonial”. Esta tese é uma derivada do “fracasso moral dos intelectuais marxistas” apresentado como um “ópio dos intelectuais”, segundo Raymond Aron e lembrado pelo autor, que citamos abaixo:

“A tese ‘decolonial’, um estilhaço da política identitária, enxerga o mal absoluto na expansão global europeia (isto é, ‘branca’), fonte da opressão sobre os ‘povos originários’ e a ‘diáspora africana’. Para eles, a redenção não está no futuro, mas num passado mítico que precisaria ser restaurado.”

Argumentando fragilidades nas teses defendidas pelos estudantes, Demétrio Magnoli indica um cartaz destes na Universidade George Washington onde é proposto a saída dos “invasores” sionistas da Palestina, que deveriam retornar para a Europa; depois desta situação se tornar real os estudantes encerrariam os protestos. Tais orientações estariam sintetizadas na tese universal de luta pela libertação do povo palestino: “Palestina Livre do Rio ao Mar”. Nesta clave, alega o autor, haveria tanto um viés de anti-semitismo nos manifestantes (o que teria causado o afastamento da massa estudantil da causa) quanto um apoio não explícito dos manifestantes aos promotores dos atos de 7 de outubro. Fica clara a discordância visceral do autor do artigo em termos de falta de sincronia das críticas dos estudantes com a realidade concreta, ou seja: a colonização europeia transformou a realidade de suas colônias e não haveria mais espaço para um retorno ao mundo e valores pré-coloniais. O comentarista político assim exprime tal ponto de vista: “para onde podem ir os jovens ativistas ‘decoloniais’ ao descobrirem a impossibilidade de reverter a seta do tempo e cancelar o mundo nascido da expansão europeia?”

A questão central a ser considerada, para a compreensão da crítica aos atos anti-genocidas, está na compreensão de que o cerne das manifestações estudantis está nos EUA, onde: a) iniciou-se este ciclo de manifestações, sendo o país que possui um maior número de universidades envolvidas; b) por ter sido uma colônia inglesa; c) ter sua formação demográfica composta por todas as nacionalidades existentes; d) por ser fornecedor de armamentos e financiador mor do Estado sionista; e e) ter se transformado numa potência global. Do ponto de vista da política internacional (e das suas relações com os demais países soberanos) os EUA são, na lapidar definição do já aqui citado Raymond Aron, uma “república imperial”.[1] É neste contexto que encontraremos uma reflexão desta crítica das posições anti-genocídio dos estudantes: a temporalidade imprecisa da sua proposta. Como não haveria meios de se mudar a “seta do tempo” – e por esta concepção a crítica estudantil se tornaria condenável –, a política social genocida passa a ter um fórum de legitimidade, já que não existiria uma crítica possível a ser feita, a não ser o repúdio moral.

Pensamos que toda reflexão que traz consigo um sentido de inevitabilidade produz intrinsecamente uma forma anacrônica de compreensão da formulação das propostas políticas analisadas, principalmente se oriundas de setores mais frágeis das sociedades ou dos países dependentes e suas populações empobrecidas. Estes não possuem o condão de produzir narrativas e proposições que sejam constantemente reproduzidas e transformadas em ideias portadoras de um sentido histórico preciso. Afirmo tal situação porque a análise acima referida não considera um ponto central: o espaço da “decolonialidade” realmente não está solidamente fundamentado na evolução da “seta do tempo”, uma vez que a própria situação colonial (ou diríamos filo-colonial – já que não consideramos a relação do Estado sionista com a Palestina como uma relação metrópole-colônia) – se reproduz cotidianamente na vida do povo palestino. Estes e os seus jovens defensores estrangeiros não possuem condições de estabelecer um programa político imediato que ofereça ao povo palestino o que é praticado cotidianamente no sistema internacional, a soberania do território nacional. O apego à “decolonialidade” não é, assim, um capricho de uma vertente política e ideológica pretensamente derrotada pela História. O que notamos é a ausência completa por parte de seus críticos de a) uma percepção sensorial do que é a problemática abordada nas teses decoloniais sobre a questão da Palestina e b) qual é a História (dramática) do povo palestino desde o início da ocupação das suas terras pelo movimento sionista. Estas são situações cruciais que levaram aos episódios de 7 de outubro de 2023.

Karl Marx, em sua lapidar (“O 18 Brumário de Luís Bonaparte”) obra avaliando o golpe de Estado que na França republicana concedeu o poder ao restaurador da monarquia, Napoleão III, tratou com desenvoltura o malabarismo político de todos os atores que participaram da construção de mais um regime monárquico, agora saído do ventre da recém instaurada República, criado com as eleições (inclusive de um presidente da República) de 1848. Sem conseguir a estabilidade de sua orientação política desejada, em dezembro de 1851, o sobrinho do imperador Napoleão Bonaparte deu um golpe de Estado e restaurou a monarquia. Neste momento foi consagrado um padrão de governança que é para sociologia o conceito de “bonapartismo”, uma espécie de governo acima das classes sociais.

O autor da obra tece inúmeras considerações demonstrando que a derrota final das “jornadas de 1848” foi consagrada através de uma recomposição política e ideológica que foi rápida e drástica, capaz de derrotar a classe operária francesa e os socialistas de todos os matizes. Este processo de rearranjo das forças políticas francesas deu a vitória final no golpe de 18 Brumário (de 1851, não o de 1799) aos que justamente se opuseram ao desencadeamento da revolução em fevereiro de 1848. Estes últimos imprimiram um significado tradicional (das revoluções do século XVIII) às novas lutas sociais do século XIX. O resultado final da revolução vitoriosa e seu ocaso com o golpe de Estado em 1851, sinteticamente, foi a transformação do Estado burguês numa espécie de totem que foi conquistado pela tradição. Seria impossível para a classe operária francesa ocupar e/ou transformar o Estado, que se tornou burguês mas não democrático.

Sendo assim, duas características básicas podem ser alinhadas para a nossa análise: a) a economia (burguesia) segue um ritmo e a política (de reformas que incluíam demandas sociais trazidas pela classe operária) outro, daí o sacrifício de valores democráticos por parte da economia para viabilizar politicamente a taxa de lucro; e, b) existe uma compreensão temporal a ser introduzida na análise que não pode simplesmente respeitar a “seta do tempo”, já que as forças sociais e seus projetos políticos embaralham os tempos históricos, tanto de elaboração quanto o de realização das lutas sociais. Quanto a este ponto citamos Karl Marx:

“Não é do passado, mas unicamente do futuro, que a revolução social do século XIX pode colher a sua poesia. Ela não pode começar a dedicar-se a si mesma antes de ter despida toda a superstição que a prende ao passado. As revoluções anteriores tiveram de recorrer a memórias históricas para se insensibilizar em relação ao seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX precisa deixar que os mortos enterrem os seus mortos para chegar ao seu próprio conteúdo. Naquelas, a fraseologia superou o conteúdo, nesta, o conteúdo supera a fraseologia.”[2]

Concluímos que as corajosas manifestações estudantis possuem os mesmos limites que as lutas da classe operária francesa no golpe do 18 Brumário; elas agem numa espécie de vácuo político, já que estão no aguardo de um tempo em que seja possível que “o conteúdo supera(e) a fraseologia”. Assim, os estudantes e seus pitorescos acampamentos interagem com constantes ataques “bonapartistas” de interesses econômicos, impedindo-os de “colher a poesia” das suas manifestações de forma objetiva. A classe operária francesa fez a revolução, e esta se espalhou pela Europa através do eros effect, ampliando o espectro da formação da democracia no mundo ocidental; em 1851 a burguesia se dissociou da democracia de 1848 e se alinhou com a “monarquia burguesa” de Luís Bonaparte. Todas as forças sociais envolvidas na política social genocida no momento também estão enredadas nesta mesma “dança das cadeiras” de práticas políticas pautadas em princípios nobres, mas construídas sobre os escombros destes mesmos valores. O timing para que as ideias e as propostas se ajustem aos fatos de forma coerente, seguindo a “análise brumária” de Karl Marx, ainda não chegou! Os estudantes, mesmo possuindo um tom anacrônico e exagerado (e até equivocado) no uso da decolonialidade, garantem a “preservação íntegra da integridade” da luta contra a política social genocida praticada contra o povo palestino.

É nesta clave que podemos considerar a ação dos estudantes um ato nobre, de grande valor político e humanitário. Mesmo que submetidos à contradições inerentes à condição estudantil, e eventualmente da classe social a que pertencem, esta mocidade não possuirá no futuro um passivo moral a ser computado nas suas biografias. Eles não responderão, como os sionistas e seus financiadores, a atos vis, como o assassinato do médico palestino Adnan Al-Bushr. Ortopedista de relevo internacional, chefe de setor no Hospital Al-Shifa, o Dr. Adnan, de 50 anos, foi sequestrado pelas hordas bandidas de sionistas das IDF enquanto prestava serviços no hospital Al-Awda em janeiro deste ano. Ele se recusou a abandonar seus pacientes à sanha de criaturas sinistras. Segundo relatos, após torturas contínuas sofridas em instalações militares sionistas, o eminente profissional acabou por se tornar um mártir em 19 de abril, e a informação sobre seu destino somente agora foi divulgada. Allahu akbar!

O médico palestino Adnan Al-Bursh
(Foto: Reprodução ShehabAgency/Twitter)

Talvez seja contra uma certa “roda da História” que setores estudantis de várias partes do mundo se rebelam, apoiando incontinenti a causa palestina. Para os que defendem quaisquer meios bonapartistas de fazê-la girar sempre a seu favor, reprimindo a juventude sem dó nem piedade, saibam que possuem contra si a honra e a memória dos bons e dos justos que se dedicam a produzir bens e serviços para usufruto da coletividade. Este é o caso do estimado Dr. Adnar, que poderia trabalhar em qualquer hospital de ponta do mundo desenvolvido mas optou dedicar seu trabalho altamente qualificado e valorizado no mercado de trabalho aos seus. Ele e muitos outros prestadores de serviços básicos ao povo palestino mantiveram-se firmes e convictos nos seus postos de trabalho, não sendo incomum serem assassinados sem causa ou razão, defendendo a honrada posição que escolheram para passar por esta existência. Não se locupletaram com aqueles que roubaram a terra de um povo inteiro e “bonapartisticamente” alegam que defendem princípios e necessidades nobres.

Para todos os militares, governantes, políticos, jornalistas, financiadores, etc., além de defensores assalariados avulsos de ações que levam a massivas mortes brutais de uma população inocente, desarmada e sitiada há décadas, uma última palavra: parabéns aos envolvidos! (sic)

Para os que possuem um “coração de estudante”, como na canção de Milton Nascimento, bradamos: “Palestina livre do rio ao mar!”

Bernardo Kocher – 10/05/2024

 

Notas:

[1]ARON, Raymond. República Imperial. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.

[2] MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo, Boitempo, 2011, p. 27.

LEIA AQUI EM PDF: GAZA ANO ZERO, PARTE 5

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