O Movimento 26 de Julho e a Revolução Cubana em perspectiva histórica
João Ferreira
Fotos: Acima à esquerda, Fidel e revolucionários que tomaram o quartel Moncada em 26 de julho de 1953 deixam a prisão. Ao lado, em 8 de janeiro de 1959, revolucionários entram em Havana. Abaixo, à esquerda, protestos nas ruas de Havana. Ao lado manifestações de apoio ao governo socialista.
Tudo o que aconteceu em Cuba a partir de 11 de julho de 2021, situada a 145 quilômetros da costa norte-americana, parece constituir atos de um drama maior em desenvolvimento. Apesar do pequeno número de manifestantes, a frustrada tentativa de invasão do Instituto Cubano de Rádio e Televisão em Havana por um punhado de cinquenta pessoas, deu contornos mais nítidos à ameaça contrarrevolucionária. O imediato pronunciamento oficial do presidente Miguel Díaz-Canel presente em San Antonio de los Baños, na província de Artemisia, próxima à capital do país, paradoxalmente não os acusou nestes termos ou de gusanos, seu equivalente cubano; chamou-os de “revolucionários confusos e desesperados”. Devemos lembrar-nos que a linguagem sempre expressa relações de poder, forma política das relações sociais subjacentes. Para entender o drama se faz necessário, contudo, considerar a conjuntura atual do país de modo a situar os fatos numa perspectiva histórica. Aproveitando a oportunidade simbólica representada pela data de 26 de julho do ano corrente, na qual se completam sessenta e cinco anos decorridos do início da revolução cubana, façamos um exame crítico do processo revolucionário ocorrido em Cuba a partir do Movimento que a deflagrou.
Movimento 26 de Julho: o nome e os objetivos
A história de Cuba está marcada pela dominação imperialista e sucessivas ditaduras, como as de Gerardo Machado y Morales e de Fulgencio Batista Zaldívar. A trajetória deste último caudilho militar é fundamental para entender o sentimento nacional que conduziu à revolução. Batista fez parte da “Revolta dos sargentos” na derrubada da ditadura de Machado, em 1933. Autonomeando-se chefe das Forças Armadas com a patente de coronel, Batista controlou vários presidentes fantoches até ser eleito em 1940. Voltou a concorrer em 1952, mas, diante da derrota eleitoral, desfechou um golpe militar. Suspendeu a constituição de 1940, revogando as liberdades políticas e o direito à greve, e restabelecendo a pena de morte. Reconhecido pelos Estados Unidos, Batista era a expressão da ditadura militar aberta e indireta dos latifundiários das plantations de açúcar; realizou um governo corrupto e repressivo em meio a uma economia estagnada que aprofundava cada vez mais a miséria social.
Contra ele moveu-se inicialmente Fidel e Raul Castro e um grupo 165 homens que, em 26 de julho 1953, atacou o Quartel de Moncada em Santiago de Cuba na tentativa de conseguir armas para a derrubada da ditadura de Batista. Esta iniciativa foi então derrotada pelas tropas dele. O processo foi retomado pelo Movimento 26 de Julho (M-26-7), assim denominado para criar uma tradição revolucionária, em 12 de junho de 1955 sob a liderança de Fidel Castro e outros revolucionários. Possuía uma ideologia nacionalista e anti-imperialista inspirada nas ideias de José Martí. Os objetivos específicos tinham um caráter democrático e nacionalista, manifesto na proposta da redemocratização do país com o retorno à Constituição de 1940, a libertação do país do jugo imperialista norte-americano expresso no controle econômico e político do país desde o final do século XIX e a realização de uma reforma agrária.
Para entender as razões deste programa revolucionário é importante considerar que o capital monopolista estadunidense controlava 90% das minas e das fazendas de gado, 80% do serviço público e 40% das plantações de açúcar, dividindo com os ingleses o domínio absoluto da indústria petrolífera de Cuba. Ademais, graças à Emenda Platt, de 1934, o governo dos EUA possuía um enclave territorial na ilha, em de Guantánamo, onde instalou uma base naval até hoje em funcionamento. [Política Operária, Ano I, n. 1, janeiro de 1962: o imperialismo ianque prepara nova investida].
O M-26-7 tinha uma composição heterogênea, predominantemente pequeno-burguesa democrática cujo centro estava na Universidade de Havana: ao núcleo inicial formado por Fidel Castro, juntaram-se os jovens estudantes do Diretório Revolucionário de 13 de Março e da Ação Nacional Revolucionária, dirigida por Frank País Garcia. Durante os anos de 1955 a 1956, M-26-7 dedicou-se à estruturação de um amplo movimento legal e clandestino por todo o país, no qual se destacou a liderança de País, enquanto a direção do Movimento, Fidel Castro à frente, exilou-se no México, para organizar e treinar o núcleo guerrilheiro que daria início à revolução.
Contudo a literatura de esquerda, inclusive no Brasil, fortemente influenciada pelo foquismo debraysta, não destaca a tradição de luta do proletariado na história como a da greve dos trabalhadores do açúcar em 1956 e, mais, deixa na sombra da História a importância decisiva da participação das classes trabalhadoras quer na sustentação da guerra (1956-58), quer no desfecho do processo revolucionário, em janeiro de 1959. Esta participação, aliás, se fazia presente na “sección obrera” do M-26-7. Um dos líderes destacados desta seção era o dirigente ferroviário Antonio Torres Chedebeau, mais conhecido entre seus pares como Ñico, Margarito ou Ángel. Ele estava encarregado da direção do novo secretariado de trabalhadores eleito no Congresso dos Trabalhadores em Armas. Ñico integrou o Comando da Sierra Maestra, onde ocupou o cargo de coordenador nacional dos trabalhadores do MR-26-7. [Ecured. Enciclopedia colaborativa em rede, em idioma espanhol, disponível em https://www.ecured.cu]
No Exército Rebelde, ao lado da juventude democrática da pequena burguesia, estavam o proletariado e os camponeses.
A ação política e militar durante a guerra
O iate Granma que conduziu a expedição revolucionária partiu do porto mexicano de Tuxpan em 25 de novembro e desembarcou na Playa de las Coloradas, na província do Oriente cubano, aos 2 de dezembro de 1956. Após um início desastroso com grande número de baixas depois do desembarque do Granma – de um total de 82 revolucionários sobrou um pequeno grupo de aproximadamente 12 pessoas – o Exército Rebelde, conseguiu instalar una base guerrilheira em Sierra Maestra. Dois anos depois, em fevereiro de 1958 os rebeldes já contavam com 400 combatentes em suas fileiras. A história dos 12 sobreviventes é assim contada pelos historiadores a partir do encontro entre Fidel e seu irmão Raúl que teria indagado: ‘Quantos fuzis traz?’ -‘Cinco’ respondeu seu irmão. ‘Com os dois que tenho eu, sete! Agora sim ganhamos a guerra!’ [Fidel – Soldado de Ideias, 25 de julho de 2021. Desembarque do Granma: Para a liberdade definitiva de Cuba.
A desproporção de forças militares era evidente: pois as tropas de Batista chegavam a 50.000, dos quais 10.000 foram utilizadas para enfrentar a guerrilha. Foram intensas as ofensivas para cercar e destruir o grupo na Sierra Maestra entre abril e agosto de 1958. Mesmo assim, a campanha repressiva da ditadura terminou em fracasso.
Depois do assassinato de Frank País em 1957, o Movimento 26 de Julho decidiu desencadear, em 9 de abril de 1958, a greve geral para precipitar a derrota de Batista, retomando a experiência da derrubada da ditadura de Gerardo Machado em 1933. A tentativa, porém, resultou, devido a falta de preparação dos trabalhadores nas cidades, um saldo de centena de combatentes mortos e a clandestinidade ou exílio dos sobreviventes. Na Reunião de Altos de Monpié, realizada em 3 de maio de 1958 no atual município granmense de Bartolomé Masó, o conjunto dos revolucionários integrantes das organizações componentes do Movimento fez uma autocrítica e tomou a decisão de centralizar a direção, indicando Fidel Castro para secretário geral e chefe supremo da luta na serra e na planície.
Esta articulação num movimento unificado foi decisiva, mas sempre é importante ressaltar, como faz Ernesto Martins (Érico Sachs) no documento “Caminho e Caráter da Revolução Brasileira” (1970), as condições objetivas da luta: a guerra revolucionária teve início num momento de grave crise econômica e social (o desemprego afetava um entre quatro cubanos) e o país não conseguia vender a maior parte da sua colheita de açúcar, a espinha dorsal de sua economia. Apesar disso, como adverte Ernesto Martins em sua crítica a Marighela (“Sobre problemas e princípios estratégicos”), as forças armadas ainda não estavam destruídas apesar das derrotas e do número superior aos guerrilheiros em armas. O problema é que tais forças repressivas estavam incapacitadas de atuar contra as massas porque se declarou com uma greve insurrecional permitindo ao grupo guerrilheiro do M-26-7 entrar em Havana sem dar um tiro:
“Foi a combinação desses dois fatores, o da guerrilha, que possibilitou a greve nas cidades e a vitória dessa greve que permitiu à guerrilha penetrar nas cidades, que representou o traço fundamental da Revolução Cubana. Em Cuba não houve ‘Exército de Libertação Nacional’. A guerrilha foi o catalisador de um processo revolucionário, ‘um pequeno motor que punha em movimento um grande motor’, como disse Fidel. E os dois motores se movimentaram na mesma direção.” (Ernesto Martins. Caminho e Caráter da Revolução Brasileira, Parte III. A teoria e a prática, p. 183).
A conquista do poder: o governo de transição
A vitória da revolução a 1º. de janeiro de 1959 concretizou a proposta da redemocratização com a indicação de Miguel Urrutia para a presidência da República. Ele tinha sido o juiz que, em 1957, se colocara ao lado dos jovens na luta contra a ditadura de Batista e, por esta atitude teve de exilar-se. O nome dele foi lembrado por Fidel e pesou a favor o fato de ter não ter compromisso com nenhuma organização politica. Aceitou o convite para compor o governo provisório da Revolução, sendo nomeado no meio da selva de Sierra Maestra para onde fora conduzido por avião militar venezuelano carregado de armas aos insurgentes, em de dezembro de 1958. A presença do liberal Urrutia no novo governo teve o apoio da burguesia cubana – o que levou os Estados Unidos a reconhece-lo como uma garantia de coalisão nacional. Entretanto, nas primeiras horas de 1º de janeiro de 1959, enquanto o governo revolucionário tomava posse, Fulgencio Batista fugia para as Bahamas em avião com malas cheias de dinheiro.
A renúncia do primeiro-ministro José Miró Cardena, outro reconhecido advogado, em favor de Fidel Castro em pouco menos de um mês, obrigou os EUA a reverem sua posição. “Quando Fidel Castro assume o posto, faz uma reforma na Constituição de 1940. A partir desse momento, é o primeiro-ministro que tem o poder para fazer as leis e, portanto, o governo recebe a tarefa de executá-las”, explica Sergio Guerra Vilaboy, da Universidade de Havana. (BBC Mundo, 13 de janeiro de 2018. “A esquecida história de Manuel Urrutia, o 1º presidente de Cuba após a revolução – e antes de Fidel Castro”
O primeiro-ministro Fidel Castro promoveu imediatamente uma reforma na Constituição de 1940. De acordo com as regras legais vigentes, o primeiro ministro tinha o poder de elaborar leis, o governo de executá-las. Na crise que dividiu o governo, Castro renunciou e, na mobilização de massa convocada pelo M-26-7, obteve a renúncia de Urrutia, substituído pelo comunista Oswaldo Dorticós. A saída de Urrutia e Cardona passou a significar o fim das soluções constitucionais e a passagem do governo provisório para o de um governo revolucionário. A experiência concreta mostrou ser o caminho de um governo de transição para o socialismo. Ainda não tinha objetivos socialistas, dedicando-se inicialmente em satisfazer as reivindicações imediatas das massas trabalhadoras e destruir as bases sociais da ditadura de Fulgencio Batista. O ponto crítico da virada rumo ao socialismo foi a expropriação das propriedades imperialistas, em decorrência da associação entre o imperialismo e a burguesia cubana, à expropriação das propriedades nacionais (Aonde Vamos III) assumida por um governo revolucionário de base inicialmente pequeno-burguesa e camponesa.
A experiência cubana confirmou, entre 1959 e 1961, a linha revolucionária da Internacional Comunista ou III Internacional que, em seu IV Congresso (1922), adotou as teses da Frente Única Operária na luta contra as investidas do fascismo, principalmente na Itália: colocava-se então a necessidade de definir as condições de participação dos comunistas em governos operários e camponeses, na perspectiva de que o problema do poder fosse colocado em termos ainda não socialistas – ou seja, na forma de um governo de transição. Um passo adiante em momentos em que a classe operária se mobilizasse contra a opressão de classe da burguesia, mas sem a disposição ou a possibilidade para a batalha final pela conquista do poder. O termo transição tem aí um significado claro: a classe operária não pode governar por muito tempo à base das leis e das instituições do Estado burguês, assim como deixar as relações de exploração e a dinâmica da acumulação de capital seguir funcionando normalmente. Teria de atacar o sistema como um todo de frente, mas isto teria se colocar na prática do exercício do governo – uma experiência que, colocada em termos revolucionários, lhe indica o caminho a seguir. Ou, então, pela conciliação teria de capitular ou ser vítima de um golpe da reação burguesa, como a que se verificaria durante o governo da Unidade Popular liderada por Allende, no Chile entre os idos de 1970 a 1973.
Na experiência cubana, a cada momento de agudização dos conflitos com o imperialismo a revolução se aprofundava. Os primeiros choques de interesses entre o governo revolucionário e o do imperialismo estadunidense, representado por Dwight D. Eisenhower, ocorreram quando o governo revolucionário, para lidar com a escassez de divisas em dólar, optou por comprar o petróleo mais barato da URSS e decretou o seu refino pelas empresas norte-americanas (Esso, Texaco e Shell) instaladas na ilha. A recusa destas em obedecer ao decreto levou o governo a confiscar e expropriar as propriedades imperialistas. Em retaliação, o Congresso dos EUA aprovou a Lei do Açúcar, estabelecendo o boicote ao principal produto de exportação cubano para aquele país. A resposta do governo revolucionário veio com a reforma agrária e confisco das propriedades dos latifundiários mais poderosos. Todo este processo teve curso durante o ano de 1960, quando se inicia na verdade o bloqueio econômico do imperialismo à ilha.
Outro passo adiante foi a organização de milícias operárias e camponesas, constituídas por uma necessidade de sobrevivência. “Era o povo em armas, o socialismo num país americano”, como está escrito no jornal Política Operária. As consequências foram tiradas no dia 1º de maio de 1961, quando se proclama o caráter socialista da revolução e se dá início à transição para o socialismo em Cuba.
A guerra civil latente e a tentativa contrarrevolucionária da invasão de Cuba
Entretanto, o conflito com Urrutia e Cardona desencadeado logo no início de 1959 era a expressão da prolongada cisão no M-26-7 “cuja ala direita não acompanhou a transformação socialista e preferiu engrossar as fileiras dos refugiados de Miami” (Ernesto Martins – Érico Sachs, Aonde Vamos, Parte III – Governo de Transição, pg. 28) se desdobrou em guerra civil embrionária. Na medida em que o conflito com o imperialismo se aprofundava e a luta dos trabalhadores contra a burguesia em Cuba tomava contornos cada vez mais claros, a guerra tomou a forma de atentados contra alvos e prédios públicos, praticados por dissidentes financiados e armados, principalmente pelos EUA. Miami era o centro da contrarrevolução. Também aí a resposta cubana foi rápida e dura: a instituição dos fuzilamentos ou do “paredón”.
A ideia de derrubar o governo revolucionário foi arquitetada pela Central Intelligence Agency (CIA) em 17 de março de 1960 na forma de operações militares que não contariam com o envolvimento direto de tropas americanas. Apoiada por Eisenhower com a dotação de US$13 milhões (ao câmbio de 1 dólar = 5,20 reais, em 25 de julho de 2021, o equivalente a 67.600.000 reais), a CIA planejou a invasão da Baía dos Porcos, com desembarque de mercenários na Playa Girón, tendo por objetivo derrubar Castro para substitui-lo por uma liderança capaz de atender aos “interesses do povo cubano” e fosse simpatizante dos EUA. O recrutamento dos mercenários se deu entre os exilados em Miami e o treinamento aconteceu em bases no Panamá e Guatemala, com apoio até do general e ditador Anastasio Somoza, da Nicarágua. A CIA forneceu armas, equipamentos e suprimentos ao exército mercenário.
Em contrapartida, o exército cubano contou com o treinamento e armamento fornecido pela União Soviética. A força aérea cubana possuía aviões feitos nos Estados Unidos herdados do governo Batista.
O plano da invasão foi lançado em abril de 1961, apenas três meses depois da posse de John Kennedy na presidência dos EUA, com o objetivo de derrubar o governo recém formado em Cuba e assassinar o líder da Revolução, Fidel Castro
A ameaça da invasão era de conhecimento do governo cubano. Dias antes, atos de sabotagem e terrorismo aconteceram em algumas cidades cubanas. É então que surge “o povo em armas” a que nos referimos. Ernesto Che Guevara propôs armar a população civil, criando milícias locais. Ele teria dito que “todo o povo cubano é convidado a integrar a guerrilha urbana; todo o cidadão deve saber como usar uma arma de fogo para assim defender a nação”.
A invasão na Playa Girón localizada na Bahía de los Cochinos (Baía dos Porcos) teve por prelúdio ataques diversionistas entre 14 e 15 de abril, concretizando-se em 17 de abril. Partindo de Puerto Calazas, na Nicarágua, a frota de 7 navios denominada Brigada 2506 navegou sob a bandeira e insígnia da Libéria. O desfecho vitorioso para a revolução três dias mais tarde, com a rendição de uma parte significativa da brigada mercenária, desdobrou-se nas prisões e fuzilamentos dos envolvidos e traidores (popularizado na palavra paredón), na libertação de 60 feridos ou doentes e na negociação indireta da libertação de 1.113 dos presos restantes em troca de milhões de dólares em alimentos e remédios oriundos de doações privadas e de empresas em troca de benefícios fiscais, consumada em dezembro de 1962. Os presos e seus familiares a quem se concedeu o exílio foram recepcionados por John Kennedy em Miami, engrossando o principal núcleo da contrarrevolução cubana em solo estadunidense.
A luta pela sobrevivência sob o cerco imperialista
A declaração de Cuba como país socialista em 1º de maio de 1961 foi o ato político seguinte mais importante, consumando o processo revolucionário iniciado três anos antes. A história da pequena ilha encravada no mar do imperialismo norte-americano tem muitos capítulos, impossível de ser tratada sem o risco de uma ligeireza na análise dos fatos. Porém estabeleceu-se assim uma relação de dominação imperialista a distância, garantida por meio do bloqueio econômico e um sistema de alianças organizados pelo Estado norte-americano que perdura até nossos dias. Apesar do apoio da União Soviética, em virtude do qual a produção açucareira tornou-se a fonte de divisas de Cuba para garantir a sobrevivência material de seu povo, a situação de longo prazo colocava sérios desafios para a revolução. Os cubanos não poderiam contar e o comprovaram em mais de uma oportunidade, com o apoio político e militar ofensivos por parte da URSS, pautada no pacifismo e reformismo cuja expressão diplomática consistia em preservar o status quo da divisão do mundo praticada com os EUA e a Inglaterra na Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945. Os dirigentes revolucionários sob a liderança de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara procuraram então uma saída própria. Empenharam para tanto na Tricontinenal (1966) e conseguiram reunir o impulso revolucionário existente na América Latina com a criação da OLAS – Organização Latino-americana de Solidariedade, dentro do qual exerceram notável liderança sobre os movimentos de guerrilha em diversos países, inclusive no Brasil que vivia, desde 1964, sob uma ditadura militar.
Como observou Ernesto Martins a respeito das concepções de Régis Debray plasmadas na obra “Revolução na revolução”, o militante e o historiador francês – assim como os demais revolucionários aderentes da OLAS – foram incapazes de entender a própria experiência cubana ao elaborar uma estratégia de luta armada no subcontinente. [Ernesto Martins, Érico Sachs, Luta armada e luta de classes. 1968] Desvinculada da luta de classes, pautada numa visão política da pequena burguesia radicalizada à esquerda, tal concepção estava destinada ao fracasso no enfrentamento de forças desiguais e muitas vezes superior das ditaduras militares que passaram a dominar na região principalmente no Cone Sul (Brasil, Uruguai, Argentina e Chile).
Vale observar ainda que, na linha da OLAS, a defesa do internacionalismo limitava-se a uma defesa abstrata do caráter socialista da revolução pois não reconhecia no proletariado a sua força motriz.
O empenho direto dos cubanos em expandir a revolução pelo mundo, traduzido na frase célebre de Guevara de “criar um, dois, três mil Vietnãs” tomou a forma extremada do voluntarismo na incursão realizada por ele na Bolívia. Entretanto, com a execução do Che pelos militares bolivianos assessorados pela CIA em 8 de outubro de 1967, descia o pano da revolução. Cuba permaneceu isolada como a expressão da última onda revolucionária após a II Guerra Mundial [Ernesto Martins – Érico Sachs. Caminho e Caráter da Revolução Brasileira – Parte IV – Proletariado brasileiro e revolução mundial, pg. 11].
Cuba passou a existir, desde então, como uma sociedade quase fechada em si mesma, sustentada economicamente pela URSS mediante a compra de açúcar e níquel em termos preferenciais. Os ganhos assim obtidos permitiram uma planificação centralizada capaz de garantir um padrão de vida que, comparativamente a nós, seria considerado digno para todos. Mas a necessidade de sujeitar-se alianças políticas com outros países significava para o governo cubano estar a mercê de conjunturas sobre as quais não tinha interferência. Esta fase chegou abruptamente ao fim com a derrocada da URSS em 1991. A resposta do governo ao brutal vazio em que foi lançado o povo cubano veio com a política do chamado Período Especial, uma espécie de sucedâneo da Nova Política Econômica (NEP) soviética que, durante os anos de 1921 a 1928, reestruturou a economia russa com o retorno controlado ao capitalismo.
A história da revolução cubana tem sido, com maior ou menor êxito, a da luta para atender as necessidades básicas de seus mais de 11 milhões de habitantes. Expressa na garantia efetiva do direito à educação e à assistência médica para todos, o direito à habitação e a uma quota básica de alimentos para todos também [Victor A. Meyer, Um olhar sobre Cuba, 1998], e apresenta-se como uma forma peculiar de socialismo na qual a planificação, à semelhança da China de hoje, assenta-se no capitalismo organizado pelo governo do Partido Comunista. No artigo acima citado, Meyer admite que, apesar da inevitabilidade da “diferenciação social”, esta estaria sob controle do Estado mediante a taxação das rendas privadas.
E agora?
Passados 25 anos é preciso indagar-se se tal assertiva ainda tem validade. Os fatos parecem indicar o contrário.
A renda privada sofreu uma queda brutal em decorrência de mais uma volta no parafuso do garrote imperialista promovida anteriormente por Trump com 240 medidas ao bloqueio e reafirmada agora por Biden na presidência dos EUA. Daí as vozes de protesto da pequena-burguesia a qual, contudo, ecoam entre as massas do subproletariado cubano. Isso porque a perda de renda deve ter atingido outros tantos negócios inclusive de “biscates” realizados pelos milhares de desocupados crônicos que vivem na margem deste setor privado. Este “pilar” está drasticamente abalado. O problema parece ir além, dada a escassez de alimentos, de medicamentos e serviços e o subsequente aumento dos preços que afeta duramente a maioria da população dependente de salários e pensões.
Mais relevante é a questão do poder. Os protestos de 11 de julho de 2021 – divulgados na imprensa internacional como notícias a partir de entrevistas por telefone – deixaram de lado propositalmente o bloqueio econômico dos EUA, mas tocaram exaustivamente no problema da falta de liberdade do povo cubano, quer dizer, no monopólio político do Partido Comunista sobre a vida social em Cuba.
Não se pode desconhecer a influência desta questão nas esquerdas brasileiras: a maioria limita-se a desmentir a inexistência da democracia na ilha, apoiando-se na realização de assembleias horizontais e na forte participação eleitoral convergente a instâncias legislativas que, por sua vez, escolhem o governo; outra, minoritária, coloca a preocupação em defender a democracia como forma de organização política baseada no pluripartidarismo e no processo mediante o qual se constituem maiorias e minorias. É o ponto de vista defendido por Cid Benjamin no artigo “Cuba, democracia e participação popular” publicado em Outras Palavras.
Para uma esquerda que voltou as costas para a experiência revolucionária do proletariado é natural pensar desta forma. A rigor, repetem os mesmos argumentos defendidos por Karl Kautsky em “A ditadura do proletariado” (1918), criticados por Lenin em “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky” (1918). O social-democrata alemão pautava-se na defesa da maioria sobre a minoria constituída por representantes dos partidos e na garantia da sua renovação pela periodicidade do processo eleitoral. Defendia esta posição fundamentalmente para atacar a ditadura democráticas dos trabalhadores, ou seja, os sovietes (conselhos de deputados operários e camponeses). Nas palavras de Lenin, embelezava desavergonhadamente a opressão de classe, existente mesmo na mais avançada democracia burguesa.
Se lutamos pelo socialismo, precisamos consequentemente colocar a palavra de ordem do poder aos trabalhadores nas circunstâncias vigentes, a seu alcance. Significa retomar o entendimento do socialismo como uma fase de transição durante a qual a socialização dos meios de produção e sua utilização por meio do plano tem de ser exercida direta e inequivocamente pelo proletariado organizado e cuja referência mais avançada, histórica e politicamente, ainda são os sovietes de 1917. Certamente não se trata de pretender reeditar o passado, mas de assinalar a necessidade do controle operário do conjunto da economia ainda que, como o caso de Cuba aponta, limitado e marcado pelas contradições do capitalismo de Estado. A experiência de assumir a direção política é o próprio processo de transição, como ficou evidente naquele país, entre 1959 e 1961.
A presente situação criada com as manifestações de protestos de segmentos intelectuais da pequena-burguesia, mas também de camadas “confusas” e “desesperadas” do povo nas ruas de Havana e outras cidades da ilha coloca a liderança comunista diante do desafio de aprofundar o recuo em direção ao capitalismo ou, alternativamente, de preparar as forças do proletariado para levar adiante, mesmo sob a política de concessões ao capitalismo, uma prolongada resistência até o surgimento de novas condições de luta no plano mundial.
Ambos caminhos assumem a defesa da soberania nacional como sua pedra de toque e premissa de qualquer futuro, porém o primeiro constitui a direção política atual, organizada na forma de capitalismo de Estado sob controle do Partido Comunista Cubano, enquanto o último representa apenas uma possibilidade sustentada nas forças sociais dos trabalhadores que decidiram, naquele tempo tão distantes de julho de 1956, iniciar um processo revolucionário para lançar-se à conquista do poder.
Podemos nos indagar, face a apresentação deste desafio, se a vinculação entre a ordem social vigente e os ideais nacionais ainda tem a força transformadora demonstrada nos idos de 1959 a 1961: Cuba foi e ainda é, como escreveu Victor Meyer em 1998, a “fronteira viva entre jacobinismo e socialismo” neste século XXI?
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Nota do CVM: Imagens de manifestações em Havana em apoio ao governo socialista.
Veja no portal In Defense of Marxism