Diálogo sobre o Imperialismo e o Oriente Médio
O Centro de Estudos Victor Meyer publica a troca de mensagens entre os historiadores marxistas Vladimir Serge e Abdel Khaldun com instigantes análises sobre o golpe militar no Egito.
Em 19 de agosto de 2013 14:52 Abdel Khaldun : Caro Vladimir, Gostaria de saber sua opinião a respeito dos acontecimentos recentes no Oriente Médio. Valeria acrescentar que o golpe militar no Egito teve sustentação no movimento da Praça Tahir. Nos jornais de hoje se fala no desarmamento das milícias pelo Exército. Creio que a situação do Oriente Médio é, ao lado do episódio Snowden e seus desdobramentos (viagem de Evo Morales, enfrentamento EUA-Federação Russa), o que mais chama atenção na atualidade. A questão de fundo continua a ser a cooperação antagônica, a tal ponto que os EUA e seus aliados no Atlântico Norte se engasgam para justificar a inação. Mas esta conclusão tem de se basear nos fatos. Eis alguns comentários para ajudar nesta reflexão, “a toque de caixa”. Com a vitória dos “moderados” no Irã e agora a volta da ditadura militar no Egito, há uma linha simbolicamente percebida por todos na violência que atravessa o Norte da Africa em direção à Síria. A chamada “primavera árabe” derrubou ditaduras militares ou monárquicas e agora estas se reconstroem com apoio maciço daquelas mais estáveis e aparentemente inamovíveis de todas, a da Arábia Saudita e os Emirados. A ajuda americana de 1,5 bilhão de dólares dos EUA para o Egito é nada perto dos 12 bilhões que agora lhe destina a Arábia e os Emirados. Essa linha é uma divisão sectária entre xiitas e sunitas de caráter secular. A divisão sectária entre xiitas e sunitas constitui, do ponto de vista político-religioso, uma linha forte em todos os países e, no Iraque e na Síria, sob a forma de prolongadas guerras civis. A questão é saber se esta linha tem um atravessamento de classe para identificar interesses que são apoiados ou rejeitados pela aliança imperialista e seus sócios (médios e menores) no Oriente Médio. Talvez esta análise já tenha sido feita (há de se pesquisar). Aparentemente as “primaveras” foram obras de uma emergente pequena-burguesia cujos filhos, escolarizados e cultos, não conseguiam perceber seu lugar no futuro imediato de seus países sob controle ditatorial. Poderiam compor as rotas imigratórias que povoam o sul da Europa mas preferiram lançar-se contra os regimes nos quais identificavam o bloqueio às suas aspirações de ascensão social. Esses jovens expressam um desenvolvimento capitalista que no passado chamaríamos de “dependente”, não? Contudo, o que prevaleceu, do ponto de vista político, não foram seus porta-vozes ocidentalizados e sim os seguidores das irmandades muçulmanas. Elas, por sua vez, traziam consigo os trabalhadores? Mas quem são as classes trabalhadoras? Qual o seu nível de organização? Dispõem de sindicatos? Vale retomar a análise feita por você em outro momento. Um abraço, Abdel Em 20 de agosto de 2013 09:15 Vladimir Serge: Prezado Abdel, 1. O episódio mais marcante neste período é a retomada do controle do poder político pelos militares no Egito. Aqui está uma das maiores encruzilhadas da “primavera árabe”, dado o importante papel material e simbólico do Egito, país pertencente aos grupamentos a) do norte da África, b) mundo árabe, c) mundo muçulmano e d) Terceiro Mundo. Este episódio marca, em meu entendimento, utilizando-se a clássica Revolução Francesa como referência, uma espécie de guinada para a fase “termidoriana” da tardia “primavera”, queimando com uma velocidade estonteante a fase “jacobina”, representada neste contexto pela Fraternidade Muçulmana no poder. 2. Tal episódio não se explica, certamente, apenas pelo contexto interno do país, já que os militares a) são mantidos a peso de ouro pelos EUA (é o 10o. maior exército do mundo); b) possuem poder econômico (fala-se de 15 até 30% do PIB), tal como ocorre na Turquia e no Paquistão; c) sabotaram as iniciativas do governo de Mohammed Mursi em equacionar a crise econômica; d) se consorciaram com o poder internacional (econômico e político) para inviabilizar o recente governo eleito; e) se aproveitaram da confusão e insatisfação dos setores laicos da sociedade egípcia (temerosos com uma islamização da vida política e social e o aprofundamento da crise econômica) e se organizaram num pujante movimento popular (o Tamarod) – até mais expressivo do que as manifestações de janeiro de 2011 -, reunindo num só dia 17 milhões de pessoas na rua. 3. Aqui o link entre as fases jacobina e a termidoriana foi dado pela pequena burguesia, que se prestou de esteio a uma retomada do poder militar, tendo sido ela mesma responsável pela derrubada do governo Mubarak. Sua análise sobre este segmento é perfeita. 4. O “Antigo Regime”, ainda que calcado no poder militar, possuía um aparato repressivo próprio, ligado diretamente ao presidente (com cerca de 1 milhão de agentes dispersos em toda a sociedade egípcia, com 80 milhões de habitantes) e que, por este motivo, poupou os militares do desgaste de serem identificados com o governo Mubarack. 5. Quanto aos episódios da última semana, vemos um exemplo muito amplo de uma movimentação política onde a classe trabalhadora ajudou (até 2011) a por em movimento uma ação política contundente, sendo lograda por uma pujante classe média, surgida pelas transformações oriundas das privatizações, liberalizações econômicas, enfim pelo que se chama de globalização. Embora não tenha acompanhado detidamente este assunto, depois de 2011 o agudo desemprego, a lupenproletarização da classe operária (a única da região), desarticulou a voz dos trabalhadores que vinha se desenvolvendo há mais de dez anos, através de 3.300 greves duramente reprimidas. 6. A falta de liberdades públicas (= democracia) é fato basilar nas relações políticas em todo o mundo árabe-muçulmano. Ela impede qualquer cálculo político das classes sociais, defasadas que estão em relação a quase todas as demais sociedades (com exceção da África). A dominação monárquica-feudal ou ditadura civil (ou civil-militar) desgastou-se; mas o que colocar no seu lugar? 7. Sendo assim, o golpe militar no Egito (malgrado o imenso suporte popular ainda foi um golpe) é uma tentativa de articulação de uma CONTRA-REVOLUÇÃO pelas forças políticas locais, regionais e globais tradicionais: EUA, Europa, militares, sionismo, Monarquias do Golfo Pérsico, mídia e o que chamo de “pequena burguesia globalizada”. Cada um destes segmentos tem uma percepção mais ou menos coerente com a democratização do Egito e dos demais participantes da “primavera árabe”. Mas o que contou, neste momento, foi a necessidade de “estabilização”, impedindo que forças anti-sistêmicas (islâmicas ou conjugadas a estas) se articulassem em um projeto do tipo praticado pelo Irã, que conjuga capitalismo + aiatolas + xiismo + petróleo + hegemonia regional + ameaça de poder nuclear. 8. A derrocada da Fraternidade Muçulmana é, assim, um fato reacionário. Não apresenta nada às aspirações democráticas e sim um retrocesso em nome da contenção da expansão do chamado “islã político”. A sua derrubada não resolve nenhum problema político da região, apenas (re)acrescenta um elemento ditatorial ao processo político. Os problemas do poder exercido pela Fraternidade Muçulmana são imensos; a sua única virtude foi a tentativa de “desmubaraquização” do Egito, já que este pacto civil + militar que domina o Egito há seis décadas criou um sistema altamente monopolizado tanto do poder político quanto da riqueza econômica. 9. Apesar de tudo, não acredito que os militares vão ocupar o poder político eternamente. As idas e vindas dos setores médios urbanos irão mais cedo ou mais tarde reclamar. Veja-se a renúncia do vice-presidente e prêmio nobel da paz, Mohammed El Baradei. Uma nova onda política contestatória já se anuncia. Não acredito que a “revolução” tenha se esgotado. Quem sabe uma volta à fase jacobina? A principal variável aqui é a taxa de crescimento econômico: se a economia vier a crescer poderá limitar a classe média nas suas aspirações políticas. 10. Os militares vão agora procurar estabelecer uma nova forma de controle sobre os civis procurando a) preservar seus interesses materiais e, b) articular-se com a nova onda conservadora que se está formando no mundo capitalista. 11. Fato importante aqui é: como estabelecer uma política social para os excluídos? Da forma que está, com uma manipulação torpe, machista, calcado em valores sociais oriundos da sociedade agrária (antes da urbanização) e cruel sobre os setores mais pobres, a dominação política não mais funciona. Se se permitir algo mais liberal o poder da Fraternidade Muçulmana se apresenta como alternativa de poder. Modificações mais substantivas na dominação das classes populares demandam tempo e, fundamentalmente, transferência de riqueza social. Saudações, Vladimir Em 20 de agosto de 2013 06:00 Abdel Khaldun : Prezado Eleazar, Estou impressionado com o grau e principalmente a qualidade da sua análise sobre o Egito, epicentro político e, ao que indica, novamente histórico das mudanças em curso no mundo árabe do Oriente Médio. O processo em favor do imperialismo é determinado pela retomada do desenvolvimento capitalista nos EUA, UE e Japão mas tudo vai depender, como você bem assinala, pela capacidade política dos militares rearticularam a “sociedade civil” à margem do islamismo ou pelo menos da facção dominante deste (o termo irmandade sugere uma família com algumas tendências internas). Não sabia da existência de uma base de apoio civil ao regime militar (o Tamarod) e tampouco da desarticulação do movimento operário, o que aumenta as chances desse regime se consolidar com uma fachada democrática (bipartidária), tutelada, tal como vivemos entre 1964 e 1985. Apesar de tudo, ao invés do tradicional fatalismo (Maktub), vejamos o que nos reserva a luta de classes. Um abraço, Abdel Em 20 agosto 11:39 Vladimir Serge: Caro Abdel, O “Tamarod” surgiu lá por abril-maio de 2013. Rapidamente se alastrou como um incêndio. Os militares não se associaram com ele, apenas se aproveitaram do momento e deram o golpe. O movimento da sociedade civil sozinho não iria derrubar o governo da Fraternidade e aliados (salafistas e outros). Certamente este assunto precisa ser mais aprofundado e tomará um certo tempo para sua análise e conclusões. Meu temor: Tamarod = Rede (como da Marina Silva, no Brasil), mas com alguns ingredientes a mais. Quanto aos desdobramentos da atual conjuntura, é cedo para previsões sobre a permanência da onda contra-revolucionária. Um conhecido provérbio ídiche diz que “é bom ter esperança mas é ruim depender dela”. Abraços fraternos, Vladimir |