Crise climática capitalista e luta de classes no RS

Luta Operária, maio de 2024

 

O Rio Grande do Sul enfrenta a maior catástrofe climática de sua história. No dia 16 de maio de 2024, os números oficiais indicavam 151 mortos e 104 desaparecidos, além de mais de 538 mil desalojados. Cidades inteiras foram devastadas pela força das águas e outras tantas ficaram isoladas devido aos problemas nas estradas causados pela água.

Apesar de todas essas consequências sobre a população, em sua maioria trabalhadora, a principal preocupação do capital e seu Estado tem sido, como sempre, de garantir seus lucros. Com inúmeras estradas bloqueadas, as grandes empresas estão sendo impactadas sobretudo pela dificuldade de garantir a circulação de mercadorias. Por exemplo, o complexo da GM em Gravataí está parado desde o dia 1º de maio, por falta de matéria-prima e retorna a operar dia 20/05 com apenas um turno. A REFAP, em Canoas, seguiu operando durante a enchente, apesar de estar a 2 quilômetros da entrada do bairro Mathias Velho, um dos mais atingidos. Só reduziu a produção porque não estava conseguindo escoar a produção e ficaram com os estoques lotados. A Tramontina deu férias coletivas para 4 mil trabalhadores em Carlos Barbosa. A Gerdau paralisou sua produção em Charqueadas e Sapucaia do Sul. A Dalleaço, em São Leopoldo, foi uma das poucas grandes empresas do RS que foi diretamente afetada pela enchente. Outras empresas fora do estado também estão sendo impactadas. A Volkswagen estuda dar férias coletivas para os trabalhadores de três fábricas em SP devido à falta de peças. A montadora Stellantis, precisou paralisar pontualmente a produção da sua planta em Córdoba, na Argentina, também devido ao impacto da enchente na cadeia logística.

A Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS) tem falado que 94,3% da atividade econômica foi afetada. O que o presidente da FIERGS, Arildo Bennech Oliveira, não diz é que esse impacto é indireto. Em fala publicada pelo jornal Zero Hora, Oliveira mente descaradamente:

Nós temos hoje 90% do nosso PIB industrial alagado. A situação das empresas é muito difícil e precisamos destas medidas com a maior brevidade possível. Um dos pontos altos da nossa conversa, hoje, foi garantir empregos (se referindo a reunião da FIERGS com o vice-presidente Geraldo Alckmin). Então o crédito e as medidas trabalhistas são as questões mais urgentes para que as empresas possam manter os mais de 500 mil empregos diretos.

Sabemos que apenas uma pequena parcela das grandes empresas foi atingida diretamente pelas águas. A maior parte destas fica em polos produtivos em locais mais altos que o nível dos rios. Bem diferente do local de moradia dos trabalhadores, dos pequenos comerciantes e das empresas de pequeno e médio porte.

O grande capital além de não ser atingido diretamente, será favorecido por medidas governamentais. Eles estão enxergando grandes oportunidades em meio a tragédia. A FIERGS, por exemplo, pediu ao governo federal um pacote com mais de 40 propostas para beneficiar as empresas, o que irá representar 100 bilhões de reais em incentivos e isenções para as empresas com fábricas aqui. Neste pacote estão medidas que vão afetar diretamente os trabalhadores: suspensão dos contratos de trabalho, antecipação de férias individuais e coletivas, banco de horas, suspensão do recolhimento do FGTS e etc… Para que servem essas “urgentes medidas trabalhistas”, para usar as palavras do presidente da FIERGS? Na verdade estas medidas servem para aprofundar a exploração dos trabalhadores gaúchos em meio a maior tragédia de nossa história.

Muitas dessas medidas que estão no pacote reivindicado pela FIERGS já estão sendo implementadas, pois os acordos coletivos de diversas categorias já permitem banco de horas, antecipação de férias coletivas, suspensão do trabalho através de day-off, horas extras de 4 horas durante catástrofes e várias outras medidas excepcionais. Mas sem dúvida tudo isso irá se aprofundar com esse pacote.

Vejamos os estragos em sua totalidade: segundo levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) calcula-se em mais de R$ 8,9 bilhões os prejuízos financeiros das enchentes, sendo divididos da seguinte forma: R$ 2,4 bilhões desse prejuízo são no setor público, R$ 1,9 bilhão no setor produtivo privado e R$ 4,6 bilhões especificamente nas habitações destruídas. A prioridade da burguesia, sem sombra de dúvidas, será resolver esses problemas do capital e não os problemas habitacionais da classe trabalhadora.

 

A classe trabalhadora foi a maior atingida pela enchente e milhares ficaram sem casa!

Em mapa publicado pelo Observatório das Metrópoles, podemos ver claramente que a maior população atingida são bairros de trabalhadores pobres:

No mapa podemos ver em cinza as áreas que foram atingidas e em vermelho as populações com menor renda. É visível a concentração de população pobre e trabalhadora na maior parte das áreas alagadas. Em outro mapa do Observatório das Metrópoles, intitulado “Enchentes X Composição Étnico-racial do Território” (https://www.instagram.com/observametropoa/p/C7FSkwXuYYv/), é possível ver que nestes locais mais atingidos também há maior concentração de população negra. Nós trabalhadores, não escolhemos onde podemos morar quem determina é o capital.

Cenários como esses se repetiram em todo o estado, destruindo não apenas as habitações dos trabalhadores urbanos, mas também os meios de subsistência de dezenas de milhares de pequenos agricultores.

Mais de 600 mil pessoas foram expulsas de suas casas e hoje estão em casa de parentes, abrigos e até mesmo na beira das rodovias. Algumas começam a voltar para suas casas para ver os prejuízos e começar a limpar, mesmo que seja em uma área com risco de inundações. Além disso, muitos seguem indo trabalhar mesmo nessas condições.

Em relação à moradia, a grande maioria ainda busca soluções individuais. As pessoas que foram atingidas ainda têm algumas ilusões, de que vão conseguir vender suas casas para comprar em outro lugar. As que pagavam aluguel, falam em alugar em outro lugar sem levar em conta que o preço dos aluguéis em locais que não foram alagados irá disparar. Outros acreditam que é possível recomeçar no mesmo lugar e que o poder público irá tomar medidas para que novas inundações não ocorram. Tudo isso é reforçado pelo discurso dos governantes e da mídia burguesa em geral, de que as pessoas devem se preparar para voltar para suas casas.

Porém, para alguns milhares isso não será possível. As águas ainda vão demorar a baixar e parte das moradias foi devastada. Como não será possível continuar muito tempo em abrigos voluntários, a saída apresentada pelos governos municipais e estaduais na região metropolitana de Porto alegre é construir 4 “cidades provisórias” para desabrigados da enchente. Toda a estrutura será de lona. Estamos no começo do inverno. É absurdo que esse seja o plano do estado para milhares de trabalhadores!

Com as “cidades provisórias” o plano dos governos é desocupar os abrigos para que vida volte a “normalidade”, deslocando e concentrando grandes massas de trabalhadores (as) para locais isolados das cidades com maior facilidade para controle e repressão.

Porém não há necessidade de construir cidades provisórias de lona para abrigar os desalojados. Segundo dados divulgados pelo censo do IBGE de 2022, existem mais de 600 mil imóveis vazios no RS, desse total mais de 100 mil imóveis desocupados estão em Porto Alegre. Entram nesse grupo os imóveis para alugar, vender, ou vazio por qualquer outro motivo. A metodologia do IBGE não coloca nesse grupo os domicílios de uso ocasional, férias ou aluguel por temporada. Esses imóveis são destinados à especulação imobiliária, servindo para atender as necessidades dos capitalistas das grandes empreiteiras.

Toda essa catástrofe climática vai favorecer a burguesia de forma geral e este setor da construção civil especificamente, pois áreas de interesse desse setor, que há anos estavam em disputa com as populações locais poderão ser removidas sob a justificativa das enchentes. Claro que não sem a resistência dessas comunidades, as quais já estão se colocando em luta e podem impedir essas remoções.

A solução para o problema habitacional seria fácil, mas não sob o capitalismo, como afirma o próprio prefeito de Porto Alegre em entrevista realizada em janeiro deste ano. O Sul21 perguntou ao prefeito Melo sobre o grande estoque de imóveis vazios da cidade, sobre o que ele respondeu:

Eu respeito o mercado. Se tem alguém que tem 100 mil apartamentos vazios e não tá ganhando com isso, é culpa do capitalismo. Não sou eu, o prefeito, que vou intervir nisso… Enquanto for prefeito, vou trabalhar para ter subsídio para moradia popular. Agora, se tem gente que vai comprar apartamento de um milhão, de dois milhões, de três milhões ou de R$ 400 mil, isso é o mercado que resolve, não me compete intervir.

Sob a barbárie praticada pelo capital e seu Estado, até quando milhares de famílias terão que morar meses ou anos em baixo de lona, voltar para locais de risco, viverem amontoadas nas casas de parentes enquanto milhares de imóveis permanecem vazios?

Nos anos 1980, período de ascensão das lutas de nossa classe no Brasil, os levantes se davam nos locais de trabalho e também nos locais de moradia. As últimas e maiores ocupações que tivemos no RS foram nesse período, quando foram ocupados bairros como Guajurivas e Mathias Velho em Canoas. Isso faz 40 anos. Essa memória coletiva ainda existe entre os trabalhadores. Porém agora a situação é bem diferente: passamos por 40 anos sob a direção da conciliação de classes levada a cabo pelo PT, CUT e demais centrais, MST e etc. Devido à política de conciliação, estamos, como classe, num longo período de descenso da luta nos locais de produção. Não há organizações classistas grandes o suficiente para puxar lutas dessa envergadura no momento atual.

O capital atua com forte repressão, contenção e convencimento para evitar o estouro da luta de classes. Mas nada está parado, e processos espontâneos de ocupação por moradia podem voltar a surgir. Temos que estar atentos a isso e preparando formas de contribuir para esses processos de luta de nossa classe.

 

Estado x solidariedade de classe

Se não fosse o trabalho voluntário a tragédia seria muito maior, tanto em número de mortos e feridos como o desamparo para as necessidades mais imediatas dos atingidos. A maior parte dos resgates foi realizada por civis, em barcos de pequeno porte, alguns movidos a remo, ou mesmo boias. Essa solidariedade é fundamental e é de classe.

Mas afinal, qual tem sido a resposta do Estado burguês para os problemas enfrentados pela classe trabalhadora durante mais essa crise? A resposta do Estado foi lenta, desorganizada e muito pequena.

Isso não é ineficiência do Estado, esta é justamente a decisão política do Estado Burguês. Sua intenção não é priorizar a vida das pessoas com os resgates e acolhimento dos desabrigados, mas sim institucionalizar, burocratizar e controlar os espaços coletivos, através dos seus instrumentos: igrejas, associações, sindicatos e etc., para fazer a disputa eleitoral e servir o capital da melhor forma. Nessa tragédia, assim como na pandemia da COVID, fica explícito para a classe trabalhadora que o capital não é humano. As contradições do sistema ficam mais aparentes e é sobre elas que devemos atuar.

Se a resposta do Estado para socorrer os atingidos foi lenta e ineficaz, a resposta do Estado na repressão foi rápida. Centenas de agentes da Força Nacional, PF e PRF foram enviados ao estado, além de policiais de outras unidades federativas. Não para garantir a proteção das pessoas, mas sim para proteger a propriedade privada dos bancos e grandes comércios que correm risco de serem saqueados por absoluta necessidade.

 

Nossa posição enquanto Luta Operária

Podemos dizer que 4 focos de atuação são fundamentais: solidariedade de classe, luta por moradia, luta nas fábricas e articulação com outras organizações. Vejamos cada um deles.

Solidariedade de classe

Muito já foi feito e isso foi fundamental: Resgate de pessoas, arrecadação e distribuição de mantimentos, organização de abrigos voluntários para receber desabrigados e inúmeras outras iniciativas populares.

Nossos militantes se envolveram nas ações de trabalho voluntário em Cachoeirinha, Gravataí, Alvorada e Canoas. Fizemos uma campanha de doação com os nossos apoiadores e pessoas mais próximas para comprarmos os itens que eram mais urgentes como mantimentos, cobertores, materiais de higiene e limpeza. Juntamos e distribuímos doações, tanto para os operários da nossa base quanto para trabalhadores em geral. E buscamos neste processo nos aproximar de trabalhadores e grupos independentes de partidos e outras instituições do Estado para, enquanto organização política, identificar e estabelecer relação com estes trabalhadores que demonstraram potencial de luta e organização. Avaliamos que isso foi e está sendo importante.

Estar junto à classe no seu cotidiano prático, contribuindo nas suas necessidades mais imediatas para criar referência e se aproximar de trabalhadores que tenham um potencial organizativo.

Luta pela moradia

Uma semana antes da enchente tivemos uma greve de 3 dias na TDK e agora seguimos acompanhando e apoiando uma greve dos terceirizados da REFAP que já dura mais de 20 dias em Canoas.

Os ataques aos operários em Gravataí durante as enchentes foram inúmeros. Apenas a GM paralisou a produção. As demais fábricas seguiram produzindo e fazendo seus operários passarem por mais dificuldades. Engarrafamento de horas para ir trabalhar, sem água e sem luz em casa por dias, e etc. Durante esses últimos dias seguimos o trabalho de agitação política nas fábricas sobre toda essa tragédia e os ataques dos patrões.

Os ataques vão se intensificar ainda mais, como vimos acima com o pacote proposto pelos empresários ao governo Lula. Além disso, podemos estar certos de que haverá demissões e temos que nos preparar para denunciar isso e agitar entre os operários a defesa de nossos empregos e salários.

Articulação com outros grupos e organizações políticas

As posições políticas majoritárias que estão se colocando: a direita com o ataque direto ao governo, com fake news e terrorismo e a socialdemocracia defendendo o governo com a posição de fortalecer o Estado e propagandeando de que o Estado vai e já estaria “resolvendo” tudo. Porém ambas só estão preocupadas em se fortalecer e disputar as massas para as próximas eleições.

Por isso a necessidade de que organizações de esquerda se aproximem, mesmo que sejam pequenas, para preparar juntas frentes de atuação e disputa a essa polarização majoritária.

Não temos um campo classista de grandes organizações. Mas pequenos grupos começam a formular agitação e bandeiras de luta interessantes para esse momento. Essa é a única forma de fortalecermos um campo de luta classista, irmos encontrando pontos em comum e nos apoiando no que for possível, respeitando as diferenças que existem entre cada grupo ou organização.

Pontos de agitação:

  • Explicitar a contradição: há imóveis vazios para todos por isso somos contra as cidades provisórias (dentro desse ponto agitar o número de imóveis vazios). Essa pauta nos parece importante, ainda que a maior parte dos trabalhadores esteja querendo retornar para suas casas no momento atual. Mas a médio prazo essa discussão pode ganhar mais força.
  • Para os trabalhadores o governo federal vai repassar diretamente R$ 5.100,00 por trabalhador, estimando um gasto total de R$ 1,2 bilhão. O governo estadual irá repassar R$ 2.500,00 com um gasto total de R$ 50 milhões de reais. No total de recursos anunciados temos um bilhão e 250 milhões para os trabalhadores! Já os empresários estão pedindo 100 bilhões!!!
  • A luta em defesa dos salários e empregos será fundamental, provavelmente teremos um rebaixamento geral dos salários no RS, além de demissões massivas. Proibição de demissões.
  • Contra a suspensão dos contratos de trabalho e a redução de salários. Por isso defendemos redução da jornada sem redução salarial
  • Locais que é possível retornar para as casas defendermos a criação de condições técnicas para evitar os alagamentos.
  • Os trabalhadores não tem condições de ter melhores condições de moradia por receber salários baixos.
  • Agitar quais foram as medidas que os capitalistas e o Estado tomaram que geraram essa crise climática.

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