Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto palestino [parte 2]
A pretensa superioridade tecnológica e democrática de Israel foi viabilizada pela inserção mais que privilegiada da economia sionista na economia mundial
Na Palestina o fim da 1a. Intifada (1987-1993) marcou o início do “ajuste” local com a correlação de forças delineada no final da década de setenta, incorporando a agenda do islã político no interior da sua vida social; esta corrente político-religiosa diferia das forças já existentes por retomar uma visão belicosa para a solução do problema palestino, além da inspiração da religião como inspiração na condução da ação política.
O fim da URSS (1989) também contribuiu para criar um vazio de opções para a situação local, já que o encerramento da bipolaridade das superpotências também pôs fim à “Guerra Fria Árabe”, entre Estados adeptos do pan-arabismo e as “monarquias”. No novo contexto surgido no início da década de 1990, a primeira projeção para a situação palestina era de que o problema foi causado pela sua imersão no interior das tensões da bipolaridade, e, com o fim desta, tornou-se consenso a avaliação de que a paz seria finalmente possível. Mas esta teoria não logrou êxito na busca da solução através da implementação da fórmula dos “dois Estados”, como ficou claro na fracassada tentativa de encaminhar o problema em negociações conduzidas pela Organização da Libertação da Palestina para a implementação dos Acordos de Oslo, no início dos anos 1990.
A Faixa de Gaza não é causa do conflito regional atual mas, antes, é produto de um confronto que não foi delineado pela História do povo palestino. Encurralada fisicamente (terra, mar e ar) por Israel e Egito, abandonada tanto pela solidariedade árabe (pan-arabismo) e/ou muçulmana (ummah) quanto pela orientação humanista/civilizatória do Ocidente (direitos humanos), inviabilizada politicamente pelo logro de várias resoluções não cumpridas da ONU favoráveis à melhoria das suas condições, restou à sua imensa população, concentrada num pequeno enclave contendo altíssima taxa demográfica, conviver com sua realidade material precária causada pela “prática social genocida” dos sionistas. A única instituição multilateral que presta efetivo apoio às necessidades da população é a UNRWA, criada pela ONU em 1949 para tratar especificamente da sobrevivência material da população palestina, ou seja, para mitigar uma situação criada pela própria instituição criadora! Sobre ela pesa a responsabilidade pela desastrosa proposta de partilha da Palestina, tornada velozmente letra morta pela violência dos sionistas, que implementaram a “sua” divisão territorial pelo uso indiscriminado da violência. A dificuldade deste órgão multilateral em estabelecer sua legitimidade na resolução da questão palestina deu-se desde a tênue tentativa de reformulação do projeto de partilha original, como foi exposto em artigo anterior a este, sobre o assassinato do Conde Folke Bernardotte. Este episódio teve êxito em inviabilizar reparos à Resolução 181. Nenhuma consequência adveio (nem mesmo por parte da própria ONU!) para os executores deste ato terrorista.
A crise atual possui um marco histórico conjuntural basilar: o voto majoritário que o islã político obteve em 2006 nas eleições legislativas. Tomamos em conta que o resultado não foi simplesmente uma opção pela afirmação da religião como condutora da vida pública mas, antes, uma primeira votação definidora da representatividade política do povo palestino que se tornou plebiscitária, expressando claramente os fracassos de todos os envolvidos nas infrutíferas negociações para a implementação da fórmula dos dois Estados. A vitória do Hamas no pleito não ultrapassou os 45% dos votos, e a derrota do Fatah não foi inferior a 41%. Caso este resultado fosse indicado numa pesquisa de boca de urna, poderia ser considerado um empate técnico, se a margem de erro fosse de 2%. Mesmo considerando que na Faixa de Gaza a densidade eleitoral do Hamas foi mais expressiva do que na Cisjordânia, o pleito foi proposto para escolher representantes para o parlamento como um todo; talvez daí tenha surgido um ódio especial dos dirigentes sionistas para com a população de Gaza e a percepção distorcida que eles desenvolveram de que o islã político seria o marco definidor das perspectivas políticas da sociedade civil no enclave. Não, o resultado eleitoral refletiu uma resposta do eleitor palestino ao cotidiano de “negociações sem solução”, logo seguidas da brutal continuidade da “prática social genocida” sionista. Nesta clave o voto vitorioso do islã político neste pleito representou o “pelo menos eles querem lutar contra a ocupação do Estado de Israel e fazer algo pelos palestinos”, já que a OLP a) desistiu da orientação de confrontar o sionismo; b) não construiu o Estado da Palestina; e, c) tornou-se um apêndice da política sionista de expansão dos assentamentos na Cisjordânia.
Assim, constatamos uma realidade que deve necessariamente ser tomada em conta para a análise da crise atual: a população palestina não possui suficiente capital político acumulado para lidar com forças externas gigantescas que permitem os sionistas adotarem a limpeza étnica; não é crível, portanto, tratar a população que votou somente uma vez numa referência automática para a construção de uma representação política baseada no islã político. Tais forças externas, oriundas tanto da Europa e EUA quanto dos próprios países árabes, fornecem positividade e/ou leniência e/ou aprovação para a narrativa que, aproveitando-se deste suporte material e imaterial, incorpora o ponto de vista sionista nas suas decisões sobre a causa palestina. Com este ponto de partida favorável, o sionismo sente-se liberado de quaisquer ônus e, então, passa a acusar cinicamente o povo palestino pela origem dos problemas em que foram envolvidos. Enfim, a relação povo palestino-islã político na Faixa de Gaza não pode ser suposta em preconceitos, pois o isolamento proposital a que estão submetidos não fornece condições para que eles exerçam livremente suas opções políticas. Devemos considerar a pluralidade e riqueza de ideias e correntes políticas presentes na sociedade civil local.
A Faixa de Gaza é totalmente controlada pelo Estado de Israel nos mínimos detalhes. Isto é ferozmente implementado com vigilância milimétrica que a estrutura de inteligência sionista possui para espezinhar a vida dos cidadãos em nome do combate à insurgência. Acrescente-se a isto a exclusividade que o Estado sionista tem no fornecimento de água, luz e alimentos a mais de dois milhões de pessoas, criando um monopólio não econômico de suprimento de bens e serviços. Gaza é vítima do intencional “des-desenvolvimento”[1] após 2007, quando o cerco se tornou completo. As condições de vida impostas aos civis desarmados é exasperante, tornando a distópica realidade retratada no romance “1984”, de George Orwell, uma realidade concreta. Neste ponto nos parece que a argumentação sionista para (apenas tentar) explicar suas atitudes é a manifestação mais explícita do “duplipensar”, apontada pelo autor inglês para denunciar a política de propaganda do Estado totalitário que analisava ficcionalmente. As autoridades dos usurpadores possuem controle até dos celulares e dos endereços dos habitantes do enclave, exercendo a vigilância total de todos os aparelhos ao mesmo tempo! O nível de torpeza desta prática é viabilizada pelo “sequestro” e “cárcere privado” deste contingente populacional pelas autoridades invasoras. Para caracterizar a condição de reféns do Estado sionista, lembremos de passagem a tentativa da ONG “Free Gaza”, para tentar levar ajuda material à Faixa de Gaza em 2010. O noticiário da época retrata que a frota de navios civis foi invadida e tratada como se fossem barcos de guerra, mesmo tendo sido vistoriada pelas autoridades portuárias da Turquia, de onde partiram as embarcações. O Estado sionista alegava que os Tratados de Oslo dariam controle do mar da faixa costeira do enclave à sua autoridade naval, daí seu direito de proibir a aproximação da frota contendo ajuda humanitária. Mas, onde estaria o cumprimento dos demais pontos acordados em Oslo pelo Estado sionista?
O intuito político do sionismo é o de combater o islã político no seio da população palestina – leia-se em última instância o Irã, único adversário regional de relevo no momento –, molestando e desgastando civis moral e fisicamente. Por outro lado, a ambição do seu “nacionalismo teológico”, consorciado com um projeto sub-imperialista, é o de ampliar ainda mais seu território para formar o Grande Israel. Esta seria uma forma de, mais uma vez, colocar em movimento as mesmas forças de expansão que agora estão em operação sobre a população palestina, o que provavelmente ocorrerá quando a “solução final” (ora em curso) for concluída, num futuro próximo ou remoto.
Subsidiariamente a este intento, indicamos que neste percurso ainda podemos encontrar perspectivas de estabelecimento de novas oportunidades de negócios para os invasores, sendo a exploração de gás e petróleo na costa marítima de Gaza uma delas e a ambicionada construção do Canal Ben Gurion (ligando o Golfo de Akba ao Mar Mediterrâneo), em clara concorrência com o Canal do Suez, a segunda. Tais avanços do capitalismo do Estado de Israel não poderão ser efetivados em meio à brutal repressão da população originária, já que a manutenção das altas taxas de lucro destes investimentos requerem segurança extrema para a sua execução. Deve-se considerar, ainda, que a população de Gaza se recusa a aceitar o destino da geração que vivenciou o Nakba. Sua presença no terreno próximo aos dois empreendimentos torna-se, assim, um risco empresarial!
O sionismo dedicou à população civil do enclave uma hostilidade irracional baseada numa fantasia sublimada por um fato inverídico: os palestinos seriam um “proxy” da política externa iraniana. Esta percepção pode ser captada pela atuação das tropas sionistas após o início do ataque em 23 de outubro, que cada vez menos conseguem expor à opinião pública o objetivo militar de combate a um exército guerrilheiro. Parece que a bílis venceu a razão política no sionismo fazendo com que (sem nenhum tipo de ocultamento) fique claro para a cidadania global que o ataque à Faixa de Gaza se auto-justifica. Inúmeros analistas do que está ocorrendo nos dias presentes (na imprensa escrita e em reportagens dos meios de comunicação) partilham desta sensação. As motivações impulsionadoras do ataque (a vingança contra o ataque de 7 de outubro de 2023 e a libertação dos detidos nesta data) é afirmada e reafirmada retoricamente, mas parece diluir-se num mar de ações pérfidas e covardes, esmaecendo a agressão inicial como causa. Tal situação pode ser detectada nas patéticas, infantilóides, anti-profissionais e cínicas gravadas e divulgadas na plataforma Tik Tok pelos próprios soldados agressores (por orientação do seu comando) antes ou depois de praticarem ações “heróicas” ou se esmeraram em cantar, dançar, subtrair pertences ou rezar para se rejubilar da população deslocada. Estas catárticas manifestações de poder simbólico são puro exibicionismo patife, nas quais os soldados celerados acabam por demonstrar sem nenhum subterfúgio que o alvo da operação militar covarde contra a Faixa de Gaza não é nem nunca foi centralmente a defesa de “Eretz Israel” contra o terrorismo do islã político, mas o simples e puro ataque ao povo palestino para criar uma nova onda de “limpeza étnica”.
Estas atitudes, e todas as incontáveis manifestações nesta linha, de grande parte da população do Estado de Israel, dão vida, de forma sub-reptícia, à categoria “choque de civilizações”[2] (que não tem sido mencionada há tempos). Esta foi difundida como orientação normativa para tratar o Oriente Médio pela política externa norte-americana após o 11 de setembro de 2001 (e responsável por embasar a Doutrina Bush, de ataque preventivo) e parece retornar ao debate; agora como um “ausente-presente”. Por este caminho, os palestinos são árabes, árabes são muçulmanos, o Oriente Médio é mulçulmano, muçulmanos não se adaptam ao mundo moderno, as mulheres são tratadas de forma discriminatória no Oriente Médio, os palestinos não amam seus filhos, não existe democracia no Oriente Médio… de onde saem os terroristas.
Em nossa perspectiva, insurgindo-nos contra uma batalha de narrativas pedestre, consideramos que está em pleno andamento contra o povo palestino um processo de reformulação da dominação imperialista europeia e norte-americana para o Oriente Médio, contando (aí sim) com um proxy de relevo: o “48”, como é conhecido entre os povos oprimidos o “Medinat Israel” (Estado de Israel). Além disto, ao adentrar numa nova onda negativa do Ciclo de Kondratiev, notamos que a aversão ao povo palestino (agora quase transformada em uma neurose coletiva) leva ao paroxismo o que já é intensamente presente na sociedade sionista: as tendências xenófobas, racistas, fascistas e ultra-nacionalistas por setores que se sentem ameaçados por estrangeiros, produto do acirramento da competição entre nações. Esta insegurança reflete a busca de condições para o enfrentamento de uma pesada competição das economias nacionais face à tendência de queda das taxas de lucros, acentuada pela emergência de capitalismos competitivos da China e da Rússia.
Todo este intrincado contexto pode ser explicado pelo que o já citado Daniel Feierstein, eminente especialista em estudos de genocídios, chamou de uma “tecnologia de poder”[3]. Esta pode ser definida como: “(…) uma forma peculiar de estruturar –seja através da criação, destruição ou organização – relações sociais em uma sociedade determinada, os modos com os quais os grupos se vinculam entre si e consigo mesmos, e aqueles através dos quais constroem sua própria identidade, a identidade de seus semelhantes e a alteridade de seus ‘outros’”
O povo palestino, o da Faixa de Gaza em especial, está sozinho nesta caminhada. Quase nenhuma teoria ou grupamento político ou ideológico do ocidente se dispõe a alcançar a dimensão catastrófica do que se desenvolve nestes dias que correm com os habitantes da Faixa de Gaza, bem como as consequências para a vida social no futuro. A bizarrice na análise do problema começa pelo próprio sionismo, reação criativa sob a forma de nacionalismo, que procurou propor soluções institucionais para compensar séculos de perseguição ao povo judeu, sofredor na própria pele da “prática social genocida”. Surpreendentemente as vítimas fizeram as suas próprias vítimas ao aderirem sem dó nem piedade à prática de ações que eles mesmos julgaram (quando foram vítimas) condenáveis. Daí partem todo tipo de explicação “duplipensada” em quase todos os campos de reflexão ocidental para torcer e retorcer os fatos que, ao final, tenta atribuir aos palestinos a causa de todo tipo de infortúnio que o povo das “doze tribos” passou em milênios de diáspora.
Para o materialismo histórico, a classe trabalhadora em Gaza participa, mesmo que indiretamente, da dupla metamorfose do capital, D – M – D’. A mais-valia é produzida/realizada: a) pelo uso em grande escala de armas e munições caras, b) apropriação da renda da terra (expropriada do povo palestino), c) pelo controle social da insurgência com pesquisa e desenvolvimento de equipamentos com alto valor agregado produzidos e testados e depois vendidos para governos que enfrentam oposição popular, d) exploração de recursos naturais (gás e petróleo), e) elaboração de projetos de infra-estrutura estratégicos que podem alterar a geoeconomia da região (canal Ben Gurion) e, f) pagamentos ínfimos para a mão-de-obra palestina que é empregada precariamente na economia do Estado sionista. A solidariedade ao povo palestino deve se construir primeiramente pela meticulosa compreensão da economia política que envolve o sionismo e sua função usurpadora e parasitária no interior da exploração das riquezas produzidas no Oriente Médio.
Não devemos sucumbir à miragem de que a economia do país sionista é mais eficiente por que seus habitantes e suas instituições são superiores (democráticas, justas, modernas e racionais) às vigentes no mundo muçulmano. Esta pretensa superioridade tecnológica e a democracia política foi viabilizada pela inserção mais que privilegiada da economia sionista na economia mundial, que definimos em artigo anterior, já citada como sendo um “convite”; sem este aporte de transferência de riqueza social (sem a realização de agregação de valor através de trabalho) para o interior do Estado sionista, a sua história de sucesso econômico, político e até militar seria inviável. Em segundo lugar, devemos atuar continuamente pela divulgação militante desta realidade, considerando também autores, artistas, políticos, músicos, jornalistas, enfim, a própria cultura palestina como base da contestação ao Orientalismo[4] como forma de análise da realidade local. Louvemos também a iniciativa militante da torcida do time de futebol Raja Casablanca, do Marrocos, em entoar no estádio, durante uma partida, um verdadeiro hino de solidariedade e esclarecimento da questão palestina.
Neste sentido, gostaria de encerrar esta parte do artigo dedicando estas poucas palavras e análises desenvolvidas acima a Ghassan Kanafani, membro da Frente Popular de Libertação da Palestina. Escritor, professor, artista plástico, militante político, Kanafani foi capaz, na sua curta existência de 36 anos (assassinado em 1972), de compreender e explicar a situação palestina para os jovens e demais contemporâneos, estabelecendo um padrão de análise ímpar para lidar com a até então não totalmente compreendida dominação sionista. Ele se recusou a manter contatos sem objetivos com os invasores, já que este seria um “diálogo do pescoço com a espada”. Sigamos seu exemplo, propondo uma análise objetiva da economia política do sionismo.
Continua em 28 de março de 2024.
LEIA EM PDF: GAZA ANO ZERO, PARTE 2
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