Negociação e luta de classes: matérias do tempo adiante, por João Ferreira
João Ferreira
Encontraponto – 30/12/2023
Podemos afirmar que o espectro da luta de classes delineia-se novamente no horizonte temporal dos países do centro do capitalismo? A análise dos desdobramentos futuros da greve contra as 3 Grandes da indústria automobilística nos EUA[1], apresentada por Labor Notes, levanta esta perspectiva:
Todos os novos contratos propostos expirarão em 30 de abril de 2028. Com quatro anos e meio, eles são mais longos do que os acordos de quatro anos típicos dos contratos recentes das Três Grandes.
Fain disse que o UAW[2] quer dar tempo para que outros sindicatos alinhem os vencimentos de seus contratos com o UAW e entrem em greve juntos em 1º de maio de 2028 – Dia Internacional dos Trabalhadores. “Se quisermos realmente enfrentar a classe bilionária e reconstruir a economia para que ela comece a trabalhar em benefício de muitos e não de poucos”, disse Fain, “então é importante que não apenas façamos greve, mas que ataquemos juntos.”
Fain deu a entender que a luta por uma jornada ou semana de trabalho mais curta poderia fazer parte da campanha contratual do UAW em quatro anos e meio. Uma das exigências públicas do sindicato nesta ronda de negociações foi uma semana de 32 horas com pagamento de 40 horas. Os trabalhadores da indústria automóvel queixam-se frequentemente de serem forçados a fazer horas extraordinárias obrigatórias, incluindo 60 horas semanais (seis dias de 10 horas).
O Primeiro de Maio nasceu de uma intensa luta dos trabalhadores nos Estados Unidos para ganhar uma jornada de oito horas”, disse Fain. “Essa é uma luta que é tão relevante hoje como era em 1889.
Se a possibilidade da luta de classes está assinalada, não é contraditório deixar de apontar para um horizonte revolucionário em troca de um trabalhista, posto referir-se a uma campanha contratual dos operários com exigências colocadas ao grande capital? Por isso mesmo, talvez muitos venham a estranhar o título da presente publicação, uma vez que, num horizonte de ruptura com o capitalismo, negociação e luta de classes consistem termos antagônicos. O título deveria ser, assim, revisto para distingui-los por meio da conjunção “ou”. Não, reafirmamos o título: negociação e luta de classes. Os motivos serão apresentados na análise a seguir, à luz dos possíveis desenvolvimentos da recente greve contra as 3 Grandes nos EUA que o trecho destacado acima procura ressaltar.
A longa paralisação na Ford, Stellantis e General Motors de seis semanas, iniciada em 15 de setembro de 2023 deixou evidente como os problemas afetos à luta dos operários da indústria nos EUA são internacionais, presentes há várias décadas, como a contenção e inclusive rebaixamento salarial, a prevalência da contratação de trabalhadores por tempo determinado e dos contratos individuais sobre os coletivos. Durante a condução da greve, porém, o problema da intensificação do trabalho ficou de lado. Mesmo agora, quando a UAW levanta a reivindicação da jornada de 32 horas semanais, a ser assumida pelo conjunto da classe trabalhadora até 2028, deixa de indicar o problema de raiz, a saber, a exploração capitalista; mas a base sindical o identifica, como a operária de Katie Deatherage, empregada de longa data da General Motors, citada no primeiro texto do Dossiê[3]: “A GM tem uma coisa em que tenta eliminar uma porcentagem da mão de obra todos os anos. A velocidade da linha é mais rápida e os trabalhos são um pouco mais pesados porque não temos pessoal. Nossos ossos e nossas articulações não foram feitos para isso.”
A intensificação do trabalho, forma de aumento da exploração da mais-valia relativa, principalmente por meio de mudanças tecnológicas, com a incorporação de processos de Inteligência Artificial e a robótica, constitui uma necessidade fundamental para a continuidade da acumulação de capital. Na concorrência mundial e nas disputas interimperialistas, a intensificação do trabalho é o traço comum. O país mais avançado nesta direção aponta o futuro aos mais atrasados, com a força de uma lei.
É preciso, contudo, superar a ideologia da tecnologização das relações sociais que, sustentada na automação da automação, advoga o “desaparecimento do emprego” e a perda de relevância da força de trabalho industrial enquanto características do capitalismo em nossa época.
Por outro lado, em matéria de futuro, parece, à primeira vista, um tanto precipitado e mesmo ilusório estabelecer um processo para os próximos quatro anos e meio, dado que muita coisa intervirá para alterar ou mesmo desfazer os planos da liderança sindical do UAW.
Os operários, por melhor organizados que estejam no plano sindical, constituem uma força social submetida à burguesia, desenvolvendo suas lutas no interior de uma sociedade burguesa com todas as implicações e consequências que essa situação acarreta.
Entretanto, formular um caminho para o conjunto da classe trabalhadora – como Fain apresenta em seu discurso – modifica o sentido da luta sindical e facilita o entendimento dos obstáculos a vencer. Vale lembrar que nos deparamos com um movimento reformista. Até onde este movimento poderá se desenvolver e se as negociações emperradas no futuro podem vir a se transformar em luta de classes é algo que ainda não podemos prever. O processo decorrido até o momento permite, porém, registrar alguns desafios para esse sindicalismo.
Uma das dificuldades que o sindicato deve enfrentar é a nova “fronteira” das empresas fabricantes de veículos elétricos que se encontram localizadas na área sul do país, onde o operariado é mais conservador e com menor tradição de luta, e praticamente inexiste sindicalização. É nesta direção que o capital se move, em termos de investimentos e novas plantas; também é para onde terá de se movimentar o sindicato.
Outra, consiste em que o UAW precisa dar conta do apoio de sua própria base, como sinalizado nos resultados da recente greve. Conforme matéria publicada em 16 de novembro de 2023 pelo jornal New York Times a votação dos acordos feitos pelo sindicato com as empresas – que aumentaram o salário mais alto dos trabalhadores da produção em 25%, de US$ 32 para mais de US$ 40 em quatro anos e meio – mostra diferença notáveis: enquanto na Ford 21.818 aprovaram, contra 10.560 (ou 67%) e na Stellantis 19.741 aprovaram contra 8.477 (ou 70%), na General Motors a aprovação alcançou 16.431 contra 14.429 (ou 53%). Conforme a análise do articulista, os índices de aprovação refletem a importância maior dada pelo sindicato ao aumento salarial para a força de trabalho mais jovem, de modo que os mais antigos não ganharão mais, quando ajustado pela inflação, do que quando iniciaram seus empregos.
E no artigo do NYT vem à tona a existência de uma corrente sindical (a Unite All Workers for Democracy) que, tendo sustentado a vitória de Shawn Fain na eleição para a presidência do UAW, criticou os acordos firmados com as montadoras. Um aspecto merece destaque: conforme o artigo, pessoas ligadas a esta corrente “disseram que o departamento da General Motors do sindicato foi menos comunicativo e menos proativo na distribuição de informações sobre o contrato aos dirigentes e membros sindicais locais do que os departamentos da Ford e da Stellantis.” Talvez esse comportamento dos dirigentes, dentre outros fatores, explique porque o UAW teve uma vitória por pequena margem na votação em torno do contrato firmado entre o sindicato e a GM.
Essa manifestação crítica da Unite All Workers for Democracy sinaliza a existência do controle sindical sobre a massa operária, a saber, o caráter vertical da organização sindical, estruturado de cima para baixo, disfarçado pelos apelos à unidade da “família sindicalizada” e marcado por um forte paternalismo da direção sobre as bases. Mudanças neste plano dependerão do avanço das lutas, do aprendizado a ser feito pelos próprios operários.
Os obstáculos maiores às pretensões do UAW advirão das empresas mediante a adoção de medidas preventivas contra o sindicato, a exemplo de bloqueios à ação dos sindicalizados nas bases e mesmo sua demissão, e da contratação de novos empregados sem tradição de luta. Do ponto de vista político, o movimento reformista com uma linguagem “classista” representa um problema para a ordem burguesa que, desde os idos de 1937 e da II Guerra Mundial, não enfrenta um movimento sindical mais combativo. Diante da mobilização operária, a intervenção do Federal Bureau of Investigation (FBI) e da justiça é bastante provável. Um ataque ao sindicato inclusive poderá explorar o fato de que Shawn Fain, ao ser eleito com pouco acima da metade dos votos dos sindicalizados, certamente se defrontará com a oposição dos derrotados, marcados pela trajetória histórica de acordos com o patronato e de corrupção no uso dos recursos sindicais.
Que as dificuldades políticas são pressentidas por Fain e a liderança do UAW fica evidente no discurso dele à Comissão do Senado para a Saúde, Educação, Trabalho e Pensões na audiência realizada em 14 de novembro de 2023. A par de manter a visão e os termos usados durante a greve, como a de que o apoio do público americano à paralisação decorreria do fato de “estar farto de uma economia que funciona em benefício da classe bilionária, não da classe trabalhadora”, criticando a ganância corporativa, ou seja, os excessos, mas não colocando em questão o capitalismo e a exploração da força de trabalho, Shawn declarou que o UAW não pretende criar um “estado de bem-estar privado” para a indústria automobilística e sim a organização de todos os trabalhadores, para desfrutar dos benefícios do sindicalismo. Aqui aparece a novidade: para alcançar tal “igualdade” precisa da força do governo federal.
Pode-se dizer que Fain se apresenta como um herdeiro da corrente sindical do Congresso das Organizações Industriais (CIO, na sigla em inglês) a qual, nos anos 1936-1945, sustentou o New Deal [4] de Roosevelt. Ao apelar para o apoio do governo federal, está propondo ao governo Biden um programa similar, voltado aos que nada tem contra os que têm tudo, ou seja, por uma distribuição melhor da riqueza entre capital e trabalho. Lembremos aqui o objetivo da Lei de Recuperação Industrial Nacional, tal como descrita pelo presidente Roosevelt, em 16 de junho de 1933: “Na indústria, a mudança dos salários de fome para salários de vida confortável e emprego sólido pode ser conseguida em parte através de um acordo industrial que será subscrito por todos os empregadores”.
Se o pronunciamento de Fain também é uma forma de antecipar a disputa pela presidência da República que acontecerá em 2024, procurando situar o movimento sindical por ele liderado no Partido Democrático e de ajuda à candidatura de Joe Biden contra Trump, fica evidente que o movimento proposto tem, no final das contas, um caráter sindical apesar de ser colocado no espectro da luta de classes. O pedido de apoio do governo federal representa fundamentalmente o abandono de qualquer perspectiva de independência política de classe. Pretende ser apenas a corrente mais democrática – nos termos americanos, “radical” – Partido Democrático, a sua “ala esquerda” por assim dizer.
O conflito interimperialista entre os EUA e a China representa outra dificuldade para a organização da luta, caso venha a assumir um caráter aberto, de enfrentamento bélico, porquanto suscitará uma onda nacionalista capaz de sufocar as pretensões do UAW mediante o apelo patriótico e uma nova histeria anticomunista.
Retomemos aqui nossa reflexão inicial.
O traço dominante da luta operária sob o capitalismo consiste na negociação. Trata-se de um conflito que, longe da ruptura, integra o operariado dentro dos limites do sistema, às vezes um pouco expandidos por alguns ganhos parciais e provisórios. Cada luta, por mais abrangente que seja – e possa inclusive assumir um “caráter de classe” (no Brasil um exemplo significativo neste sentido é a “greve do pacto” de 1963, em São Paulo), não significa necessariamente que abra caminho a um confronto de classes aberto, ou seja, conduza a um processo revolucionário. Isso depende da correlação de forças (conjuntura) em cada fase histórica, a saber, se as classes dominantes estão ou não em condições de continuar seu domínio. Por enquanto e, por um tempo indefinido, “os de cima” continuam a segurar firmemente o leme do Estado (principalmente do seu “núcleo”, dos órgãos de repressão, justiça aí incluída), razão para serem sustentados nos meios de comunicação de massa; e se isso acontece assim é porque encontram apoio entre “os de baixo”.
Este entendimento transparece no discurso de Shawn Fain, tanto o transmitido por Labor Notes (a UAW quer “dar tempo” para que os outros sindicatos se movimentem na mesma direção), como as declarações no Senado, em 14 de novembro de 2023, solicitando apoio do governo para seus objetivos. Devido a natureza política da reivindicação (semana de 32 horas com pagamento de 40 horas para todos os trabalhadores) a tendência é da burguesia entender as posições apresentadas por Shawn Fain como um desafio, apesar da liderança da UAW pretender apenas melhorar a condição da massa operária enquanto força de trabalho, ou seja, encaminhar a luta nos marcos de um “horizonte trabalhista”. Por outro lado, um novo New Deal – tal como sugerido no pronunciamento ao Senado, mesmo subordinando os operários ao Partido Democrático e abrindo mão da sua organização política independente – constitui um objetivo inaceitável para os republicanos e a maioria dos democratas, completamente comprometidos com a dita “classe bilionária” ou com o capital financeiro, no qual os interesses de todas as frações da burguesia se encontram para definir a política do Estado.
A resistência da burguesia em atender as reivindicações educa os operários nas lutas, desenvolve hábitos de organização, desperta a confiança nas próprias forças e, assim, propicia o surgimento, entre eles, de um sentimento de classe. E, nesse processo, conjuntamente, que a organização sindical imposta de cima para baixo, venha a ser abalada com manifestações de autonomia nas empresas. Tal poderá ser a dialética das lutas a partir de agora. Os grupos de esquerda com um ponto de vista revolucionária precisam fazer uma avaliação política correta das lutas e de suas condições – o que, em si, constitui um aprendizado – e ajudar a difundi-la por todos os meios entre os operários, em todos os lados.
JF – 30/12/2023
LEIA EM PDF: CADERNO NEGOCIAÇÃO E LC
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Notas
[1] Ford, General Motors e Stellantis. Esta última é um grupo automotivo franco-ítalo-americano resultado da união da montadora ítalo-americana Fiat Chrysler Automobiles com a montadora francesa PSA Group (Peugeot e Citroën).
[2] UAW – United Auto Workers.
[3] A greve nas 3 montadoras e a atuação da UAW, apresentação de João Ferreira, publicado no portal do Centro de Estudos Victor Meyer
[4] New Deal – programas econômicos implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937 em consequência da grande crise capitalista de 1929.