Notas sobre o momento histórico atual – Parte I
As notas a respeito das características do desenvolvimento capitalista e papel do Estado no Brasil, das tendências do movimento sindical e do Partido dos Trabalhadores constantes no presente texto foram elaboradas com base nas discussões realizadas no Encontro Nacional do Centro de Estudos Victor Meyer, no Rio de Janeiro, em 15/09/2012. Os textos serão publicados no Portal em 3 partes:
I – DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E PAPEL DO ESTADO NO BRASIL
II – TENDÊNCIAS E DESAFIOS DO MOVIMENTO SINDICAL BRASILEIRO
III – A RESPEITO DO PARTIDO DOS TRABALHADORES
I – DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E PAPEL DO ESTADO NO BRASIL
por Coletivo CVM
A supremacia econômica e militar dos Estados Unidos sobre os demais estados capitalistas faz de uma guerra destes últimos contra a América, de saída, ter tão poucas chances de sucesso, que é de se descartá-la como possibilidade. Essa é a base material do Mundo (imperialista) Único de hoje, após a II Guerra Mundial.
August Thalheimer, “Linhas e Conceitos Básicos da Política Internacional após a II Guerra Mundial” (1948).
1. A relação de forças entre os países imperialistas, resultante do fim da II Guerra Mundial, continua a mesma que levou August Thalheimer, em 1948, a forjar o conceito de “cooperação antagônica”. A hegemonia dos EUA permanece inalterada nos campos econômico (reflexo disso é a manutenção do dólar como moeda mundial) e militar (sua máquina de guerra não possui concorrente à altura). Assim, o desaparecimento do campo socialista não restabeleceu as antigas contradições interimperialistas que levaram à II Guerra. A preservação até hoje da chamada “Aliança Ocidental”, cuja ação aberta mais recente foi a intervenção militar na Líbia, mostrou que a “cooperação antagônica” continua presente, com prevalência da cooperação sobre o antagonismo, quando está em causa a preservação dos interesses imperialistas comuns.2. A crise econômica que se abateu sobre o mundo desde 2008, levando recessão, estagnação ou baixo crescimento aos países centrais não alterou o quadro geral da “cooperação antagônica”, embora tenha aberto mais espaço para o exercício do antagonismo por parte dos “países emergentes”, potências regionais com aspirações globais. A recuperação econômica da Rússia, após a catástrofe da dissolução da União Soviética, com a preservação de parte do seu poder bélico, e o crescimento econômico excepcional da China nos anos recentes forneceram as bases para o exercício do antagonismo em nível global, como no caso da crise da Síria, onde a ação diplomática dos dois países inviabilizou a intervenção aberta do “ocidente”. A quantidade, entretanto, ainda não foi capaz de alterar a qualidade e nem a Rússia nem a China possuem hoje condições de enfrentar a hegemonia americana, rompendo o ambiente de cooperação e passando para a disputa imperialista aberta.
3. O Brasil, também considerado como participante do “grupo dos emergentes”, não tem a expressão econômica da China nem a expressão militar da Rússia, da China ou da Índia. Sua participação no cenário mundial é bem menos relevante, como mostrou a fracassada iniciativa de mediação na crise do Irã. Seu papel é basicamente na América Latina, onde busca ampliar sua influência, exercitando ora a cooperação com o imperialismo, ao aceitar agir como força interventora no Haiti, ora o antagonismo, ao rejeitar a ALCA e a criação de bases militares americanas na América do Sul. Caracterizar o Brasil como potência imperialista capaz de disputar com os EUA a influência sobre países da América Latina e da África Meridional é superestimar as condições econômicas, políticas e, sobretudo, militares do país.
4. O conceito de “cooperação antagônica” foi utilizado também no passado pela POLOP para descrever as relações entre a burguesia brasileira e o imperialismo e criticar aqueles que atribuíam um pretenso caráter anti-imperialista à “burguesia nacional”. A integração da burguesia brasileira com a internacional é de fato muito grande para permitir que o antagonismo se sobreponha à cooperação, numa base permanente. A burguesia brasileira não tem a ilusão de enfrentar o imperialismo americano nem tem interesse nisso, pois pode lucrar muito mais com o predomínio das condições de cooperação.
5. Entretanto, no quadro como o atual, de enfraquecimento relativo do imperialismo e propício ao exercício do antagonismo, é possível prosperar no país uma ideologia neodesenvolvimentista que, na ausência de uma burguesia anti-imperialista com interesses próprios, é defendido timidamente por frações minoritárias da burguesia industrial e, mais entusiasticamente, pela pequena-burguesia, com o apoio da oligarquia sindical.
6. Para o PT, se a anêmica burguesia brasileira não tem consciência de seus verdadeiros interesses, ele (melhor dizendo, a pequena-burguesia e a oligarquia sindical), dirigindo uma ampla coligação de classes e frações de classe, é que conduzirá à frente o projeto neodesenvolvimentista, com a intenção de transformar o país numa espécie de “nova Coréia”, ou seja, ultrapassar as barreiras do subdesenvolvimento, e adquirir uma expressão maior na geopolítica mundial.
7. As condições objetivas para a constituição do amplo bloco político que leva adiante o projeto nacional-desenvolvimentista foram dadas pela peculiar situação econômica mundial dos últimos dez anos. A extraordinária valorização das commodities, motivada pelo crescimento econômico chinês, e a fuga de capitais dos países centrais em crise propiciaram o acúmulo de divisas, a valorização do real, a diminuição drástica da dívida externa e o controle da inflação, via aumento das importações.
8. O quadro econômico favorável possibilitou também os aumentos reais do salário-mínimo, dos salários em geral e as políticas compensatórias do Bolsa Família, melhorando a renda dos trabalhadores e das famílias mais pobres. Os ideólogos do neodesenvolvimentismo afirmam que esse novo e fortalecido “mercado interno” teria sido o responsável pelo crescimento brasileiro nos últimos anos, sem explicar a razão para o crescimento negativo de 2009 e as medíocres taxas de crescimento de 2011 e 2012, apesar de todas as medidas governamentais de estímulo ao consumo.
9. O fato é que, apesar da melhoria na renda da população mais pobre, o baixo nível de investimento indica que a acumulação de capital no país é deficiente, há baixa produtividade (exceto no setor primário-exportador) e a trajetória de crescimento econômico é medíocre (da ordem de 2,8% ao ano com FHC e de 3,5% ao ano com Lula), incompatível com as pretensões de assumir um papel mais relevante no mundo.
10. A leitura das tabelas 1 e 2 ajuda a compreender a trajetória e alguns dos problemas do governo de Lula.
Tabela 1
Brasil
Evolução do PIB
2003-2010
O primeiro ano do governo Lula apresentou um quadro econômico tão estagnacionista que decepcionou muitos aliados.
No primeiro ano o novo governo seguiu exatamente as mesmas políticas do governo anterior. Resultado: corte na demanda, nos investimentos e aumento do desemprego. De acordo com o IBGE o investimento caiu em 6,6%. Como a renda cresceu em 1,1% e o crescimento demográfico foi de 1,3%, então ocorreu uma queda na renda per capita. Em face da queda do investimento, dos gastos do governo e do consumo, isto é, da demanda interna agregada, o PIB não foi negativo porque as exportações cresceram em 21%. Pode-se dizer que a reanimação das exportações se deveu aos custos salariais baixos e ao aquecimento da demanda externa por produtos brasileiros.
No segundo ano de mandato, a economia apresentou crescimento do PIB na ordem de 5,7%, de maneira que no período 2003-2010 a média anual foi de 3,5% com alto nível de volatilidade, como mostra a tabela 1.
O crescimento do setor exportador foi gradualmente se espalhando para a economia interna, através do único instrumento possível: o aumento da massa de salários. O IBGE apresentou informações que confirmam um aumento de 9,0% na massa salarial em 2004. Outro elemento importante para o soerguimento do mercado doméstico foi o aumento do volume de crédito, principalmente do crédito consignado.
Tabela 2
Brasil Indicadores de Salários e Consumo das Famílias
(Variação Anual em %)
2003-2008
A tabela 2 mostra que o Salário Mínimo acumulou variações reais positivas todos os anos dos dois mandatos de Lula, sendo que no período 2003-2008 acumulou um total de 37,0%; enquanto os Rendimentos Médios Reais cresciam apenas em 9,5% no acumulado do período 2003-2008. O Produto acumulou 28,0% de aumento, os trabalhadores receberam 9,5% na média e o salário mínimo teve um ganho real de 37,0%. Um valor que reduz a defasagem histórica do mínimo, mas mantém a defasagem da maioria dos salários, principalmente do setor público.
11. Para alterar essa situação, o projeto neodesenvolvimentista pretende promover uma espécie de capitalismo de estado, tendo os fundos de pensão de empresas estatais, os fundos sociais e os bancos públicos como os principais motores. O Estado incentiva a fusão de grupos empresariais brasileiros para que possam atuar como empresas mundiais, reforçando a exportação de capitais, que hoje já é expressiva, ainda que inferior à importação de capitais. Há incentivo também para a construção de um complexo industrial-militar, com a participação das grandes empreiteiras, de forma a diminuir as tradicionais fraquezas e a dependência nesse setor. A concessão em massa de bolsas de estudo no exterior também visa à promoção da independência tecnológica, hoje existente em parte apenas no setor primário (agricultura de exportação, mineração, exploração de petróleo em águas profundas, etc.).
12. A fragilidade do projeto neodesenvolvimentista deve ser encontrada na base sobre a qual se assenta. Sua base é um período longo de crescimento econômico, ainda que a taxas modestas, baixo desemprego e aumentos reais de salário, que permitiu uma ampla aliança em torno do governo do PT, sem tocar nos interesses fundamentais do capital financeiro, do capital industrial e do capital agrário-exportador, concretizando temporariamente o sonho da pequena-burguesia de harmonia geral entre as classes sociais.
13. A tabela 3 mostra dados importantes sobre o comércio exterior no período de governo de Lula. Observa-se que as exportações agrícolas (XA) mantêm uma superioridade importante em relação às importações agrícolas (MA), de forma que a razão XA/MA chega a atingir 8,55 vezes. Três conclusões se impõem: (a) a autossuficiência brasileira na produção agrícola; (b) o alto volume e receita das exportações não-industriais; (c) os megas superavits obtidos na comercialização de produtos agrícolas.
Tabela 3
Brasil
Balança Comercial (Total e Agrícola)
(Bilhões de Dólares) 2003-2009
Fontes: MERCADANTE (2010); BCB.
Quando se observa a parte inferior da tabela 3, relativa ao comércio externo total percebe-se que a razão XT/MT que já foi de 1,61 indicando que as exportações brasileiras pagavam as importações com um saldo de 60%, acusou uma queda acentuada para 1,14 em 2008 e 1,20 em 2009. São dados preocupantes quando se pensa em desenvolvimento econômico, pois aponta para a possibilidade de um processo de reprimarização da economia, isto é, do aumento da importância da produção e da exportação dos produtos primários (grãos, minério de ferro, etc.) no conjunto da economia brasileira, acarretando baixo nível de emprego e ampla poluição ambiental.
Outra informação importante contida na tabela 3 é a de que o saldo comercial agrícola superou o saldo comercial total em cinco anos da série, perdendo apenas em 2005 e 2006 por pequena diferença. Isto novamente indicaria uma forte predominância de bens primários na pauta e, por conseguinte, uma tendência à reprimarização da economia brasileira.
Resta lembrar que parte importante da dinâmica mundial recente dependeu da forte expansão da economia chinesa. Aquela economia cresceu num impulso tão forte que para sustentá-lo foi necessário uma elevação permanente da demanda por produtos básicos e semimanufaturados, especialmente minerais metálicos e grãos. É a elevação dos preços destes produtos aliada a uma procura sempre crescente que se pode chamar de “euforia chinesa”. Países ricos em bens primários, grandes fornecedores de commodities, como o Brasil são automaticamente arrastados pela “euforia chinesa”, tornando-se, também, por contágio, “eufóricos”.
Assim, pode-se creditar ao bom desempenho mundial, particularmente ao excelente crescimento chinês, os ganhos de exportação da economia brasileira, o que também indica tendência à reprimarização.
14. Um dos elementos fundamentais do desenvolvimento capitalista é a densidade da incorporação tecnológica aos produtos ou o peso do Produto Interno Bruto Tecnológico (PIBT). No caso brasileiro os resultados estão muito aquém dos países que efetivamente estão ingressando no clube seleto dos muito ricos.
Quando se examinam os dados de exportação quanto ao grau de intensidade tecnológica dos produtos percebem-se evidências de movimentos de reprimarização, mesmo que incipientes e de ausência de melhoria das exportações dos itens industriais. A parte superior da tabela 4 mostra que os produtos industriais de alta tecnologia sofrem uma queda de 33,52% na pauta de exportações, enquanto os produtos industriais de baixa tecnologia caem em 7,88%. Por outro lado, os produtos industriais de média tecnologia aumentam sua participação em 31,94%
Na investigação das exportações totais, parte inferior da tabela, observa-se que as exportações industriais de alta tecnologia sofrem uma queda de 40,89%, enquanto as exportações industriais de baixa tecnologia, também, caem em 18,10%. As exportações industriais de média-alta tecnologia decrescem de 5,40%, enquanto as exportações industriais de média-baixa tecnologia crescem de 11,33%. Finalmente, mas não em importância, os produtos não-industriais apresentam uma variação positiva de 45,98% superior a qualquer outra variação mostrada na tabela 4, seja positiva ou negativa.
Tabela 4
Brasil
Estrutura das Exportações Brasileiras
Por Segmentos de Intensidade Tecnológica
(Totais e de Produtos Industriais) (Percentual)
15. A alteração da situação econômica, especialmente se ocorrer a diminuição drástica do crescimento chinês, terá impacto direto sobre o Brasil, sobre a aliança de classes e frações de classe conduzida pelo PT e, consequentemente, sobre o futuro do projeto nacional-desenvolvimentista.
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