Sobre a Humanidade Socialista
A continuação torna esta assertiva mais categórica ainda:
A agressividade não foi criada pela propriedade; reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade era, todavia, muito escassa e se manifesta já desde o berço, quase antes que a agressividade tenha abandonado sua forma anal primária. […] Se eliminarmos os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda restará a prerrogativa no campo das relações sexuais, que estará clamando em converter-se na fonte dos mais fortes desgostos e da mais violenta hostilidade entre os homens que, sob outros aspectos, gozarão de igualdade.
Assim, nos adverte que o homem socialista não será menos agressivo e hostil que o homem burguês frente aos seus próximos, e que a sua agressividade se manifestará inclusive na mais tenra idade, na creche.
Observe que enquanto Freud reconhece na propriedade privada um forte instrumento de agressão, afirma de maneira mais dogmática que não é o mais forte desses instrumentos. Como sabe? Como mede a força relativa dos diversos instrumentos de agressão? Nós os marxistas, somos mais modestos e menos dogmáticos: não pretendemos fazer medições comparativas tão precisas que nos permitam comparar os impulsos sexuais e a agressão instintiva em oposição as necessidades, aos interesses e as compulsões sociais. Os impulsos instintivos existirão também, sem dúvida, no homem socialista – e por acaso, poderia ser de outra maneira? – mas não sabemos como se irão se refratar por meio de sua personalidade. Somente podemos conjecturar que o afetarão de maneira diferente que ao homem burguês. (Vamos supor ainda que o homem socialista ofereça ao psicanalista um material de investigação e conclusões muito mais rico e confiável, porque um futuro Freud poderá observar diretamente o funcionamento dos seus impulsos instintivos através de um cristal e não por meio de prismas deformadores da psicologia de classe do analista e do paciente.) Tampouco Freud está certo ao dizer que a propriedade é somente um instrumento de nossos instintos agressivos. Pelo contrário, a propriedade frequentemente utiliza esses instintos como instrumentos e gera suas próprias variedades de impulsos agressivos. Além disso, ao longo da história os homens organizados em exércitos têm matado uns aos outros pela propriedade ou por suas pretensões a propriedade; mas até agora não têm desencadeado guerras, exceto na mitologia, pelas “prerrogativas no campo das relações sexuais”.
Assim, pois, quando Freud afirma que a abolição da propriedade não irá alterar “as diferenças em poder e influência que são mal utilizadas pela agressividade” e não “irá alterar nada na natureza da agressão humana”, simplesmente incorre numa petição de princípio4[3]. E quando diz em seguida que “a agressividade […] reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade era todavia muito escassa”, sequer suspeita que foi precisamente a escassez da propriedade, quer dizer, a escassez material, o que destruiu a unidade da sociedade primitiva ao dar lugar a luta de selvagem pelos poucos recursos, lutas que a dividiram em classes mutuamente hostis. Daí, afirmamos que a humanidade socialista somente é possível em meio de uma abundância sem precedentes de bens e serviços materiais e culturais. Este é o ABC do marxismo. Um amigo meu, um velho e sábio psicanalista, com frequência me diz suspirando: “Ah, se Freud tivesse lido A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, quantos erros e falsos caminhos teria evitado!” Quiçá também tivesse evitado da argumentos a quem utiliza o homo homini lupus como grito de guerra contra o progresso e o socialismo e agita o espantalho do eterno lupus humano em proveito do verdadeiro e sanguinário lupus do imperialismo contemporâneo.
Bem que poderíamos concordar que a agressividade do homem socialista venha a se manifestar desde o jardim da infância “em sua forma primária” e em outras manifestações mais desenvolvidas. Entretanto, dependerá muito, entre outras coisas, do caráter do jardim da infância. Será que o imaginamos como um jardim de infância individual dentro da unidade familiar? Ou como um jardim de infância comunitário depois da dissolução desta unidade familiar? Suponhamos que em nossa hipótese sobre a humanidade socialista, este não viverá nada parecido com a atual família monogâmica, com seu nexo monetário e a dependência da mulher e da criança em relação ao pai. Vamos supor que a homem socialista esteja muito menos submetido, desde a sua infância, a autoridade paterna que os seus predecessores ou que não conhecerá em absoluto esta autoridade; e que, como adulto, será livre também em sua vida sexual e erótica, ou em todo caso, incomparavelmente mais livre que o homem burguês para obedecer a seus impulsos emocionais e a sua necessidade de amor sem entrar em conflito com a sociedade. Seus impulsos instintivos irão se refratar através de sua personalidade de uma maneira que não podemos predizer, mas que seguramente não será da maneira que Freud deduziu. Deveríamos, por exemplo, deduzir que o homem socialista haverá de sofrer do Complexo de Édipo? Este complexo, que tão poderosamente tem operado em nossa psique, pelo menos desde que a sociedade matriarcal deu um passo para a forma patriarcal, seguirá existindo quando a humanidade tiver superado a forma burguesa da família patriarcal? E podemos nos perguntar como será o superego no homem socialista, o superego que opera em nós como nosso censor moral inconsciente e como nosso pai dentro de nós. Freud, que confunde a paternidade, que é uma categoria biológica, com a autoridade paterna, que é uma instituição social, deduz que o superego, o complexo de Édipo e outros reflexos da sociedade paternalista na mente do indivíduo, sejam eternos. Certo é que, parece que ele sentiu uma premonição momentânea de outras possibilidades: “Se eliminarmos este fator também [quer dizer, “as prerrogativas no campo das relações sexuais”] mediante a concessão de uma completa liberdade na vida sexual, abolindo assim a família, célula germinal da civilização, não podemos, é verdade, prever que novos caminhos poderiam seguir o desenvolvimento da civilização”. Não pode, contudo, visualizar esta possibilidade, pois a família monogâmica é para ele a célula germinal indispensável da civilização, e seu pensamento nem sequer pode se afastar de seu paciente, o burguês monogâmico que jaz diante dele no divã. E assim, mesmo que desconfortavelmente conceda que não se possa prever que novos caminhos poderia seguir o desenvolvimento da civilização sem a família, está seguro de que a indestrutível agressividade da natureza humana perseguirá a humanidade socialista mais além da sociedade classista, do Estado e da família.
Aqui também nós, os marxistas, preferimos certa dose de agnosticismo. Preocupa-nos principalmente, com certeza, a crueldade e a opressão que geram diretamente a pobreza, a escassez de bens, a sociedade classista e a dominação do homem pelo homem. Cada vez que Freud se aventura nos campos da sociologia e da história desaprovação de que fala, querendo ou não, como um apologista da sociedade existente. Não obstante, temos aprendido com ele algo importante acerca da realidade dos elementos destrutivos e agressivos na natureza humana. É verdade que, supostamente, os imperadores, os reis, chefes guerreiros, ditadores, governos e dirigentes de todo o tipo não teriam conseguido que os homens se comportassem tão agressivamente como tem feito se a agressividade não estivesse presente na natureza humana: nossos governantes têm recorrido sempre aos impulsos instintivos mais vis do homem. Em que medida a agressividade biológica ou sexualmente condicionada afetará as relações não biológicas do homem socialista, é uma pergunta cuja resposta devemos postergar.
Que argumentos mais poderíamos deduzir a partir do texto para encontrar na nossa consciência um conforto para a angústia teórica que eventualmente poderia visitar nossa alma? O texto, tão atual dentro do contexto relativo, estimula a possibilidade de uma análise dos tempos que vivemos e a fé no movimento da vida se renova e a aparente Utopia se projeta como real no movimento da história. Penso que a aparente crise do pensamento politico que permeia o mundo pode ser fictícia e o fermento necessário deve estar na sua primeira fase pois o processo é inevitável. Uma necessidade inerente à condição humana não permite que o processo da busca da felicidade seja interrompido. Esta afirmação aparentemente metafísica talvez seja apenas uma necessidade que vendo a história da vida se recusa a pensar diferente.