Fatos & Crítica 49: Entre a ilusão de potência econômica e a realidade da exploração dos trabalhadores
“Este país pode virar uma grande potência econômica”. Com essas palavras, Lula expressou, na cerimônia de inauguração da nova sede da Anfavea, o seu entusiasmo com os novos programas do governo de incentivo à indústria automobilística. Certamente levou em conta na avaliação ufanista a notícia vinda do FMI de que o Produto Interno Bruto (PIB) do país havia ultrapassado o do Canadá e o da Itália, figurando agora na oitava posição no ranking mundial.
Mas como ser assim tão otimista, diante de alguns dados que revelam o fraco desempenho do país nos últimos anos no terreno econômico? O crescimento médio anual do PIB nos últimos dez anos foi de apenas 0,66%, compreendendo três anos em que simplesmente houve depressão econômica, ou seja, em 2015, 2016 e 2020 o país regrediu na produção de riquezas.
Sinal dessa fraqueza é a taxa que mede a proporção do investimento em relação ao PIB, que vem caindo, passando de uma média de 18,5%, de 2003 a 2013, para 16,4%, de 2014 a 2024. Isso mostra que a acumulação de capital no Brasil sofre de uma limitação crônica, especialmente quando comparada com a de outros países, estes sim pretendentes sérios ao título de “grande potência econômica”. A China, por exemplo, nunca apresentou uma taxa de investimento inferior a 40% em todos os anos, de 2010 até agora. Mesmo a Índia e a Indonésia têm taxas variando em torno de 30%, quase o dobro da brasileira.
Austeridade fiscal para pagar juros
Essa baixa taxa de investimento tem diversas causas, mas uma das mais importantes é a alta taxa básica de juros no Brasil, que drena parte significativa do excedente econômico (mais-valia), recolhido sob a forma de impostos pelo governo, para o enriquecimento do capital financeiro, nacional e internacional.
O país está em terceiro lugar entre os países com as mais altas taxas de juros reais (descontada a inflação) do planeta, hoje calculada em 7,36% ao ano. Apenas em 2023, o governo federal pagou R$ 615 bilhões de juros da dívida pública, mais do que todas as despesas que teve com saúde, educação e desenvolvimento social. Com essa prática, sobram poucos recursos para investimentos públicos em infraestrutura, os financiamentos à produção e ao consumo são muito caros e acabam por dificultar a acumulação de capital no setor produtivo.
Para garantir o prosseguimento dos pagamentos bilionários de juros, o capital financeiro pressiona o governo para cortar seus gastos, de forma a evitar que a relação entre a dívida pública e o PIB cresça (hoje corresponde a 77,8%), a ponto de criar desconfiança de que, no futuro, venha a ocorrer um enorme calote.
Para isso, o capital financeiro, que é a fração hegemônica da burguesia, utiliza-se da sua mídia e de seus representantes no governo e parlamento, mas, especialmente, da “independência” do Banco Central, para garantir que a aplicação em títulos públicos continue a gerar altos rendimentos. Tal “independência” assegura que a autoridade monetária não tenha que obedecer ao governo e fique exclusivamente nas mãos de representantes diretos do chamado “mercado”, ou seja, do próprio capital financeiro.
Além dessa pressão política e ideológica, existem também mecanismos puramente econômicos para manter essa situação. Nos últimos meses, a diferença entre os juros brasileiros e os juros americanos diminuiu ligeiramente, mas isso já foi suficiente para alimentar a saída de recursos em moeda estrangeira do país, que atingiu US$ 323,9 bilhões, apenas no primeiro semestre de 2024. Isso produziu no período um déficit de US$ 30,9 bilhões no fluxo financeiro do país com o exterior, mais do dobro do que ocorreu no primeiro semestre de 2023, favorecendo a valorização do dólar de 13,6% no mesmo período.
Dólar em alta
A desvalorização do real produz o aumento dos preços dos produtos importados ou cotados em dólar, como os combustíveis e os alimentos, e ameaça elevar a inflação. Essa simples perspectiva foi suficiente para que o Banco Central justificasse a manutenção da alta taxa básica de juros no nível de 10,5% ao ano para os próximos meses.
É nesse ambiente que surge a campanha do capital financeiro – vocalizada na mídia pelos chamados “especialistas do mercado” – procurando associar a desvalorização do real à má condução da política fiscal por parte do governo e produzindo pressão extra pelo corte de gastos públicos.
Como o governo Lula tem compromisso com a chamada “responsabilidade fiscal”, condição obrigatória para a boa condução dos negócios da burguesia, ele já impôs a si mesmo, no chamado contingenciamento da execução orçamentária, uma contenção de despesas da ordem de R$ 15 bilhões e uma contenção adicional de R$ 32 bilhões até o mês de setembro. A consequência para os investimentos é inevitável. O Ministério das Cidades, por exemplo, já anunciou que as obras de saneamento básico sob seu controle serão afetadas pelos cortes.
Mas para os arautos dos interesses da burguesia esses cortes ainda são poucos. O ideal mesmo seria uma nova reforma da previdência e acabar de vez com o reajuste pelo salário-mínimo das aposentadorias e dos benefícios de prestação continuada, aqueles destinados a idosos de baixa renda e a pessoas portadoras de deficiências. Para o pagamento de juros, tudo! Para as despesas sociais, o mínimo possível!
Voo de galinha?
Não é de se espantar que, diante do baixo crescimento médio do país nos últimos dez anos, o governo se entusiasme com os 2,5% em 12 meses, apurado no primeiro trimestre de 2024. Porém, bastante impactado pela política de austeridade fiscal, destinada a garantir o pagamento dos juros da dívida pública, o crescimento previsto para o PIB em 2024 (da ordem de 2,5%) é menor do que o observado nos anos de 2022 e 2023 (2,9%) e claramente insuficiente para transformar o país numa “potência econômica global”.
Aliás, considerando o passado recente, é bem possível que o crescimento dos três anos recentes represente apenas um voo de galinha dentro de uma trajetória geral de estagnação econômica.
É verdade que esse baixo crescimento foi capaz de produzir melhora no mercado de trabalho, com a diminuição da taxa de desocupação para 6,9% no segundo trimestre de 2024, segundo a PNAD do IBGE. Mas é preciso ter em mente que a taxa composta de subutilização da mão de obra – que inclui os desocupados, os subocupados e os que potencialmente poderiam fazer parte da força de trabalho – continua muito alta (compreende 16,4% de todas as pessoas em idade de trabalhar), assim como a taxa de informalidade do trabalho (38,6% da população ocupada).
Também foi apurado na mencionada pesquisa um aumento do rendimento médio habitual do trabalho, que chegou a R$ 3.214,00. Porém, isso não chega a ser nem a metade do salário-mínimo necessário calculado pelo DIEESE (R$ 6.995,44 em junho de 2024).
Além disso, essa pequena melhoria nos rendimentos está constantemente ameaçada pela inflação, especialmente a de alimentos, que tem enorme importância para os trabalhadores e diminui o poder de compra dos salários. Segundo pesquisadores, a inflação dos alimentos pode chegar neste ano a 7%, em função do impacto de fenômenos climáticos adversos, como as enchentes no Rio Grande do Sul e a seca que se espera a partir de julho com a incidência do fenômeno meteorológico La Niña.
À procura de investimentos chineses
Percebendo os limites que possui a acumulação capitalista no país, o governo Lula está negociando uma “aliança estratégica com a China” que represente uma espécie de transfusão de sangue para a anêmica economia capitalista brasileira.
Segundo Lula, será: “uma discussão envolvendo ciência, tecnologia, a produção de chips, de software. Ou seja, o que nós queremos, na verdade, é ter uma parceria estratégica que faça com que a relação Brasil-China seja infinitamente maior, mais próspera e que possa gerar emprego na China e emprego no Brasil.”
Assim, na procura de uma saída para o baixo nível de investimentos, principalmente em infraestrutura, a aliança com o governo da China aparece como uma solução natural, devido aos acordos com este país, que remontam a 2014. Está sendo chamada de nova parceria estratégica e será formalizada quando da visita do presidente Xi-Jinping à reunião mundial do G20, a se realizar no Brasil em novembro.
Nova parceria porque pretende ir além das exportações de commodities (soja, minério de ferro), para envolver ciência & tecnologia, inclusive na área bélica. O maior projeto na aliança Brasil-China é o da construção da Ferrovia Transcontinental, iniciativa entre o Brasil e o Peru, com capitais e engenharia chineses.
Desafios logísticos e financeiros parecem menores do que os políticos, pois o atraso na implementação da ferrovia deve-se ao impeachment de Dilma Rousseff, seguido de governos adversos à iniciativa (Temer, Bolsonaro).
Contudo, pode-se afirmar que o maior problema decorrerá dos obstáculos que os EUA irão criar, por serem totalmente contrários à expansão chinesa na América Latina, considerada seu “quintal”. Ademais, os norte-americanos têm uma fatura a cobrar por terem assegurado a eleição de Lula em 2022, mediante compromissos do Partido Democrata com legendas partidárias burguesas no Congresso Nacional.
Não se pode descartar, nesse contexto, a possibilidade de que a aproximação do Brasil em relação à China, assinalada na preparação do encontro dos respectivos presidentes, tenha o sentido de reafirmar a política externa independente, como transparece nas declarações de Lula contrárias à “nova Guerra Fria”, de defesa da liberdade comercial e liberdade diplomática entre os países. O exercício da diplomacia, mesmo apenas retórico, serve de referência para distanciar-se da posição de alinhamento de Javier Milei, presidente da Argentina, aos EUA e, simultaneamente, abre espaço para eventual barganha do governo brasileiro com o imperialismo norte-americano.
A situação dos trabalhadores
Dois boletins publicados pelo DIEESE no mês de junho de 2024 podem servir como ponto de partida para a discussão acerca da situação dos trabalhadores no Brasil. O primeiro boletim (Boletim de Conjuntura – “Nada de Novo no Front”) assinala a rotatividade da força de trabalho como o principal problema para explicar a “precariedade da situação do trabalhador ocupado” ou a “baixa qualidade da inserção ocupacional” no Brasil, termos utilizados pela entidade.
O segundo boletim (“De Olho nas Negociações”) mostra que, apesar da maioria das negociações do mês de junho terem ficado acima da inflação (87,8%), o reajuste salarial necessário (3,7%) é duas vezes superior à variação real média observada (1,67%). Nesse contexto, o rendimento médio dos trabalhadores é de cerca de R$ 3 mil, ou seja, pouco mais do que 2 salários-mínimos, representando uma pequena melhoria se considerada a série histórica de 2012 a 2024.
Por trás da alta rotatividade da força de trabalho assinalada pelo DIEESE estão, na verdade, os baixos salários e as condições de trabalho marcadas pela intensificação da exploração do trabalho. Todavia, o ponto de vista que prevalece na análise do DIEESE não segue esse caminho e acaba por reduzir o trabalhador ao papel de consumidor individual e familiar, capaz de contribuir para o “empuxo” da economia capitalista no Brasil.
Os baixos salários e a intensificação da exploração não constituem novidades na vida dos trabalhadores. Por exemplo, estudo realizado pela Confederação Nacional da Indústria em 2016 já apontava, em um contexto de crise econômica, que os baixos salários estavam entre os principais motivos para os trabalhadores pedirem demissão. Nesse cenário, uma parte significativa dos trabalhadores não luta coletivamente pelo aumento salarial, simplesmente muda de emprego ou busca outras alternativas como a ilusão do “empreendedorismo”.
Os baixos salários explicam também a importância assumida pelos conflitos em torno da Participação nos Lucros e Resultados (PLR), um valor utilizado geralmente pelos trabalhadores para a quitação de dívidas. A PLR amplia a intensificação do trabalho, com agravamento da exploração relativa da força de trabalho. Isto é, se o trabalhador não pode viver sem emprego assalariado, esse emprego não o deixa viver.
Essas duas questões (baixos salários e intensificação da exploração) estiveram presentes na recente greve dos metalúrgicos da Renault, em São José dos Pinhais (PR), ocorrida entre maio e junho deste ano, e cuja experiência analisamos a seguir.
A greve na Renault-PR
Em assembleia realizada em 23 de abril, os operários da Renault decidiram encaminhar a luta que resultou na greve iniciada em 7 de maio e suspensa em 4 de junho, com a decretação da ilegalidade da paralisação pelo Tribunal de Justiça do Trabalho do Paraná. A greve é um claro exemplo dos impasses que a atuação sindical tem conduzido e descortina os problemas e desafios do operariado brasileiro em suas lutas atuais.
O grande volume de trabalho, decorrente das fábricas estarem operando a pleno vapor, está na raiz da greve da Renault e de várias outras empresas metalúrgicas da base do Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba. Representa a resposta operária à brutal intensificação do trabalho – que é, para os operários, o significado prático da “ocupação da capacidade instalada” em máquinas e equipamentos nas indústrias. Para se ter uma noção, a linha de montagem na Renault ocupava 95% da jornada de trabalho dos operários.
Contudo, além de fazer parte de uma pauta mais ampla, incluindo a PLR e um pequeno aumento salarial, a posição adotada pelos dirigentes sindicais diante da intensificação do trabalho consistiu em propor a contratação de trabalhadores temporários, denominados de “absenteístas” na linguagem comum dos trabalhadores ou de “postos humanizados” pelos sindicalistas.
O acordo coletivo de trabalho (ACT) firmado entre sindicato e empresa para 2024-2025 a partir da greve admite 100 trabalhadores “absenteístas” para substituir os trabalhadores da linha de produção, seja por necessidades fisiológicas (a ida ao banheiro), seja por afastamentos devido a férias e outros motivos.
O que sindicato omite é que as novas contratações irão acarretar uma avaliação da produtividade dos trabalhadores “absenteístas” face aos contratados. Não tardará a divulgação de um novo Programa de Demissão Voluntária (PDV) para empurrar os contratados de “baixa produtividade” para fora da empresa com “bônus financeiros de rescisão”. Para falar numa linguagem clara, o “tempo de vida útil” de um operário de linha de produção para os capitalistas atualmente dificilmente ultrapassa cinco anos ou o tempo correspondente de lançamentos de cinco novos modelos de veículos.
Ao invés de levantar a necessidade de reduzir a jornada de trabalho, o sindicato admite a jornada vigente e inclui mais trabalhadores para trabalhar nesses termos. Entretanto, a redução da jornada para 30 horas semanais já está em pauta no mundo. A seguir por este caminho o sindicato teria que prioritariamente retomar a organização da luta da categoria como um todo.
Perspectivas de luta
Constatamos, portanto, que a retomada do crescimento econômico tem o sentido de aumentar o emprego assalariado e, em consequência, a massa salarial. Porém, a tendência da produção capitalista é a de reduzir o nível médio dos salários e o de aumentar a parte não paga do tempo de trabalho produtivo, a mais-valia. Resistir à exploração capitalista é uma necessidade, como as greves demonstram e o caso da Renault-PR confirma.
Os sindicatos poderiam contribuir nessa luta, mas, em sua maioria, capitularam, frente ao capital, aceitando negociar vantagens aqui e ali, sempre que pressionados, separadamente, por empresas. A unificação da resistência por categorias e ramos é o desafio que os trabalhadores precisam enfrentar para atingir o caráter de luta de classe. A redução da jornada de trabalho para 4 dias por semana ou 36 horas de trabalho pode ser o caminho. Os grupos e coletivos de esquerda que levantam a bandeira da revolução socialista devem apontar esse desafio e empenhar-se com os operários, onde e quando for possível.
Coletivo do CVM, 03/08/2024
Leia aqui em PDF: CADERNO F&C 49