Fatos & Crítica 46: A tragédia das inundações no Rio Grande do Sul: de quem é a responsabilidade?

Coletivo do CVM

 

As inundações no Rio Grande do Sul afetaram mais de dois milhões de pessoas, obrigaram cerca de 530 mil a abandonar as suas casas e 80 mil a buscar acolhimento em abrigos. Até agora, foram confirmados 169 óbitos e quase mil feridos. A economia da maioria dos municípios do estado, em todos os seus setores, foi profundamente abalada.

Calamidades com tamanha gravidade nunca haviam ocorrido no Rio Grande do Sul e o evento soma-se a muitas outras catástrofes climáticas – sejam elas ondas de calor e incêndios ocasionados por secas, sejam furacões, deslizamentos de terra ou inundações provocadas por chuvas torrenciais – que vêm ocorrendo nos últimos anos de forma cada vez mais comum e intensa por toda a superfície do planeta e, obviamente, no Brasil.

Os eventos raros, seculares e milenares, passaram agora a ser frequentes e repetitivos, como consequência catastrófica do progressivo aquecimento global. Porém, não é a ausência de uma consciência a respeito que impede que sejam tomadas as medidas para diminuir a emissão de gases do efeito estufa, de forma a atenuar as tragédias.

Infindáveis conferências globais já foram realizadas, com o estabelecimento de metas para o corte de emissões de gases do efeito estufa, sem que as medidas propostas tenham sido levadas a sério, tanto pelos governos que assinaram os acordos e as declarações de intenções, como, principalmente, pelas empresas cujas atividades industriais e agrícolas efetivamente liberam para a atmosfera os gases responsáveis pelo aquecimento global.

Não é difícil buscar as causas para isso. Um exemplo bastante representativo nos oferece o episódio ocorrido em 2017, quando os EUA – o maior poluidor per capita da Terra – sob a presidência de Donald Trump rasgou a sua adesão ao acordo de Paris, em protesto contra a exigência de diminuição do uso de carvão mineral na economia americana.

Esse episódio emblemático revela que o principal obstáculo para o combate ao aquecimento global é a restrição que ele gera à livre acumulação do capital em inúmeros setores econômicos, que vão das grandes empresas produtoras de combustíveis fósseis aos grileiros de todos os tamanhos que invadem terras públicas na Amazônia e queimam as florestas para transformá-las em pastagens e em plantio de soja.

A destruição predatória da natureza para a geração de lucros imediatos tem sido a tônica do desenvolvimento capitalista desde o seu surgimento e, enquanto o capitalismo como sistema social prevalecer em escala planetária, os acordos climáticos entre os países tenderão a permanecer o que têm sido até agora: letra morta.

 

Causas locais

Aos efeitos climáticos gerados pelo aquecimento global, somam-se também causas locais, de responsabilidade dos governos burgueses, que agravam ainda mais as tragédias, como a que estamos presenciando no Rio Grande do Sul.

Particularmente grave, no caso de Porto Alegre, foi a negligência administrativa quanto à manutenção do sistema de proteção contra enchentes, composto por 68 km de diques de terra, 2,65 km de muro na avenida Mauá, comportas e diversas casas de bombas para a retirada da água que se acumulasse dentro da cidade. O que se observou quando vieram as fortes cheias foi que a grande maioria das bombas não funcionaram e as comportas falharam, deixando passar as águas do Guaíba para o interior da cidade. Ou seja, o sistema estava sem manutenção, praticamente sucateado.

As preocupações dos representantes da burguesia, entretanto, eram outras. Há alguns meses, o governador do estado, numa peça de publicidade, convidava para que se imaginasse “um antigo porto de Porto Alegre revitalizado, com as pessoas circulando livremente, sem ter aquele muro que dividia o antigo porto da cidade.”

Ou seja, no afã de satisfazer os interesses dos incorporadores imobiliários, o governador advogou em sua peça de propaganda a remoção de um dos elementos mais importantes do sistema de proteção de enchentes, em prol de um megaempreendimento “público-privado”, com valor da ordem de R$ 1,5 bilhão, que liberaria espaço para a implantação de diversos novos empreendimentos.

Em setembro de 2023, grandes inundações já haviam ocorrido no Vale do Rio Taquari (um dos contribuintes do Lago Guaíba), tendo sido avaliadas então como as maiores dos 150 anos anteriores. Mas não foram precisos mais 150 anos para que os fatos se repetissem. Decorridos apenas alguns meses, o recorde das cheias na região foi novamente ultrapassado.

Mesmo com os alertas dados em 2023, o governo estadual destinou menos de 0,2% do seu orçamento ao enfrentamento das catástrofes ambientais e apenas R$ 50 mil para reparos e compras de equipamentos e acessórios para a Defesa Civil estadual. Para não ficar atrás no completo descaso com o assunto, a prefeitura de Porto Alegre não destinou qualquer quantia para a prevenção de enchentes, mesmo dispondo de R$ 429 milhões no caixa municipal.

A esses fatos, agregam-se outros que demonstram como as administrações burguesas são capazes de esquecer rapidamente as catástrofes e o sofrimento que causam à maioria da população, ou seja, aos trabalhadores, para atender às reivindicações de curto prazo de diferentes frações da classe capitalista.

Citemos alguns exemplos: o governo estadual flexibilizou a legislação ambiental, permitindo mudanças significativas nas áreas de unidades de conservação e concedendo facilidades para a mineração; o departamento municipal responsável pelo saneamento de Porto Alegre foi sucateado e os seus funcionários aposentados não foram repostos; as legislações urbanas, com a delimitação de áreas de risco nos municípios e na região metropolitana, sofreram boicote ou não foram observadas, por contrariar os interesses dos proprietários de terrenos e dos especuladores imobiliários.

Por fim, para revelar o que é capaz de passar na cabeça dos administradores locais dos negócios da burguesia, o governador do estado lamentou a vinda dos donativos para as vítimas, porque isso estava colocando em risco os lucros do comércio varejista. Depois se desculpou, mas ficou evidente que a sua preocupação não estava direcionada aos desabrigados, mas sim aos prejuízos dos comerciantes.

 

Os trabalhadores são as vítimas, mas é necessário lutar

Não é segredo para ninguém que em todo o país uma parcela majoritária dos trabalhadores é forçada a habitar em áreas de risco, sejam nas encostas, sujeitas a deslizamentos, sejam nas várzeas dos rios, sujeitas a inundações. Não se trata de opção, mas de falta de alternativas. Os baixos salários e os subempregos não permitem o pagamento de aluguéis em áreas livres de riscos, próximas aos centros de emprego.

Porto Alegre e os demais municípios de sua área metropolitana não são exceção a essa regra. Enquanto a burguesia que mora nos bairros altos da cidade não foi diretamente afetada pela catástrofe ou mudou-se provisoriamente para suas casas de praia, os trabalhadores tiveram que encarar a dura realidade da perda de seus bens e moradias e buscar refúgio em abrigos provisórios.

Entretanto, apenas em Porto Alegre o censo de 2022 identificou que 14,7% dos domicílios do município – compreendendo 101.000 imóveis – estão totalmente desocupados, número que seria mais do que suficiente para abrigar as famílias que tiveram de deixar suas casas em razão das inundações. Mas vivemos no capitalismo e a solução de transferência das famílias desabrigadas para os imóveis vazios é praticamente impossível, por esbarrar fatalmente na falta de recursos e na resistência dos proprietários.

Mas, além de ter perdido suas casas, o proletariado ainda tem que suportar as ameaças de demissão por parte dos patrões, em caso de não retorno imediato ao trabalho. Até o dia 20/05, o Ministério Público do Trabalho já havia recebido 121 reclamações contra empresas que convocaram os seus empregados para trabalhar em áreas de risco ou que não levaram em conta as precárias condições de deslocamento, em função de alagamentos, frotas reduzidas de ônibus e vias interditadas.

No afã de retomarem o mais rapidamente possível a extração de mais-valia dos seus empregados, os patrões ameaçaram de demissão em caso de não comparecimento, ou de desconto de horas não trabalhadas, mesmo quando as empresas estavam sem energia elétrica e água, em situação insalubre para o exercício de qualquer atividade.

Para aqueles trabalhadores que justificaram as faltas por estarem desabrigados, houve empresas que chegaram a exigir fotos de suas casas alagadas como comprovação. E a crueldade patronal não parou por aí: relatou-se até um caso em que a água mineral disponível no estabelecimento foi proibida aos empregados, por estar destinada exclusivamente aos clientes (e aos patrões, naturalmente).

Sem suas casas e com os seus bens destruídos, os trabalhadores encontram-se agora diante da ameaça extra de contrair doenças e perder os seus empregos, agravando em muito a situação criada pela incapacidade do capitalismo de planejar o desenvolvimento das cidades, criar e manter mecanismos de proteção contra os desastres climáticos e fornecer habitações dignas aos trabalhadores.

Medidas paliativas estão sendo previstas pelos governos, mas, considerando os casos de catástrofes recentes em outros locais, serão insuficientes e ineficazes para impedir novos desastres. A culpa é do capitalismo, mas quem sofre são sempre os trabalhadores.

Os grupos e organizações locais criados pelos trabalhadores nas áreas atingidas para enfrentar as consequências das inundações apontam o caminho da luta. A urgência da situação exige também dos sindicatos e associações de moradores iniciativas igualmente imediatas. Mas tudo depende principalmente da participação dos trabalhadores na definição de prioridades e nas ações concretas de reconstrução.

É preciso agir contra as empresas que agravam ainda mais a situação, com as ameaças de demissão e suspensão de salários, assim como estabelecer passe livre nos transportes públicos e liberar recursos extras de programas governamentais para as vítimas.

Por outro lado, a legislação e os dispositivos financeiros e administrativos em caso de catástrofes permitem, em tese, desapropriações de imóveis e a construção de novas residências. Uma vez que novas catástrofes provavelmente farão parte de nossas vidas daqui em diante, organizações de moradores dos bairros atingidos devem exigir que o processo de edificação das habitações a eles destinadas aconteça em áreas seguras.

A amplitude da tragédia deixa evidente que é a hora de fazer cobrança também das centrais sindicais para organizar uma luta que certamente encontrará resistência da burguesia, seja no RS, seja no resto do país, pelo temor dos precedentes que poderá acarretar.

CVM – 26/05/2024

LEIA EM PDF: CADERNO F&C 46

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