Carta aos companheir@s sobre a greve na CSN
Coletivo do CVM
A Carta do Novo Germinal, ora publicada neste portal, tem por objetivo refletir e debater a experiência da greve dos operários da CSN – motivo de artigos, vídeos e áudios, dos participantes da paralisação ou de seus apoiadores. A greve na CSN delineia, apesar do seu caráter localizado até o momento, uma tendência nacional, cujas limitações e possibilidades precisam ser compreendidas e assimiladas sob a perspectiva da independência política da classe operária.
Destina-se principalmente aos companheiros da Comissão de Base da Fábrica criada e eleita pelos operários em greve. Mas também à Federação Nacional dos Petroleiros (por meio do Sindipetro-RJ), assim como ao site Passa Palavra e aos dois grupos da Oposição Sindical Metalúrgica do Sul Fluminense, que tomaram posição no processo da paralisação.
Novo Germinal é uma ferramenta de comunicação e formação do Centro de Estudos Victor Meyer, cuja programação encontra-se disponível como um canal no Youtube no endereço https://www.youtube.com/c/NovoGerminal
CVM
Vivemos uma época marcada pelo aumento da exploração, pela fome e opressão política. No meio do tormento, porém, irrompem lutas, esperanças de outro futuro. Esta tem sido a característica das greves desde 2020 e agora na greve dos operários da Companhia Siderúrgica Nacional, de Volta Redonda, ocorrida entre 11 e 22 de abril do corrente ano.
Porém o evento massivo da paralisação teve pouca repercussão pública, nos meios de comunicação da burguesia ou do movimento sindical dos trabalhadores. Pode-se até afirmar que entre a maioria absoluta dos sindicatos houve um silêncio gritante. O temor à “radicalização” das massas trabalhadoras e a atitude subserviente às leis e instituições da burguesia explica a omissão, inclusive das organizações pretensamente de esquerda. Nosso dever consiste exatamente em proceder de modo contrário, em dar o devido destaque para a luta e contribuir para o movimento comum de enfrentamento das forças do capital.
A presente Carta tem por objetivo refletir e debater a experiência da greve dos operários da CSN, motivo de artigos, vídeos e áudios, dos participantes da paralisação ou de seus apoiadores. Destina-se principalmente aos companheiros da Comissão de Base da Fábrica criada e eleita pelos operários em greve. Mas também à Federação Nacional dos Petroleiros (por meio do Sindipetro-RJ), assim como ao site Passa Palavra e aos dois grupos da Oposição Sindical Metalúrgica do Sul Fluminense, que tomaram posição no processo da paralisação.
A greve na CSN delineia, apesar do seu caráter localizado até o momento, uma tendência nacional, cujas limitações e possibilidades precisam ser compreendidas e assimiladas sob a perspectiva da independência política da classe operária.
Inicialmente os eventos da greve deixam claro que a greve não poderia ter sido senão “explosiva”. Falar em greve “selvagem”, “explosiva”, ou ainda “espontânea”, é apenas dar sentido, com diversas palavras, a forma como emerge o enfrentamento de um grupo operário encurralado contra a parede. Fato é que, até a greve acontecer, os operários estavam de cabeça baixa e mãos amarradas, sem perspectivas de melhoras, em termos de sobrevivência da sua força de trabalho e da manutenção das suas famílias, numa situação de empobrecimento generalizado da classe trabalhadora.
Lembramos, então, as condições da luta: a intensificação do trabalho, a brutal exploração diária para a qual a Companhia oferece um miserável salário, acompanhada da agressão das chefias, claramente em contraste com as cada vez mais altas taxas de lucratividade da CSN. A greve eclodiu contra a empresa e também, contra o sindicato – e apesar das oposições sindicais. Foi o transbordamento do sentimento de exploração e opressão há muito tempo contido. O copo cheio de dor e revolta transbordou, diante da situação de completo abandono, sofrimento, isolamento. Nesta conta, a traição: é importante observar a degeneração política do sindicato que legalmente representa a categoria, com sua transformação em correia de transmissão dos interesses da empresa.
Frente a essa situação, pode-se entender claramente a impotência da oposição sindical no caso de Volta Redonda, pois estava ausente do chão de fábrica – e isso, vale dizer, para as duas tendências de oposição sindical.
Uma das leis fundamentais do movimento operário é a experiência política própria das massas, o que exige uma liderança revolucionária capaz de ajudá-las a reconhecer na prática os seus verdadeiros inimigos e amigos, e a identificar os seus objetivos imediatos e futuros. Esse aprendizado dos operários nas lutas, reivindicações e paralisações de caráter econômico contra os patrões de uma empresa ou de um determinado ramo industrial, constitui momentos nos quais se preparam, mediante a solidariedade de classe, a base para a formação e luta política de classe.
O movimento operário tem sua própria história, pode aprender com as experiências nacional e internacional. Porque onde há exploração, há resistência. A história da luta operária a confirma com inúmeros exemplos.
A “explosividade” é um traço comum do movimento operário sempre que há rupturas ou rebaixamento da organização da classe operária num determinado momento de sua história, impedindo o aprendizado das experiências de luta anteriores, seus avanços e limites, por uma geração nova que ingressa na luta, como força de trabalho, nas fábricas e outros empreendimentos capitalistas.
Trata-se de um processo que remonta aos primórdios do movimento, quando a revolução industrial toma forma na Inglaterra na passagem dos séculos XVIII para o XIX. As primeiras manifestações do proletariado foram gravadas na imprensa e nas decisões dos tribunais da burguesia com as palavras “turba” ou “ralé”, “anarquia” e “sedição” ou “rebelião”. Uma luta de classes se esboçava ali naquela época, opondo “tamancos” aos “sapatos”, de tal modo que incutiu o medo da revolução na medida em que o nascente proletariado podia ser tudo se decidisse exigir seus direitos.
Diante de tais manifestações, a burguesia somente podia admitir a “influência” de lideranças ilustradas, de “radicais” que “insuflavam” o espírito de rebeldia nas massas. A luta de classes não podia acontecer, tinha de ser provocada, uma vez que a massa era “ignorante”, “iletrada” e, portanto, incapaz de pensar por conta própria e de se organizar por si mesma.
Um movimento deste tipo foi analisado por Frederico Engels no artigo A greve dos mineiros do Ruhr em 1899, despertados da violenta exploração, da miséria e do conformismo político e religioso pela opressão de seus capitalistas. A crença no imperador da Alemanha e nos sacerdotes foi destruída no decorrer da luta que envolveu 120 mil mineiros e obrigou o governo de Bismark a se curvar, tendo de fingir observar uma posição imparcial diante do movimento. Poucos anos depois desta paralisação que ajudou a pôr fim à legislação de perseguição ao partido social-democrata alemão, o mesmo Engels expressava, numa carta a Augusto Bebel [1], a crítica à direção do partido por não entender e aceitar a espontaneidade do movimento grevista dos mineiros, por não terem eles observados os limites das leis então vigentes.
A crítica de Engels “atravessa” os tempos de uma longa história secular e atinge-nos em cheio na atualidade.
Mais de meio século depois da greve dos mineiros alemães, do outro lado do Atlântico, no Brasil, uma greve deflagrada pelos metalúrgicos na cidade de Contagem (Minas Gerais), entre março e abril de 1968, trouxe à tona a relação entre a vanguarda e a massa, colocando o problema da consciência das condições de luta e de como enfrentá-las, de como desenvolver a consciência no aprendizado das lutas, ou seja, de que modo os operários se assumem como classe por meio e nas lutas.
Foi o caso da Greve de Contagem (MG), entre março e abril de 1968 – a primeira greve dos operários metalúrgicos importante, ocorrida em plena ditadura militar no Brasil. Diante da miséria imposta pela política de arrocho salarial (congelamento dos salários durante dois anos) e a eliminação da estabilidade no emprego até então assegurada legalmente, mas nem sempre cumprida, a peãozada ousou desencadear uma greve.
Na época, cinco agrupamentos comunistas com células nas fábricas da região tentaram construir o estouro da greve para o 1º de Maio. Consideravam que a simbologia da data daria ao movimento mais potência e visibilidade. Estes operários comunistas gozavam de reconhecimento e respeito junto ao chão de fábrica, conquistados em anos de inserção direta e trabalho cotidiano. Ainda assim, e talvez justamente como fruto deste trabalho, a peãozada não hesitou em dizer aos camaradas comunistas: “nós vamos fazer greve agora. Vocês vêm junto, ou vão esperar o 1º de Maio?”
Os comunistas, junto com a Pastoral Operária, dessa vez, também não vacilaram em seguir a direção da massa operária, ajudando a organizar a paralisação com as forças de que dispunham. Tal entendimento entre a base operária e a esquerda proletária culminou em uma das mais importantes greves da história da classe trabalhadora brasileira. Foi uma greve massiva, de ocupação do local de trabalho, rodeada de solidariedade ativa da comunidade de Contagem e de diversos setores da sociedade mineira (e depois, de outros estados). Enquanto os peões ocupavam as linhas de produção, acampamentos ao redor das fábricas garantiam alimentação e a segurança dos grevistas (contra o exército que, aliás, cercava os acampamentos). Aqui é fundamental entender que esta solidariedade ativa foi mobilizada pelas mesmas organizações de esquerda inseridas no chão da fábrica, que também tinham células em outras categorias de trabalhadores, associações de moradores, movimento estudantil, assim como pela Pastoral Operária. Também é relevante o fato de que as organizações clandestinas tinham muitas divergências políticas entre si, mas atuaram para dar suporte ao movimento grevista, configurando o que, na época inicial da III Internacional, denominou-se “frente única” da classe operária.
Recuperar a memória da Greve de Contagem é importante uma vez que seu aprendizado foi obscurecido pelas forças de oposição sindical na atual luta dos operários da CSN. No caso de Volta Redonda, além de não existir lideranças experientes ou de esquerda no chão da fábrica, tampouco há uma compreensão comum da luta entre as forças de oposição sindical que atuam de fora da fábrica, permitindo superar suas divergências teóricas ou práticas para contribuir com o movimento conduzido pela base.
Nos movimentos grevistas de Contagem em 1968, diferentemente de Volta Redonda em 2022, o sindicato de Contagem sofria uma “intervenção branca” da ditadura militar. Todos os operários que tinham alguma ligação com organizações de esquerda foram proibidos de estar em uma chapa que concorresse ao sindicato. A greve foi organizada por fora do sindicato, mas também contou com uma disfarçada solidariedade da direção sindical – que se reunia clandestinamente com o Comando (também clandestino) da greve e levava a posição do movimento para as reuniões com as empresas.
No caso atual, a greve não só ocorreu “por fora” do sindicato, mas contra o sindicato. E a direção sindical de Volta Redonda não só foi (e continua a ser) contra a greve, como defende a posição e as propostas da CSN. Mas no caso da CSN, os operários não podiam contar com companheiros de luta nas fábricas. Paralisar a CSN, como descrito no artigo de Passa Palavra – o arrastão de um grupo que vai aumentando em cada departamento e setor da empresa e paralisar totalmente a produção – significava se expor à vigilância dos chefes, dos supervisores.
Assim, parece-nos fundamental conversar com os operários da base, a peãozada, para ouvi-los a esse respeito, antes de condená-los pelo caráter “selvagem” da greve. Porque foram eles que conduziram a greve e não os que estavam fora da empresa.
A violência da CSN, como sabemos, foi imediata, com demissões generalizadas. Não resta dúvida que isto obrigou os operários a recuar e retornar ao trabalho. Não se deve ter dúvida, porém, de que o emprego massivo da violência patronal expressa o medo da gerencia capitalista deparar-se com uma resistência mais ampla – que fez renascer o fantasma de 1988. Mas ali onde se pode ver a tentativa de impor uma derrota aos trabalhadores, deve-se ver também um passo de vitória extremamente importante porque na paralisação o operário se pôs de pé, levantado do chão, enfrentando destemido o capital.
Não se pode desconhecer a combatividade, a força e o destemor com que os operários da base levaram adiante a paralisação, descrita no artigo “Greve selvagem na Companhia Siderúrgica Nacional” de Passa Palavra, sustentando sua recusa à patronal mesmo depois de serem obrigados a voltar ao trabalho em decorrência das 400 demissões provocadas pela CSN. O resultado da votação em urna realizada durante a segunda assembleia geral, realizada 27 de abril, sob controle da diretoria pelega teve 6.509 votos contra a proposta patronal, 290 a favor, 6 nulos e 1 em branco. Com o detalhe de que desta vez a diretoria votou contra empresa. Já se manifestou aí o clima da próxima eleição sindical que deve acontecer em junho vindouro e será um efeito direto da greve. Todos os concorrentes irão trazer para si o sentido da luta, inclusive os pelegos. Por isso mesmo, o processo de negociação entre o sindicato e a empresa, tendo como pressão de fundo a massa operária, provavelmente irá implicar concessões, o que interessa até a CSN. Nada será como antes e a Companhia sabe muito bem disso. Terá de agir para quebrar o espírito de luta da massa, dividindo-a mediante repressão, concessões limitadas e subornos.
A greve na CSN foi interrompida, mas a luta continua. O acordo salarial foi prorrogado até o final de maio e novamente o confronto entre aceitar abono salarial e mesmo aumento no valor da PLR, sem tocar no turno de 6 horas, será recolocado. A disputa em Volta Redonda também será a eleição da nova diretoria do sindicato. Podemos ter a certeza de que todos os que se assumem como oposição sindical vão querer falar em nome dos grevistas. Cada qual terá de mostrar a que veio. O fundamental, porém, consiste em aprender que a greve demonstrou os limites do sindicato atrelado ao Estado, desvinculado da organização dos próprios operários nos locais de trabalho. Eleger uma nova diretoria – disputando-a com os pelegos e por trás, com a própria CSN – significa, portanto, fortalecer a organização independente na fábrica, por setores e oficinas.
O caráter “selvagem” da paralisação não é uma característica exclusiva da CSN neste ano de 2022. Esta forma de luta também se observou nas greves dos garis (2014, 2022), da Renault em São José dos Pinhais em 2020 e da General Motors em São Caetano do Sul, em 2021. Os sindicalistas têm de aprender com a peãozada que os patrões somente negociam quando tem de enfrentar a produção parada e a queda nos lucros. Mas precisam admitir mais do que isso: que os peões não apenas sentem, mas pensam, são capazes de aprender e de se organizar. E tirar as lições para o futuro: pois estas greves apontam para a necessidade de solidariedade entre os operários da mesma categoria e entre diferentes categorias, como um movimento de classe, politicamente independente e oposto aos interesses da burguesia.
Novo Germinal – maio de 2022
Nota:
[1] Marx-Engels Correspondence 1891: trecho de carta de Engels para Bebel: A greve de carvão no Ruhr é certamente improvisada para você, mas o que acontece? A greve imprudente da paixão raivosa é, como as coisas estão, a forma usual com que grandes novos estratos de trabalhadores são trazidos em nossa direção. Esses fatos me parecem ter sido considerados muito pouco no tratamento de Vorwärts. Liebknecht não conhece sombras, ou é totalmente preto ou totalmente branco; e se ele pensava que tinha o dever de provar ao mundo que nosso partido não incentivou essa greve, e até mesmo o acalmou, então Deus tenha misericórdia dos pobres grevistas – para eles menos do que uma quantidade desejável de preocupação tem sido mostrada, para ver que eles vêm para nós em breve. (Tradução: Sam Fast).
LEIA EM PDF: CARTA AOS COMPANHEIR@S SOBRE A GREVE NA CSN