Fatos & Crítica 30: As eleições serão respeitadas?

Coletivo do CVM

 

A julgar pela frase final de um anúncio de página inteira publicado no dia 5 de agosto em grandes órgãos de imprensa, “o Brasil terá eleições e seus resultados serão respeitados”. Assinam a profecia – ou seria uma ordem? –  ex-ministros da Economia, ex-presidentes do Banco Central de diversas administrações, economistas a serviço do capital, intelectuais variados, um cardeal, um rabino, proprietários de grandes empresas e, por último, mas não menos importante, os donos do Itaú-Unibanco, representando o capital financeiro.

Em países de democracia burguesa consolidada, um manifesto desse tipo seria evidentemente desnecessário, mas no Brasil de Jair Bolsonaro o respeito ao resultado das eleições de 2022, ou até mesmo a sua realização, passaram a ser acompanhados de um grande ponto de interrogação.

Todos os dias, com suas chances eleitorais diminuindo, o capitão faz campanha contra as urnas eletrônicas e ameaça virar a mesa, caso o voto impresso não venha a ser implantado. Ordenou até mesmo que o seu Ministro da Defesa utilizasse um mensageiro para avisar ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que, sem o voto impresso, não haveria eleições.

Que o recado não agradou ao destinatário ficou claro na atitude que tomou: vazou a intimidação recebida para um órgão da grande imprensa, obrigando o general Braga Netto a se desmentir. Com isso, o líder do Centrão que comanda a Câmara estava apenas defendendo a sua própria existência política e a de seu grupo, pois uma quartelada para impedir as eleições significaria a instituição de uma ditadura aberta, que os varreria do poder.

As ameaças de Bolsonaro repercutiram também muito mal no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal, produzindo declarações azedas de seus representantes, a inclusão do capitão em um processo antigo, que investiga as chamadas fake news produzidas por seu grupo político, e a abertura de uma investigação suplementar a respeito de suas renovadas ameaças ao processo eleitoral.

Bolsonaro sabe que não tem condições objetivas nem subjetivas para levar a cabo o seu desejado golpe militar. Aliás, se tivesse essas condições, certamente já teria realizado a ruptura institucional, pois vontade não lhe falta. Ocorre que a condição objetiva de uma ditadura aberta e indireta da burguesia é que a classe dominante esteja correndo o risco de perder o seu domínio social, diante de um ascenso da luta dos trabalhadores, o que não é o caso no momento.

O manifesto publicado em 5 de agosto mostra que a classe dominante brasileira está longe de querer desistir do seu poder direto, que exerce utilizando o seu peso econômico, antes e depois das eleições, e cujos resultados lhe proporcionam a utilização em seu favor dos diversos órgãos do executivo, do legislativo e do judiciário que estruturam a democracia burguesa no Brasil.

E não bastam as tradições golpistas dos militares brasileiros para desencadear um golpe. A condição subjetiva teria que ser dada pela concordância da maioria dos oficiais militares em posições de mando decisivas, que teriam que estar convencidos da necessidade da intervenção e, principalmente, da certeza da vitória e da durabilidade da nova ditadura. Fora dessas condições objetivas e subjetivas, Bolsonaro só poderia, quando muito, contar com ações limitadas, com alto risco de fracasso e de punição dos envolvidos.

Enquanto não existirem condições para um golpe, Bolsonaro utiliza essa palavra de ordem como propaganda, visando coesionar as suas bases políticas, formada por membros dos aparatos repressivos, milicianos, evangélicos neopentecostais, pecuaristas, caminhoneiros autônomos, pequenos comerciantes e parcelas do lumpemproletariado, que compõem os 25% da população que o apoiam. Com isso, ele pretende se credenciar para a disputa do segundo turno das eleições de 2022.

As ameaças e blefes de intervenção militar têm existido desde o início do governo do capitão e têm tido continuidade. A mais recente foi a provocação armada ao Congresso, com a movimentação de tropas na Esplanada dos Ministérios no mesmo dia da votação em plenário pela Câmara do projeto de emenda constitucional do voto impresso.

O pretexto do movimento foi a entrega de um inusitado convite ao presidente para estar presente em um exercício militar da Marinha em Formosa, agora contando também com a participação do Exército e da Aeronáutica.

Classificado como uma “trágica coincidência” pelo presidente da Câmara, que assim mostrou a sua contrariedade, a movimentação da tropa subiu o tom das intimidações, mas não resultou em nada de concreto, pelas razões já mencionadas.

 

Nos braços do Centrão

Sabedor dos seus limites conjunturais, Bolsonaro tenta se blindar com a ajuda de seus velhos conhecidos do Centrão, o agrupamento político que dá estabilidade aos presidentes brasileiros, em troca de verbas e cargos lucrativos no governo. Depois de ter apoiado a chegada de Arthur Lira à presidência da Câmara, permitindo-lhe distribuir bilhões de reais do orçamento entre os parlamentares, Bolsonaro dá mais um passo para consolidar essa aliança.

Fingindo esquecer as críticas eleitorais que fez à “velha política”, Bolsonaro chegou a afirmar que ele próprio sempre foi do Centrão e abriu as portas do seu principal ministério – a Casa Civil, de onde saem todas as nomeações – para o Senador Ciro Nogueira, velha raposa capaz de fazer as necessárias articulações no Congresso e, sobretudo, colaborar para impedir o impeachment do capitão-presidente e, se possível, reelegê-lo em 2022.

O Centrão apoiará Bolsonaro enquanto ele lhe proporcionar bons negócios com o dinheiro público, mas esse apoio não é incondicional. Ao assumir sua nova posição, Ciro Nogueira avisou ao capitão que ele deveria vê-lo como um “amortecedor”, ou seja, como alguém capaz de absorver os impactos entre o executivo e o legislativo.

Com isso, deixa claro que não pretende ser um mero subordinado do capitão, mas sim uma espécie de mediador. Nessa condição, pretende usufruir de todos os benefícios da chefia da Casa Civil, porém mantendo a “neutralidade” que permite ao Centrão ser o fiel da balança de todos os governos burgueses do Brasil. Só o futuro dirá quanto tempo esse equilíbrio instável vai durar.

Bolsonaro também trabalha em outras frentes, além desse acordo de autopreservação com a ajuda do Centrão. Continua cultivando suas relações com os capitalistas em geral, ao avançar com as privatizações dos Correios e da Eletrobras e com novas medidas de retirada dos direitos dos trabalhadores. Afinal, apesar de não ser o governante ideal para a burguesia, ele está integralmente comprometido com o cumprimento da cartilha imposta pelo capital financeiro, onde as privatizações e o aumento da exploração dos trabalhadores são cláusulas pétreas.

Exemplo disso é a apreciação pelo Congresso da Medida Provisória nº 1045, que institui o Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que visa a redução de jornada e salários e a suspensão de contratos. Nela, o governo Bolsonaro está tentando incluir diversas medidas para fazer uma minirreforma trabalhista, nos moldes da velha ideia da “Carteira Verde e Amarela”, como a redução do recolhimento do FGTS pelas empresas, como forma de “incentivo” ao primeiro emprego.

 

Tentativa de ampliar as bases de apoio

Mas Bolsonaro pretende também se dirigir a outro público. A recriação do Ministério do Trabalho, com a sua retirada do âmbito do Ministério da Economia, indica que há uma preocupação em atrair para o bolsonarismo as velhas bases sindicais pelegas, ao mesmo tempo que permite uma nova rodada de distribuição de cargos, bem ao gosto do Centrão.

A principal investida eleitoral do capitão, entretanto, é o aumento e ampliação do Bolsa Família, agora rebatizado de “Auxílio Brasil”. A ideia é de ampliar o número de beneficiários do programa, de 14,6 milhões para 16 milhões, aumentando o valor do benefício de R$ 189,00 para algo em torno de R$ 285,00 por mês.

Como se trata de um governo comprometido com a “responsabilidade fiscal”, exigência número um do grande capital, os recursos para o programa deverão sair de um artifício: o adiamento do pagamento dos precatórios, ou seja, de dívidas decorrentes de ações judiciais perdidas pela União Federal.

Tanto malabarismo, para um resultado tão pequeno:  na verdade, o Bolsa Família não sofreu reajuste nos três anos do governo Bolsonaro e, mesmo com o aumento proposto de 50%, o valor mal conseguirá fazer frente à defasagem existente nem à atual escalada dos preços dos alimentos e de outros itens de subsistência.

Quanto ao número de beneficiários, os 16 milhões previstos estão muito longe dos 60 milhões de pessoas atendidas em 2020 pelo auxílio emergencial. Além disso, o desemprego só faz aumentar, tendo chegado ao percentual recorde de 14,7% no primeiro trimestre deste ano. E, fora os 14,8 milhões de desempregados atuais, ainda existem 6 milhões de pessoas que simplesmente desistiram de procurar emprego.

Segundo a pesquisa PNAD do IBGE, ao todo, são 32,2 milhões de pessoas desocupadas, subocupadas ou na força de trabalho potencial, mais do dobro dos beneficiários previstos para atendimento pelo novo programa, com esse valor irrisório.

 

Esperança no desempenho da economia?      

Irritado com as novas estatísticas sobre o desemprego publicadas pelo IBGE, que não lhe apresentaram o cenário róseo que aguardava, o Ministro da Economia Paulo Guedes acusou o instituto de utilizar metodologia da Idade da Pedra.

Paulo Guedes sabe que a condição necessária, mas não suficiente, para que o seu chefe tenha sucesso nas eleições presidenciais de 2022 é que a economia se recupere e, com isso, também o emprego. As previsões do insuspeito Fundo Monetário Internacional para o crescimento do Produto Interno Bruto em 2021 chegam a algo em torno de 5,3% e a apenas 1,9% em 2022.

Desconhecendo a existência aritmética dos números relativos, Bolsonaro somou o decréscimo de 4,1% da economia em 2020 com a previsão de 5,3% positivos em 2021, para chegar à brilhante conclusão de que o país estaria passando por um momento extraordinário de crescimento econômico. Nada mais enganoso: considerando os dois anos de 2020 e 2021, o país terá crescido apenas 1,0% no biênio e os 1,9% previstos para 2022 estão longe de representar uma recuperação expressiva.

Para complicar a vida do candidato à reeleição, a previsão da inflação em 2021 é de 6,88% (8,99% nos 12 meses anteriores a julho de 2021), bem acima do teto da sacrossanta meta inflacionária, que é de 5,25%. Para combater essa alta dos preços, a taxa básica de juros está sendo gradativamente aumentada pelo Banco Central e possivelmente chegará a 7,25% no final do ano, contribuindo para frear ainda mais a já minguada recuperação.

Alimentando a inflação, a alta do preço das commodities no mercado internacional, a seca em grande parte do país e a consequente crise no setor elétrico estão pressionando os preços internos de energia, combustíveis e alimentos, sem que o aumento dos juros possa contribuir minimamente para resolver esse problema.

A consequência não é nada favorável eleitoralmente para Bolsonaro: os bancos e o agronegócio lucram, enquanto o desemprego continua alto, o poder aquisitivo dos trabalhadores diminui e a miséria social se alastra.

Calcula-se que no ano anterior à pandemia (2019), a taxa de extrema pobreza no país era de 6,6%, o que representava 13,9 milhões de pessoas e a de pobreza, de 24,8%, correspondendo a 51,9 milhões. As estimativas para 2021 são de uma taxa de extrema pobreza de 9,1% (19,3 milhões de pessoas) e a de pobreza de 28,9% (61,1 milhões de pessoas).

Relatos dão conta que em Cuiabá, capital do maior estado produtor de gado bovino, a distribuição gratuita de pedaços de ossos com restos de carne formou fila diante de um açougue.  Com a maior desfaçatez, o próprio Ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu recentemente que as sobras de restaurantes fossem destinadas à alimentação das populações em estado de miséria.

 

Campanha eleitoral em marcha

Apesar do quadro econômico e social desfavorável, Bolsonaro prossegue em campanha eleitoral, concentrando-se principalmente no que foi denominado de “motociatas”, um desfile de motocicletas à moda fascista de Mussolini, na qual consegue congregar facilmente algumas centenas de seguidores.

Enquanto isso, a classe dominante continua procurando um candidato viável para as eleições de 2022, que seja capaz, ao mesmo tempo, de derrotar Bolsonaro – ameaça constante à institucionalidade democrática e ao domínio político direto da burguesia – e Lula, cujo retorno arrisca a diminuir o ritmo das “reformas” privatizantes e destinadas a aumentar a exploração dos trabalhadores.

A “terceira via”, entretanto, não emplaca. Ciro Gomes, Sérgio Moro e Luciano Hulk ainda não apresentam condições de atrair o eleitorado de centro, que não apoia nem o capitão, nem o ex-metalúrgico.

Retirar Bolsonaro da disputa eleitoral poderia ser uma saída para viabilizar a “terceira via”, seja por meio do andamento de algum dos inúmeros processos de impeachment estacionados na Câmara dos Deputados, seja por ação do Tribunal Superior Eleitoral que o considerasse inelegível, duas possibilidades muito remotas, pois o capitão ainda conta com o apoio do Centrão e dos militares.

Enquanto os trabalhadores continuarem travando suas lutas de forma isolada e fragmentada, sem condições de intervir no cenário político do país de maneira independente, as manifestações públicas contra Bolsonaro adquirem um caráter predominantemente pequeno-burguês e servem apenas para tentar viabilizar a substituição de um governo burguês por outro, com Mourão, Arthur Lira ou Padilha à frente, ou para viabilizar uma terceira via nas eleições, sem que isso contribua minimamente para melhorar as condições de vida dos trabalhadores.

Coletivo do CVM – 10/08/2021

 

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