Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o ‘mundo natural’

ESPECIAL CORONAVÍRUS

Publicado em A Fita

 

[Aqui chegamos com mais uma tradução. Dessa vez um extenso artigo sobre as condições do capitalismo tardio que levaram a mais uma nova epidemia viral e possíveis consequências sociais do coronavírus sobre a população chinesa. O coletivo Chuang (que pode ser traduzido grosseiramente como ‘libertar-se; atacar, fazer carga; romper as linhas inimigas; agir impetuosamente’) é um grupo de comunistas chineses críticos tanto do ‘capitalismo de Estado’ do Partido Comunista Chinês quanto da visão neoliberal e por vezes racista dos movimentos de ‘libertação’ de Hong Kong. O coletivo publica, além de artigos em seu blog, um periódico temático que já tem duas edições, em inglês, e que pode ser consultado aqui ou adquirido via AKPress. Fiquei sabendo deste artigo através do Twitter do podcast estadunidense The Antifada (‘where unrest is best!’). Como a versão de WordPress que estou usando não parece suportar ‘âncoras’, coloquei as citações do texto, marcadas por colchetes em números romanos minúsculos, no final do post. Leia a publicação origainal, em inglês, aqui. Para continuar lendo traduções como essa e ouvindo nossos podcasts, considere colaborar com nosso Apoia.se. Quaisquer dúvidas  ou correções podem ser encaminhadas para o nosso e-mail: mailto:afitapodcast@gmail.com]

 

A fornalha

Wuhan é conhecida coloquialmente como uma dos “quatro fornalhas” (火炉 火炉) da China por seu verão opressivamente úmido e quente, compartilhado com Chongqing, Nanjing e alternadamente Nanchang ou Changsha, todas cidades agitadas e antigas, localizadas perto ou ao longo do vale do rio Yangtze . Das quatro, Wuhan, no entanto, também é polvilhada com fornalhas literais: o enorme complexo urbano atua como uma espécie de núcleo para as indústrias siderúrgicas, de concreto e outras indústrias relacionadas à construção da China, com uma paisagem pontilhada pelos altos fornos de resfriamento lento das fundições remanescentes de ferro e aço pertencentes ao Estado, agora atormentadas pela superprodução e forçadas a uma nova e contenciosa rodada de downsizing, privatização e reestruturação geral – resultando em várias grandes greves e protestos nos últimos cinco anos. A cidade é essencialmente a capital da construção da China, o que significa que desempenhou um papel particularmente importante no período após a crise econômica global, uma vez que foram os anos em que o crescimento chinês foi impulsionado pela canalização de fundos de investimento para projetos de infraestrutura e construção de imóveis. Wuhan não apenas alimentou essa bolha com sua superoferta de materiais de construção e engenheiros civis, mas também, ao fazê-lo, tornou-se uma cidade em expansão imobiliária. De acordo com nossos próprios cálculos, em 2018-2019, a área total dedicada aos canteiros de obras em Wuhan era equivalente ao tamanho da ilha de Hong Kong como um todo.

Mas agora a fornalha que impulsiona a economia chinesa pós-crise parece, bem como aquelas encontradas em suas fundições de ferro e aço, estar esfriando. Embora esse processo já estivesse em andamento, a metáfora não é mais simplesmente econômica, pois a cidade outrora movimentada está fechada por mais de um mês, suas ruas esvaziadas por ordem do governo: “A maior contribuição que você pode dar é: não se reúnam, não causem caos ”, dizia uma manchete no Guangming Daily, jornal dirigido pelo departamento de propaganda do Partido Comunista Chinês. Hoje, as amplas avenidas novas de Wuhan e os brilhantes edifícios de aço e vidro que as coroam estão todos frios e vazios, à medida que o inverno diminui com o Ano Novo Lunar e a cidade entra em estagnação sob a constrição da ampla quarentena. Isolar-se é um bom conselho para qualquer pessoa na China, onde o surto do novo coronavírus (recentemente renomeado para “SARS-CoV-2” e sua doença “COVID-19”) matou quase três mil pessoas – mais do que seu antecessor, a epidemia de SARS em 2003. Todo o país está em bloqueado, como ocorreu durante a SARS. As escolas estão fechadas e as pessoas seguem trancadas em suas casas em todo o país. Quase toda a atividade econômica parou no feriado do Ano Novo Lunar em 25 de janeiro, mas a pausa foi estendida por um mês para conter a propagação da epidemia. As fornalhas da China parecem ter parado de queimar ou, pelo menos, foram reduzidos a leves braseiros. De certa forma, porém, a cidade se tornou outro tipo de fornalha, pois o coronavírus queima sua população maciçamente, como uma febre em grande escala.

A responsabilidade do surto foi apontada, incorretamente, em tudo, desde a liberação conspiratória e/ou acidental de uma cepa de vírus do Instituto Wuhan de Virologia – uma alegação duvidosa divulgada pelas mídias sociais, particularmente pelas postagens paranóicas de Hong Kong e Taiwan no Facebook, mas agora sustentada no Ocidente por veículos de imprensa conservadores e interesses militares – à propensão do povo chinês a consumir alimentos “sujos” ou “estranhos”, uma vez que o surto de vírus está ligado a morcegos ou cobras vendidos em um “mercado úmido” semi-ilegal especializado em animais selvagens e raros (embora essa não seja a sua fonte definitiva). Ambas as teorias da conspiração exibem o óbvio interesse militar e orientalismo comuns aos relatos ocidentais sobre a China, e vários artigos apontaram esse fato básico. Mas mesmo essas respostas tendem a se concentrar apenas em questões sobre como o vírus é percebido na esfera cultural, gastando muito menos tempo investigando a dinâmica muito mais brutal que se esconde sob o frenesi da mídia.

Uma variante um pouco mais complexa da questão compreende pelo menos as consequências econômicas, mesmo quando exagera para efeito retórico as possíveis repercussões políticas. Aqui encontramos os suspeitos do costume, variando de políticos cuja carreira se resume à insuflar o militarismo americano aos tipinhos tomadoras de latte agarradas à suas bolsas de pérola do haute-liberalismo: agências de imprensa, da National Review ao New York Times, já sugeriram que o surto pode trazer uma “crise de legitimidade ”para o PCCh, apesar de mal haver uma mera poeira de levante no ar. Mas o cerne da verdade para essas previsões está na compreensão das dimensões econômicas da quarentena – algo que dificilmente poderia passar batido para jornalistas com carteiras de ações mais espessas que seus crânios. Porque o fato é que, apesar do pedido do governo pelo isolamento, as pessoas em breve poderão ser forçadas a se “reunir” para atender às necessidades de produção. De acordo com as últimas estimativas, a epidemia desde já fará com que o PIB da China caia para 5% neste ano, abaixo da taxa de crescimento de 6% no ano passado, a menor em três décadas. Alguns analistas disseram que o crescimento no primeiro trimestre pode cair 4% ou menos, e que isso pode arriscar uma recessão global de algum tipo. Uma questão anteriormente impensável está colocada: o que realmente acontece com a economia global quando a fornalha chinesa começa a esfriar?

Na própria China é difícil prever a trajetória final desse evento, mas o momento já trouxe um raro processo coletivo de questionar e aprender sobre a sociedade. A epidemia já infectou diretamente cerca de 80.000 pessoas (na estimativa mais conservadora), mas provocou um choque na vida cotidiana do capitalismo em 1,4 bilhão, presos em um momento de autorreflexão precária. Este momento, embora cheio de medo, fez com que todos fizessem perguntas profundas ao mesmo tempo: O que vai acontecer comigo? Meus filhos, família e amigos? Teremos comida suficiente? Eu serei pago? Vou conseguir pagar o aluguel? Quem é responsável por tudo isso? De uma maneira estranha, a experiência subjetiva é semelhante à de uma greve em massa – mas que, em seu caráter não espontâneo, de cima para baixo e, especialmente em sua hiperatomização involuntária, ilustra os enigmas básicos do nosso próprio presente político estrangulado tão claramente quanto as verdadeiras greves de massa do século anterior elucidaram as contradições de sua época. A quarentena, então, é como uma greve oca de suas características comunais, mas, no entanto, capaz de causar um choque profundo à psique e à economia. Somente esse fato já a torna digna de reflexão.

É claro que especulações sobre a queda iminente do PCCh são um absurdo previsível, um dos passatempos favoritos da The New Yorker e da The Economist. Enquanto isso, os protocolos normais de supressão da mídia estão em andamento, nos quais artigos de opinião abertamente racistas publicados em grandes veículos são combatidos por um enxame de textões de rede social polemizando contra o orientalismo e outras facetas da ideologia. Mas quase toda a discussão permanece no nível da representação – ou, na melhor das hipóteses, das políticas de contenção e das consequências econômicas da epidemia – sem se aprofundar nas questões de como essas doenças são produzidas em primeiro lugar, muito menos distribuídas. Mesmo isso, no entanto, não é suficiente. Agora não é hora de um simples exercício do “Scooby-Doo Marxista” de tirar a máscara do vilão para revelar que, sim, de fato, era o capitalismo que estava causando o coronavírus o tempo todo! Isso não seria mais sutil do que comentaristas estrangeiros caçando possibilidades de uma mudança de regime. É claro que o capitalismo é o culpado – mas como exatamente a esfera socioeconômica interage com a biológica e que tipo de lições mais profundas podem ser tiradas de toda essa experiência?

Nesse sentido, o surto apresenta duas oportunidades de reflexão: primeiro, é uma abertura instrutiva na qual podemos revisar questões substanciais sobre como a produção capitalista se relaciona com o mundo não humano em um nível mais fundamental – como, em resumo, o “mundo natural ”, incluindo seus substratos microbiológicos, não pode ser entendido sem referência a como a sociedade organiza a sua produção (porque os dois não são, de fato, separados). Ao mesmo tempo, é um lembrete de que o único comunismo que merece esse nome é aquele que inclui o potencial de um naturalismo totalmente politizado. Segundo, também podemos usar esse momento de isolamento para nossa própria reflexão sobre o estado atual da sociedade chinesa. Algumas coisas só ficam claras quando tudo para de repente, e uma desaceleração desse tipo não pode deixar de tornar visíveis as tensões anteriormente obscurecidas. A seguir, exploraremos essas duas questões, mostrando não apenas como a acumulação capitalista produz tais pragas, mas também como o momento da pandemia é um caso contraditório de crise política, tornando visível para as pessoas os potenciais e dependências invisíveis do mundo ao redor deles, oferecendo também mais uma desculpa para a extensão dos sistemas de controle ainda mais profundo na vida cotidiana.

 

A produção de pragas

O vírus por trás da epidemia atual (SARS-CoV-2) foi, como o antecessor de 2003 SARS-CoV, bem como a gripe aviária e gripe suína antes dele, gestado no nexo entre a economia e a epidemiologia. Não é por acaso que muitos desses vírus assumiram o nome de animais: a disseminação de novas doenças para a população humana acontece através da chamada transferência zoonótica, que é uma maneira técnica de dizer que essas infecções saltam dos animais para os humanos. Esse salto de uma espécie para outra é condicionado por questões como proximidade e regularidade do contato, que constroem o ambiente em que a doença é forçada a evoluir. Quando essa interface entre humanos e animais muda, também mudam as condições nas quais essas doenças evoluem. Para além das quatro fornalhas, então, encontra-se uma fornalha mais fundamental subjacente aos centros industriais do mundo: a panela de pressão evolutiva criada pela agricultura e urbanização capitalistas. Isso fornece o meio ideal através do qual pragas cada vez mais devastadoras nascem, transformam-se, são induzidas a saltos zoonóticos e, em seguida, agressivamente vetorizadas através da população humana. A isso se soma processos igualmente intensivos que ocorrem nas margens da economia, onde cepas “selvagens” são encontradas por pessoas pressionadas a incursões agroeconômicas cada vez mais extensivas sobre os ecossistemas locais. O coronavírus mais recente, em suas origens “selvagens” e sua súbita disseminação por um núcleo fortemente industrializado e urbanizado da economia global, representa as duas dimensões da nossa nova era de pragas político-econômicas.

A ideia básica aqui é desenvolvida mais minuciosamente por biólogos de esquerda como Robert G. Wallace, cujo livro de 2016 Big Farms Make Big Flu aponta largamente para a conexão entre o agronegócio capitalista e a etiologia de epidemias recentes que variam da SARS ao Ebola. [i] Essas epidemias podem ser fracamente agrupadas em duas categorias, a primeira originada no núcleo da produção agroeconômica e a segunda nas fronteiras agrícolas. Ao traçar a disseminação do H5N1, também conhecida como gripe aviária, ele resume vários fatores-chave geográficos para aquelas epidemias que se originam no núcleo produtivo:

As paisagens rurais de muitos dos países mais pobres são agora caracterizadas pelo agronegócio desregulamentado pressionado contra as favelas periubanas. A transmissão descontrolada em áreas vulneráveis aumenta a variação genética com a qual o H5N1 pode evoluir características específicas para a infecção em humanos. Ao se espalhar por três continentes, o H5N1, em rápida evolução, também entra em contato com uma variedade crescente de ambientes socioecológicos, incluindo combinações localmente específicas dos tipos de hospedeiros prevalecentes, modos de criação de aves e medidas de saúde animal. [ii]

É claro que essa expansão é impulsionada pelos circuitos globais de mercadorias e pelas migrações regulares de trabalho que definem a geografia econômica capitalista. O resultado é “um tipo de seleção demoníaca crescente”, através da qual o vírus apresenta um número maior de caminhos evolutivos em um tempo mais curto, permitindo que as variantes mais bem adaptadas superem as demais.

Mas esse é um argumento fácil, e já é comum na grande imprensa: o fato de a “globalização” possibilitar a disseminação de tais doenças mais rapidamente – embora aqui com um acréscimo importante, observando como esse processo de circulação também estimula o vírus a sofrer mutações mais rapidamente. A questão real, porém, vem antes: antes da circulação, aumentando a resiliência de tais doenças, a lógica básica do capital ajuda a pegar cepas virais previamente isoladas ou inofensivas e a colocá-las em ambientes hipercompetitivos que favorecem os traços específicos que causam epidemias, como ciclos rápidos de vida viral, a capacidade de salto zoonótico entre espécies transportadoras e a capacidade de evoluir rapidamente para novos vetores de transmissão. Essas cepas tendem a se destacar precisamente por causa de sua virulência. Em termos absolutos, parece que o desenvolvimento de cepas mais virulentas teria o efeito oposto, já que matar o hospedeiro mais rápido proporciona menos tempo para a propagação do vírus. O resfriado comum é um bom exemplo desse princípio, geralmente mantendo baixos níveis de intensidade que facilitam sua ampla distribuição pela população. Mas, em certos ambientes, a lógica oposta faz muito mais sentido: quando um vírus tem numerosos hospedeiros da mesma espécie mantidos em proximidade, e especialmente quando esses hospedeiros já podem ter ciclos de vida mais curtos, o aumento da virulência se torna uma vantagem evolutiva.

Novamente, o exemplo da gripe aviária aqui é saliente. Wallace ressalta que os estudos demonstraram que “não há cepas endêmicas altamente patogênicas [da gripe] em populações de aves selvagens, a fonte reservatória inicial de quase todos os subtipos de gripe”. [iii] Em vez disso, as populações domesticadas reunidas em fazendas industriais parecem exibir uma clara relação com esses surtos, por razões óbvias:

A crescente monocultura genética de animais domésticos remove qualquer obstáculo imunológico disponível para retardar a transmissão de novos patógenos. Tamanhos e densidades populacionais maiores facilitam maiores taxas de transmissão. Tais condições de densidade deprimem a resposta imunológica. O alto rendimento, parte de qualquer produção industrial, fornece um suprimento continuamente renovável de organismos suscetíveis, o combustível para a evolução da virulência. [iv]

E, é claro, cada uma dessas características é uma consequência da lógica da concorrência industrial. Em particular, a acelerada taxa de “produtividade” em tais contextos tem uma dimensão biológica acentuada: “Assim que os animais industriais atingem o volume certo, são mortos. As infecções por influenza residentes precisam atingir seu limiar de transmissão rapidamente em qualquer desses animais […] Quanto mais rápido o vírus é produzido, maior o dano ao animal. ”[v] Ironicamente, a tentativa de suprimir esses surtos através do abate em massa – como nos recentes casos de peste suína africana que resultaram na perda de quase um quarto do suprimento mundial de carne suína – podem ter o efeito não intencional de aumentar ainda mais essa pressão de seleção, induzindo assim a evolução de cepas hiper virulentas. Embora esses surtos tenham ocorrido historicamente em espécies domesticadas, muitas vezes após períodos de guerra ou catástrofes ambientais que pressionam mais as populações de gado, o aumento da intensidade e virulência de tais doenças seguiu inegavelmente a expansão da produção capitalista.

 

História e Etiologia

Pragas são em larga medida uma sombra da industrialização capitalista, enquanto também agem como seu arauto. Os casos óbvios da varíola e outras pandemias introduzidas na América do Norte são um exemplo muito simples, uma vez que sua intensidade foi aprimorada pela separação por longo prazo das populações humanas por meio barreiras geográficas  – e essas doenças, independentemente, já haviam ganhado sua virulência via redes mercantis pré-capitalistas e a urbanização precoce na Ásia e na Europa. Se olharmos para a Inglaterra, onde o capitalismo surgiu primeiro no campo, através da limpeza em massa de camponeses da terra a ser substituída por monoculturas de gado, vemos os primeiros exemplos dessas pragas distintamente capitalistas. Três pandemias diferentes ocorreram na Inglaterra do século XVIII, abrangendo os períodos de 1709-1720, 1742-1760 e 1768-1786. A origem de cada uma foi gado importado da Europa, infectado pelas pandemias pré-capitalistas normais que se seguiram a guerras. Mas na Inglaterra o gado começou a se concentrar de novas maneiras, e a introdução do estoque infectado atingiria a população de maneira muito mais agressiva do que na Europa continental. Não é por acaso, então, que os surtos se concentraram nos grandes laticínios de Londres, que proporcionaram ambientes ideais para a intensificação do vírus.

Por fim, os surtos foram contidos por meio de abate precoce seletivo e em menor escala, combinado com a aplicação de práticas médicas e científicas modernas – em essência semelhantes à forma como essas epidemias são combatidas atualmente. Esta é a primeira instância do que se tornaria um padrão claro, imitando o das próprias crises econômicas: colapsos cada vez mais intensos que parecem colocar todo o sistema em um precipício, mas que são superados por meio de uma combinação de sacrifício em massa que limpa o mercado / população e de intensificação dos avanços tecnológicos – nesse caso, as práticas médicas modernas somadas às novas vacinas, muitas vezes chegando tarde demais, mas mesmo assim ajudando a limpar as coisas após a devastação.

Mas este exemplo da terra natal do capitalismo também deve ser acompanhado de uma explicação dos efeitos que as práticas agrícolas capitalistas tiveram em sua periferia. Enquanto as pandemias de gado da Inglaterra capitalista inicial estavam contidas, os resultados em outros lugares foram muito mais devastadores. O exemplo com o maior impacto histórico é provavelmente o do surto de peste bovina na África que ocorreu na década de 1890. A data em si não é coincidência: a peste bovina atormentou a Europa com uma intensidade que acompanhou de perto o crescimento da agricultura em larga escala, apenas controlada pelo avanço da ciência moderna. Mas o final do século XIX viu o auge do imperialismo europeu, simbolizado pela colonização da África. A peste bovina foi trazida da Europa para a África Oriental com os italianos, que buscavam alcançar outras potências imperiais colonizando o Chifre da África através de uma série de campanhas militares. Essas campanhas terminaram principalmente em fracassos, mas a doença se espalhou pela população local de gado e finalmente chegou à África do Sul, onde devastou a economia agrícola capitalista da colônia, matando até o rebanho na propriedade do infame e autodeclarado supremacista branco Cecil Rhodes. O maior efeito histórico foi inegável: matando de 80 a 90% de todo o gado, a praga resultou em uma fome sem precedentes nas sociedades predominantemente pastoris da África Subsaariana. Esse despovoamento foi seguido pela colonização invasiva da savana pelo espinheiro, que criou um habitat para a mosca tsé-tsé, que carrega a doença do sono e impede o pastoreio de animais. Isso garantiu que o repovoamento da região após a fome seria limitado e possibilitou a disseminação das potências coloniais europeias por todo o continente.

Além de induzir periodicamente crises agrícolas e produzir as condições apocalípticas que ajudaram o capitalismo a ultrapassar suas fronteiras iniciais, essas pragas também assombraram o proletariado do próprio núcleo industrial. Antes de retornar aos muitos exemplos mais recentes, vale a pena notar novamente que simplesmente não há nada exclusivamente chinês no surto de coronavírus. As explicações sobre por que tantas epidemias parecem surgir na China não são culturais, é uma questão de geografia econômica. Isso é bastante claro se compararmos a China com os EUA ou a Europa, quando estes eram polos de produção global e emprego industrial em massa. [vi] E o resultado é essencialmente idêntico, com os mesmos recursos. A mortandade de animais no campo se encontrou na cidade com a falta de saneamento básico e contaminação generalizada. Isso se transformou no foco dos primeiros esforços liberal-progressistas de reformas nas áreas da classe trabalhadora, simbolizados pela recepção do romance de Upton Sinclair A Selva (The Jungle), originalmente escrito para documentar o sofrimento dos trabalhadores imigrantes no setor de frigoríficos, mas adotado por liberais mais ricos preocupados com violações sanitárias e com as condições geralmente insalubres em que seus próprios alimentos eram preparados.

Esse ultraje liberal à “sujeira”, com todo o seu racismo implícito, ainda define o que podemos pensar como a ideologia automática da maioria das pessoas quando confrontadas com as dimensões políticas de algo como as epidemias de coronavírus ou SARS. Mas os trabalhadores têm pouco controle sobre as condições em que trabalham. Mais importante, embora condições insalubres saiam da fábrica para a mesa devido à contaminação de alimentos, essa contaminação é realmente apenas a ponta do iceberg. Tais condições são a norma para aqueles que trabalham ou vivem em assentamentos proletários próximos, e essas condições induzem declínios na saúde da população que fornecem condições ainda melhores para a disseminação das muitas pragas do capitalismo. Tomemos, por exemplo, o caso da gripe espanhola, uma das epidemias mais mortais da história. Esse foi um dos primeiros surtos de influenza H1N1 (em relação aos surtos mais recentes de gripe suína e aviária), e supunha-se que ele fosse de alguma forma qualitativamente diferente de outras variantes de influenza, dado seu alto número de mortos. Embora isso pareça verdadeiro em parte (devido à capacidade da gripe espanhola de induzir uma reação exagerada do sistema imunológico), revisões posteriores da literatura e da pesquisa histórica em epidemiologia descobriram que o vírus pode não ter sido muito mais virulento do que outras cepas. Em vez disso, sua alta taxa de mortalidade provavelmente foi causada principalmente por desnutrição generalizada, superlotação urbana e condições de vida geralmente insalubres nas áreas afetadas, o que incentivou não apenas a disseminação da gripe em si, mas também o cultivo de superinfecções bacterianas sobre a infecção viral inicial. [vii]

Em outras palavras, a alta taxa de mortalidade da gripe espanhola, embora retratada como uma aberração imprevisível característica dessa cepa do vírus, foi incrementada pelas condições sociais. Enquanto isso, a rápida disseminação da gripe foi possibilitada pelo comércio global e pela guerra global, naquele momento centrada nos imperialismos em rápida mudança que sobreviveram à Primeira Guerra Mundial. E encontramos novamente uma história agora familiar de como uma cepa mortal de influenza foi produzida em primeiro lugar: embora a origem exata ainda seja um pouco obscura, é agora amplamente assumido que ela se originou em suínos ou aves domésticas, provavelmente no Kansas . O tempo e a localização são notáveis, pois os anos que se seguiram à guerra foram uma espécie de ponto de inflexão para a agricultura americana, que viu a ampla aplicação de métodos de produção cada vez mais mecanizados, quase fabris. Essas tendências só se intensificaram na década de 1920, e a aplicação em massa de tecnologias como a ceifeira-debulhadora induziu ao mesmo tempo uma gradual monopolização e um desastre ecológico, cuja combinação resultou na crise do Dust Bowl e na migração em massa que se seguiu. A concentração intensiva de gado que marcaria as fazendas industriais posteriores ainda não havia surgido, mas as formas mais básicas de concentração e produção intensiva que já haviam criado epidemias de gado em toda a Europa eram agora a norma. Se as epidemias de gado inglesas do século XVIII foram o primeiro caso de uma praga pecuária distintamente capitalista e o surto de peste bovina da África dos anos 1890 foi o maior dos holocaustos epidemiológicos do imperialismo, a gripe espanhola pode ser entendida como a primeira das pragas do capitalismo no proletariado.

 

Era de ouro

Os paralelos com o atual caso chinês são salientes. O COVID-19 não pode ser entendido sem levar em consideração as maneiras pelas quais as últimas décadas de desenvolvimento da China no e através do sistema capitalista global moldaram o sistema de saúde do país e o estado da saúde pública em geral. A epidemia, por mais nova que seja, é, portanto, semelhante a outras crises de saúde pública que surgiram antes, que tendem a ser produzidas quase com a mesma regularidade que as crises econômicas e a serem vistas de maneira semelhante na imprensa popular – como se fossem aleatórias, eventos do tipo “cisne negro”, totalmente imprevisíveis e sem precedentes. A realidade, no entanto, é que essas crises de saúde seguem seus próprios padrões caóticos e cíclicos de recorrência, tornados mais prováveis ​​por uma série de contradições estruturais construídas na natureza da produção e da vida proletária no capitalismo. Muito parecido com o caso da gripe espanhola, o coronavírus foi originalmente capaz de se espalhar rapidamente por causa de uma degradação geral dos cuidados básicos de saúde entre a população em geral. Mas justamente porque essa degradação ocorreu em meio a um crescimento econômico espetacular, foi ocultada por trás do esplendor das cidades cintilantes e das grandes fábricas. A realidade, no entanto, é que os gastos com bens públicos, como assistência médica e educação na China, permanecem extremamente baixos, enquanto a maioria dos gastos públicos foi direcionada à infraestrutura de tijolo e concreto – pontes, estradas e eletricidade barata para a produção.

Enquanto isso, a qualidade dos produtos do mercado interno costuma ser perigosamente ruim. Durante décadas, a indústria chinesa produziu exportações de alta qualidade e alto valor, feitas com os mais altos padrões do mercado global, como iPhones e chips de computador. Mas os bens voltados para o consumo no mercado doméstico têm padrões abismalmente baixos, causando escândalos regulares e profunda desconfiança pública. Os muitos casos fazem um eco inegável ao The Jungle de Sinclair, e outros contos da “Era de Ouro Americana”. O maior caso da memória recente, o escândalo do leite com melamina de 2008, deixou uma dúzia de bebês mortos e dezenas de milhares de hospitalizados (embora talvez centenas de milhares tenham sido afetados). Desde então, vários escândalos abalaram o público com regularidade: em 2011, quando o óleo de esgoto reciclado em caixas de gordura foi encontrado em restaurantes de todo o país, ou em 2018, quando vacinas defeituosas mataram várias crianças e, um ano depois, quando dezenas foram hospitalizadas quando receberam vacinas falsas contra o HPV. Histórias mais brandas são ainda mais desenfreadas, compondo um cenário familiar para qualquer pessoa que vive na China: mistura instantânea de sopa em pó “reforçada” com sabão para manter os custos baixos, empresários que vendem porcos que morreram de causas misteriosas para aldeias vizinhas, fofocas detalhadas sobre qual restaurante de esquina vai te deixar doente.

Antes da incorporação peça por peça do país ao sistema capitalista global, serviços como assistência médica na China eram prestados (principalmente nas cidades) sob o sistema danwei de seguro-saúde baseados em empresas ou (principalmente, mas não exclusivamente no campo) por clínicas de saúde locais compostas por muitos “médicos descalços”, todos prestados como um serviço gratuito. Os sucessos da assistência de saúde da era socialista, como seus sucessos no campo da educação básica e da alfabetização, foram substanciais o suficiente para que até os críticos mais severos do país precisassem reconhecê-los. A esquistossomose, que assolou o país por séculos, foi essencialmente exterminada em grande parte de seu núcleo histórico, apenas para retornar com vigor quando o sistema socialista de saúde começou a ser desmantelado. A mortalidade infantil despencou e, apesar da fome que acompanhou o Grande Salto À Frente, a expectativa de vida saltou de 45 para 68 anos entre 1950 e o início dos anos 80. A imunização e as práticas sanitárias gerais se espalharam e as informações básicas sobre nutrição e saúde pública, bem como o acesso a medicamentos rudimentares, eram gratuitas e estavam disponíveis para todos. Enquanto isso, o sistema de médicos descalços ajudou a distribuir conhecimento médico fundamental, embora limitado, a uma grande parte da população, ajudando a construir um sistema de saúde robusto e de baixo para cima em condições de grave pobreza material. Vale lembrar que tudo isso ocorreu em um momento em que a China era mais pobre, per capita, do que um país médio da África Subsaariana hoje.

Desde então, uma combinação de negligência e privatização degradou substancialmente esse sistema ao mesmo tempo em que a rápida urbanização e a produção industrial desregulamentada de bens domésticos e produtos alimentares tornaram a necessidade de uma assistência médica universalizada, sem mencionar a regulamentação sobre alimentos, medicamentos e segurança, mais necessária do que nunca. Hoje, os gastos públicos em saúde da China são de US$ 323 per capita, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. Esse número é baixo, mesmo entre outros países de “renda média”, e é cerca de metade do que é gasto por Brasil, Bielorrússia e Bulgária. A regulamentação é mínima ou inexistente, resultando em vários escândalos do tipo mencionado acima. Enquanto isso, os efeitos dessas negligências são sentidos com mais força pelas centenas de milhões de trabalhadores migrantes, para os quais o direito a assistência médica básica evapora completamente quando eles deixam suas cidades de origem (de onde, sob o sistema hukou, eles são residentes permanentes, independentemente da sua localização real, o que significa que os recursos públicos não podem ser acessados ​​em outro local).

Aparentemente, o sistema de saúde público deveria ter sido substituído no final dos anos 90 por um sistema mais privatizado (embora gerenciado pelo Estado), no qual uma combinação de contribuições de empregadores e empregados proporcionaria assistência médica, pensões e seguro de habitação. Mas esse sistema de seguro social sofreu com pagamentos insuficientes sistemáticos, na medida em que as contribuições supostamente “necessárias” por parte dos empregadores são muitas vezes simplesmente ignoradas, deixando a esmagadora maioria dos trabalhadores a pagar do próprio bolso. De acordo com a última estimativa nacional disponível, apenas 22% dos trabalhadores migrantes tinham seguro médico básico. A falta de contribuições para o sistema de seguro social não é, no entanto, simplesmente um ato maldoso de patrões individualmente corruptos, mas é explicada em grande parte pelo fato de que as margens de lucro reduzidas não deixam espaço para benefícios sociais. Pelos nossos próprios cálculos, descobrimos que cobrar o seguro social não pago em um centro industrial como Dongguan reduziria os lucros industriais pela metade e levaria muitas empresas à falência. Para compensar as enormes lacunas, a China instituiu um minguado esquema médico suplementar para cobrir aposentados e trabalhadores independentes, que pagam apenas algumas centenas de yuans por pessoa por ano, em média.

Esse sistema médico dilapidado produz suas próprias tensões sociais aterradoras. Vários profissionais de saúde são mortos a cada ano e dezenas são feridos por ataques de pacientes raivosos ou, mais frequentemente, dos familiares de pacientes que morreram sob seus cuidados. O ataque mais recente ocorreu na véspera de Natal, quando um médico em Pequim foi esfaqueado até a morte pelo filho de um paciente que acreditava que sua mãe havia morrido devido a maus cuidados no hospital. Uma pesquisa com médicos descobriu que 85% deles já sofreram violência no local de trabalho, e outra, a partir de 2015, disse que 13% dos médicos na China foram agredidos fisicamente no ano anterior. Os médicos chineses atendem quatro vezes o número de pacientes por ano que atendem os médicos dos EUA, enquanto recebem menos de US$ 15.000 por ano – em comparação, isso é menor que a renda per capita do país (16.760 dólares), enquanto nos EUA um salário médio de um médico (cerca de US$ 300.000) é quase cinco vezes maior que a renda per capita (US$ 60.200). Antes de ser fechado em 2016 e de seus criadores serem presos, o agora extinto projeto de Lu Yuyu e Li Tingyu para acompanhar a agitação social no país através de um blog registrou pelo menos algumas greves e protestos por trabalhadores médicos todos os meses em que funcionou. [viii] Em 2015, o último ano inteiro com dados meticulosamente coletados, houve 43 desses eventos. Eles também registraram dezenas de “incidentes de tratamento médico [protesto]” a cada mês, liderados por familiares de pacientes, com 368 registrados em 2015.

Sob tais condições de desinvestimento público em massa do sistema de saúde, não é de surpreender que o COVID-19 tenha se espalhado tão facilmente. Combinado ao fato de que uma doença transmissível surge na China a cada 1-2 anos, as condições parecem preparadas para que essas epidemias continuem. Como no caso da gripe espanhola, as condições geralmente ruins de saúde pública entre a população proletária ajudaram o vírus a ganhar corpo e, a partir daí, a se espalhar rapidamente. Mas, novamente, não é apenas uma questão de distribuição. Também temos que entender como o próprio vírus foi produzido.

 

Não há mais região selvagem

No caso do surto mais recente, a história é menos direta do que os casos de gripe suína ou aviária, que estão tão claramente associados ao núcleo do sistema agroindustrial. Por um lado, as origens exatas do vírus ainda não estão totalmente esclarecidas. É possível que tenha se originado de porcos, um dos muitos animais domesticados e selvagens que são traficados no “mercado úmido” de Wuhan, que parece ser o epicentro do surto, caso em que a causa pode ser mais semelhante aos casos acima do que poderia de outra forma parecer. A maior probabilidade, no entanto, parece apontar para o vírus originário de morcegos ou possivelmente cobras, que geralmente são recolhidos na natureza. Mesmo aqui, porém, existe uma relação, já que o declínio na disponibilidade e segurança da carne de porco devido ao surto da febre suína africana fez com que o aumento da demanda de carne tenha sido atendido com frequência por esses mercados úmidos que vendem carne de caça “selvagem”. Mas, sem a conexão direta da agricultura industrial, pode-se dizer que os mesmos processos econômicos têm alguma cumplicidade nesse surto em particular?

A resposta é sim, mas de uma maneira diferente. Novamente, Wallace aponta não apenas uma, mas duas rotas principais pelas quais o capitalismo ajuda a gestar e desencadear epidemias cada vez mais mortais: a primeira, descrita acima, é o caso diretamente industrial, no qual os vírus são gerados em ambientes industriais que foram totalmente subsumidos dentro lógica capitalista. Mas o segundo é o caso indireto, que ocorre através da expansão e extração capitalistas nas áreas ainda não cultivadas, onde vírus anteriormente desconhecidos são essencialmente colhidos de populações selvagens e distribuídos ao longo dos circuitos globais de capital. Os dois não são totalmente separados, é claro, mas parece ser o segundo caso que melhor descreve o surgimento da epidemia atual. [ix] Nesse caso, o aumento da demanda de corpos de animais selvagens para consumo, uso médico, ou (como no caso dos camelos e MERS), uma variedade de funções culturalmente significativas constrói novas cadeias globais de mercadorias de bens “selvagens”. Em outros, cadeias de valor agro-ecológicas pré-existentes simplesmente se estendem sobre esferas anteriormente “selvagens”, alterando ecologias locais e modificando a interface entre o humano e o não humano.

Wallace é claro a respeito disso, explicando várias dinâmicas que criam doenças piores, apesar de os próprios vírus já existirem em ambientes “naturais”. A expansão da produção industrial em si “pode ​​empurrar alimentos silvestres cada vez mais capitalizados para o final da paisagem primária, escavando uma variedade maior de patógenos potencialmente protopandêmicos”. Em outras palavras, à medida que a acumulação de capital inclui novos territórios, os animais serão empurrados para áreas menos acessíveis, onde entrarão em contato com cepas de doenças previamente isoladas, enquanto esses animais se tornarão alvos de mercantilização, já que “até as espécies de subsistência mais selvagens estão sendo inseridas em cadeias de valor agroeconômicas”. Da mesma forma, essa expansão empurra os humanos para mais perto desses animais e desses ambientes, o que “pode ​​aumentar a interface (e transbordamento) entre populações não-humanas selvagens e a ruralidade recém-urbanizada”. Isso dá aos vírus mais oportunidades e recursos para sofrerem mutações de uma maneira que permita infectar seres humanos, aumentando a probabilidade de transbordamento biológico. A geografia da própria indústria nunca é tão claramente urbana ou rural, da mesma forma que a agricultura industrial monopolizada faz uso de fazendas de grande porte e de pequenos agricultores: “na pequena propriedade de um granjeiro [ligado a uma indústria agropecuária] ao longo da borda da floresta, um alimento animal pode pegar um patógeno antes de ser enviado de volta para uma planta de processamento no anel externo de uma grande cidade”.

Esse fato produz as condições necessárias para a transformação de cepas virais “selvagens” em pandemias globais. Mas o COVID-19 não é a pior delas. Uma ilustração ideal do princípio básico – e do perigo global – pode ser encontrada no Ebola. O vírus Ebola [xi] é um caso claro de um reservatório viral existente sendo derramado na população humana. As evidências atuais sugerem que os hospedeiros de origem são várias espécies de morcegos nativos da África Ocidental e Central, que agem como portadores, mas não são afetados pelo vírus. O mesmo não ocorre com outros mamíferos selvagens, como primatas e seixas, que contraem periodicamente o vírus e sofrem surtos rápidos e de alta fatalidade. O ebola tem um ciclo de vida particularmente agressivo quando ataca fora de suas espécies-reservatórios. Através do contato com qualquer um desses hospedeiros selvagens, os humanos também podem ser infectados, com resultados devastadores. Várias epidemias importantes ocorreram, e a taxa de mortalidade para a maioria foi extremamente alta, quase sempre superior a 50%. O maior surto registrado, que continuou esporadicamente de 2013 a 2016 em vários países da África Ocidental, registrou 11.000 mortes. A taxa de mortalidade para os pacientes hospitalizados nesse surto foi de 57 a 59%, e muito mais alta para aqueles sem acesso a hospitais. Nos últimos anos, várias vacinas foram desenvolvidas por empresas privadas, mas mecanismos de aprovação lentos e rigorosos direitos de propriedade intelectual se combinaram com a falta generalizada de infraestrutura de saúde para produzir uma situação em que as vacinas pouco fizeram para impedir a epidemia mais recente, centrada na República Democrática do Congo (RDC) e agora o surto mais duradouro.

A doença é frequentemente apresentada como se fosse algo como um desastre natural – na melhor das hipóteses, na pior das hipóteses, atribuída às práticas culturais “impuras” dos pobres que vivem na floresta. Mas o momento desses dois grandes surtos (2013-2016 na África Ocidental e 2018 – presentes na RDC) não é uma coincidência. Ambos ocorreram precisamente quando a expansão das indústrias primárias tem deslocado ainda mais os povos que habitam as florestas e perturbado os ecossistemas locais. De fato, isso parece ser verdade não só para os casos mais recentes, pois, como explica Wallace, “todo surto de Ebola parece conectado a mudanças de capital no uso da terra, incluindo o primeiro surto em Nzara, Sudão, em 1976, onde uma fábrica financiada pelos britânicos começou a tecer algodão local”. Da mesma forma, os surtos de 2013 na Guiné ocorreram logo após um novo governo ter começado a abrir o país aos mercados globais e vender grandes extensões de terra a conglomerados internacionais do agronegócio. A indústria de óleo de palma, notória por seu papel no desmatamento e destruição ecológica em todo o mundo, parece ter sido particularmente culpada, pois suas monoculturas devastam as robustas redundâncias ecológicas que ajudam a interromper as cadeias de transmissão e ao mesmo tempo literalmente atraem as espécies de morcegos que servem como um reservatório natural para o vírus. [xii]

Enquanto isso, a venda de grandes extensões de terra para empresas agroflorestais comerciais implica tanto o deslocamento de habitantes originários das florestas quanto a ruptura de suas formas locais de produção e colheita dependentes dos ecossistemas. Isso geralmente deixa os pobres do campo sem opção a não ser avançar mais na floresta, ao mesmo tempo em que seu relacionamento tradicional com esse ecossistema é interrompido. O resultado é que a sobrevivência depende cada vez mais da caça de animais selvagens ou da colheita de flora e madeira locais para venda nos mercados globais. Essas populações tornam-se os substitutos da ira das organizações ambientalistas globais, que as condenam como “caçadores cruéis” e “madeireiros ilegais” responsáveis ​​pelo próprio desmatamento e destruição ecológica que as levou a tais operações em primeiro lugar. Frequentemente, o processo toma um rumo muito mais sombrio, como na Guatemala, onde os paramilitares anticomunistas que restaram da guerra civil do país foram transformados em forças de segurança “verdes”, encarregadas de “proteger” a floresta da extração ilegal de madeira, caça e narcotráfico. Essas eram as únicas atividades econômicas disponíveis para seus residentes indígenas – que haviam sido levados a tais atividades justamente por causa da violenta repressão que enfrentaram daqueles mesmos paramilitares durante a guerra. [xiii] O padrão desde então foi reproduzido em todo o mundo, aplaudido por postagens de mídia social em países de alta renda comemorando a execução (muitas vezes literalmente capturada pelas câmeras) de “caçadores ilegais” por forças de segurança supostamente “verdes”.

 

A contenção como exercício de estadismo

O COVID-19 chamou a atenção global com uma força sem precedentes. O Ebola, a gripe aviária e a SARS, é claro, todos tiveram seus pânicos disseminados por meios de comunicação. Mas algo sobre essa nova epidemia gerou um tipo diferente de poder de permanência. Em parte, isso é quase certamente devido à escala espetacular da resposta do governo chinês, resultando em imagens igualmente espetaculares de megacidades esvaziadas que contrastam fortemente com a imagem normal que a mídia faz da China como superlotada e superpoluída. Essa resposta também foi uma fonte frutífera para a especulação normal sobre o iminente colapso político ou econômico do país, dando um impulso extra pelas contínuas tensões da guerra comercial em estágio inicial com os EUA. Isso combina com a rápida disseminação do vírus, dando a ele o caráter de uma ameaça imediatamente global, apesar de sua relativa baixa taxa de mortalidade. [xv]

Em um nível mais profundo, no entanto, o que parece mais fascinante sobre a resposta do Estado chinês é a maneira como ela foi realizada, através da mídia, como uma espécie de ensaio melodramático para a mobilização total da contra-insurgência doméstica. Isso nos dá insights reais sobre a capacidade repressiva do Estado chinês, mas também enfatiza a incapacidade mais profunda desse Estado, revelada por sua necessidade de depender tanto de uma combinação de medidas totais de propaganda implementadas em todas as facetas da mídia e na boa vontade da mobilização de habitantes locais que não teriam nenhuma obrigação material de cumprir. Tanto a propaganda chinesa quanto a ocidental enfatizaram a real capacidade repressiva da quarentena, a primeira narrando-a como um caso de intervenção governamental eficaz em uma emergência e a segunda como mais um caso de superação totalitária por parte do distópico Estado chinês. A verdade não dita, no entanto, é que a própria agressão da repressão significa uma incapacidade mais profunda no Estado chinês, que ainda está em construção.

Isso por si só nos dá uma janela para a natureza do Estado chinês, mostrando como ele está desenvolvendo técnicas novas e inovadoras de controle social e resposta a crises, capazes de serem implantadas mesmo em condições em que as máquinas básicas do Estado são escassas ou inexistentes. Enquanto isso, essas condições oferecem uma imagem ainda mais interessante (embora mais especulativa) de como a classe dominante em um determinado país pode reagir quando uma crise generalizada e uma insurreição ativa causarem avarias semelhantes, mesmo nos Estados mais robustos. O surto viral foi, em todos os aspectos, auxiliado por más conexões entre todos os níveis do governo: repressão dos médicos “denunciantes” por autoridades locais contra os interesses do governo central, mecanismos ineficazes de notificação hospitalar e condições extremamente precárias de prestação de cuidados de saúde básicos são apenas alguns exemplos . Enquanto isso, diferentes governos locais voltaram ao normal em ritmos diferentes, quase completamente fora do controle do Estado central (exceto em Hubei, o epicentro). No momento da escrita, parece quase inteiramente aleatório quais portos estão operacionais e quais localidades reiniciaram a produção. Mas essa quarentena-gambiarra fez com que as redes de logística de cidade para cidade continuassem sendo interrompidas, pois qualquer governo local parece capaz de simplesmente impedir que trens ou caminhões de carga passem por suas fronteiras. E essa incapacidade básica do governo chinês o forçou a lidar com o vírus como se fosse uma insurgência, representando uma guerra civil contra um inimigo invisível.

O mecanismo estatal nacional realmente começou a funcionar em 22 de janeiro, quando as autoridades atualizaram as medidas de resposta a emergências em toda a província de Hubei e disseram ao público que tinham autoridade legal para criar instalações de quarentena, bem como para “coletar” qualquer pessoal, veículos e instalações necessárias para a contenção da doença ou para estabelecer bloqueios e controlar o tráfego (assim, autorizar um fenômeno que sabia-se que ocorreria independentemente). Em outras palavras, a implantação total dos recursos estatais começou na verdade com um apelo a esforços voluntários em nome dos locais. Por um lado, um desastre tão grande sobrecarregaria a capacidade de qualquer estado (ver, por exemplo, a resposta a furacões nos EUA). Mas, por outro lado, isso repete um padrão comum nas leis chinesas, segundo o qual o Estado central, sem estruturas de comando formais e executáveis ​​eficientes que se estendam até o nível local, deve confiar em uma combinação de pedidos amplamente divulgados para que funcionários e cidadãos locais se mobilizem e uma série de punições posteriores aos piores respondedores (enquadradas como repressão à corrupção). A única resposta verdadeiramente eficiente pode ser encontrada em áreas específicas em que o Estado central concentra a maior parte de seu poder e atenção – nesse caso, Hubei geralmente e Wuhan especificamente. Na manhã de 24 de janeiro, a cidade já estava em um bloqueio completo eficaz, sem trens entrando ou saindo, quase um mês após a detecção da nova cepa do coronavírus. As autoridades nacionais de saúde declararam que as autoridades de saúde têm a autorização para examinar e colocar em quarentena qualquer pessoa a seu critério. Além das principais cidades de Hubei, dezenas de outras cidades da China, incluindo Beijing, Guangzhou, Nanjing e Shangai, lançaram bloqueios de severidade variável nos fluxos de pessoas e mercadorias dentro e fora de suas fronteiras.

Em resposta ao chamado de mobilização do Estado central, algumas localidades adotaram suas próprias severas e estranhas iniciativas. A mais assustadora delas pode ser encontrada em quatro cidades da província de Zhejiang, onde trinta milhões de pessoas receberam passaportes locais, permitindo que apenas uma pessoa por família saia de casa a cada dois dias. Cidades como Shenzhen e Chengdu ordenaram que cada bairro fosse trancado e permitiram que quarteirões inteiros de apartamentos ficassem em quarentena por 14 dias se um único caso confirmado do vírus fosse encontrado. Enquanto isso, centenas de pessoas foram detidas ou multadas por “espalhar boatos” sobre a doença, e alguns que fugiram da quarentena foram presos e sentenciados a longos períodos de prisão – e as próprias prisões agora estão passando por um surto grave, devido à incapacidade das autoridades de isolar indivíduos doentes, mesmo em um ambiente literalmente projetado para facilitar o isolamento. Esses tipos de medidas desesperadas e agressivas espelham os casos extremos de contra-insurgência, lembrando mais claramente as ações da ocupação militar-colonial em lugares como a Argélia ou, mais recentemente, a Palestina. Nunca antes eles foram realizados nessa escala, nem em megacidades desse tipo, que abrigam grande parte da população do mundo. A conduta da repressão oferece então um tipo estranho de lição para aqueles que desejam uma revolução global, uma vez que é, essencialmente, um processo de reação a seco levado a cabo pelo Estado.

 

Incapacidade

Essa restrição específica se beneficia de seu caráter aparentemente humanitário, com o estado chinês capaz de mobilizar um número maior de habitantes locais para ajudar no que é, essencialmente, a nobre causa de estrangular a propagação do vírus. Mas, como é de se esperar, essas restrições sempre também saem pela culatra. A contra-insurgência é, afinal, um tipo desesperado de guerra conduzida apenas quando formas mais robustas de conquista, apaziguamento e incorporação econômica se tornam impossíveis. É uma ação cara, ineficiente e de retaguarda, traindo a incapacidade mais profunda de qualquer poder encarregado de implantá-lo – sejam eles interesses coloniais franceses, o declínio do império amerincano ou outros. O resultado da repressão é quase sempre uma segunda insurgência, ensanguentada pelo esmagamento da primeira e ainda mais desesperada. Aqui, a quarentena dificilmente espelhará a realidade da guerra civil e da contra-insurgência. Mas mesmo neste caso, a repressão saiu pela culatra à sua maneira. Com grande parte do esforço do estado focado no controle da informação e na propaganda constante distribuída por todos os aparelhos de mídia possíveis, a agitação se expressou amplamente nas mesmas plataformas.

morte do Dr. Li Wenliang, um dos primeiros denunciantes sobre os perigos do vírus, em 7 de fevereiro, abalou os cidadãos presos em suas casas em todo o país. Li foi um dos oito médicos procurados pela polícia por espalhar “informações falsas” no início de janeiro, antes de contrair o próprio vírus. Sua morte provocou raiva nos internautas e uma declaração de pesar do governo Wuhan. As pessoas estão começando a ver que o estado é formado por funcionários e burocratas desonestos que não têm ideia do que fazer, mas ainda tentam fazer cara de mau. [xvi] Esse fato foi revelado essencialmente quando o prefeito de Wuhan, Zhou Xianwang, foi forçado admitir na televisão estatal que seu governo atrasou a divulgação de informações críticas sobre o vírus após a ocorrência do surto. A própria tensão causada pelo surto, combinada com a tensão induzida pela mobilização total do estado, começou a revelar à população em geral as profundas fissuras que estão por trás do retrato fino que o governo pinta de si. Em outras palavras, condições como essas expuseram as incapacidades fundamentais do estado chinês a um número crescente de pessoas que anteriormente teriam aceitado a propaganda do governo sem questionamentos.

Se procurássemos um único símbolo para expressar o caráter básico da resposta do estado, seria algo como o vídeo acima, filmado por um local em Wuhan e compartilhado com a Internet ocidental via Twitter em Hong Kong. [xvii] Essencialmente, ele mostra um número de pessoas que parecem ser médicos ou socorristas de algum tipo equipados com equipamentos de proteção completa, tirando uma foto com a bandeira chinesa. A pessoa que gravou o vídeo explica que está fora do prédio todos os dias para várias operações fotográficas. O vídeo segue os homens enquanto tiram o equipamento de proteção e ficam conversando e fumando, até usando um dos jalecos para limpar o carro. Antes de partir, um dos homens despeja sem cerimônia o traje de proteção em uma lata de lixo próxima, sem se dar ao trabalho de enfiá-lo no fundo, onde não será visto. Vídeos como este se espalharam rapidamente antes de serem censurados – pequenos rasgos no véu fino do espetáculo sancionado pelo Estado.

Em um nível mais fundamental, a quarentena também começou a mostrar a primeira onda de reverberações econômicas na vida pessoal das pessoas. O lado macroeconômico disso tem sido amplamente divulgado, com uma queda maciça no crescimento chinês arriscando uma nova recessão global, especialmente quando acompanhada de estagnação contínua na Europa e uma queda recente em um dos principais índices de saúde econômica nos EUA, mostrando um declínio repentino na atividade comercial. Em todo o mundo, as empresas chinesas e aquelas fundamentalmente dependentes das redes de produção chinesas estão agora analisando suas cláusulas de “força maior”, que permitem atrasos ou cancelamento das responsabilidades decorrentes de ambas as partes em um contrato comercial quando esse contrato se torna “impossível” de se executar. Embora no momento improvável, a mera perspectiva causou uma cascata de demandas para a produção ser restaurada em todo o país. A atividade econômica, no entanto, apenas reviveu em um padrão de retalhos, com tudo já funcionando sem problemas em algumas áreas e ainda indefinidamente parado em outras. Atualmente, 1º de março se tornou a data provisória em que as autoridades centrais pediram para que todas as áreas fora do epicentro do surto voltassem ao trabalho.

Mas outros efeitos foram menos visíveis, embora sem dúvida muito mais importantes. Muitos trabalhadores migrantes, incluindo aqueles que permaneceram em suas cidades de trabalho no Festival da Primavera ou puderam retornar antes da implementação dos vários bloqueios, agora estão presos em um limbo perigoso. Em Shenzhen, onde a grande maioria da população é de migrantes, os moradores relatam que o número de pessoas sem-teto começou a subir. Mas as novas pessoas que aparecem nas ruas não são sem-teto há muito tempo, ao invés disso, parecem ter sido literalmente despejadas ali sem ter para onde ir – ainda vestindo roupas relativamente bonitas, desconhecendo onde melhor dormir ao ar livre ou onde obter comida. Vários prédios da cidade viram um aumento de pequenos furtos, principalmente de alimentos entregues à porta da casa dos moradores que ficaram em casa durante a quarentena. No geral, os trabalhadores estão perdendo salários à medida que a produção está paralisada. Os melhores cenários durante as paradas de trabalho são as quarentenas de dormitório, como as impostas na fábrica da Foxconn em Shenzhen, onde novos retornados ficam confinados em seus quartos por uma semana ou duas, recebem cerca de um terço de seus salários normais e, em seguida, podem retornar à linha de produção. As empresas com menos capital não têm essa opção, e a tentativa do governo de oferecer novas linhas de crédito barato para empresas menores provavelmente terá pouco efeito no longo prazo. Em alguns casos, parece que o vírus simplesmente acelera tendências pré-existentes de realocação de fábricas, já que empresas como a Foxconn expandem a produção no Vietnã, Índia e México para compensar a desaceleração.

 

A Guerra Surreal

Enquanto isso, a resposta inicial desajeitada ao vírus, a dependência do Estado de medidas particularmente punitivas e repressivas para controlá-lo e a incapacidade do governo central de coordenar efetivamente as localidades para conciliar a produção e a quarentena simultaneamente indicam que uma profunda incapacidade permanece no coração da maquinaria do Estado. Se, como argumenta nosso amigo Lao Xie, a ênfase do governo Xi tem sido a “construção do Estado”, parece que muito trabalho a esse respeito ainda precisa ser feito. Ao mesmo tempo, se a campanha contra o COVID-19 também pode ser lida como um combate contra uma insurgência, é notável que o governo central tenha apenas a capacidade de fornecer uma coordenação eficaz no epicentro de Hubei e que suas respostas em outras províncias – até lugares ricos e bem conceituados como Hangzhou – permanecem descoordenadas e desesperadas. Podemos tomar isso de duas maneiras: primeiro, como uma lição sobre a fraqueza subjacente às arestas duras do poder estatal, e segundo como uma advertência sobre a ameaça que ainda é representada por respostas locais descoordenadas e irracionais quando o mecanismo do Estado central é sobrecarregado.

Essas são lições importantes para uma época em que a destruição causada pela acumulação interminável se estendeu tanto para cima no sistema climático global quanto para baixo nos substratos microbiológicos da vida na Terra. Tais crises só se tornarão mais comuns. Como a crise secular do capitalismo assume um caráter aparentemente não-econômico, novas epidemias, fomes, inundações e outros desastres “naturais” serão usados ​​como justificativa para a extensão do controle estatal, e a resposta a essas crises funcionará cada vez mais como uma oportunidade de exercitar ferramentas novas e não testadas para contra-insurgência. Uma política comunista coerente deve compreender esses dois fatos juntos. No nível teórico, isso significa entender que a crítica ao capitalismo é empobrecida sempre que é separada das ciências exatas. Mas, no nível prático, implica também que o único projeto político possível hoje é aquele capaz de se orientar em um terreno definido por um desastre ecológico e microbiológico generalizado e de operar nesse estado perpétuo de crise e atomização.

Em uma China em quarentena, começamos a vislumbrar tal paisagem, pelo menos em seus contornos: ruas vazias no final do inverno polvilhadas pelo mais fino filme de neve imperturbada, rostos iluminados por celulares espiando pelas janelas, barricadas ocasionais formadas por algumas poucas enfermeiras ou policiais ou voluntários ou simplesmente atores pagos encarregados de levantar bandeiras e dizer para você colocar sua máscara e voltar para casa. O contágio é social. Portanto, não é de surpreender que a única maneira de combatê-lo em um estágio tão tardio seja travar um tipo surreal de guerra contra a própria sociedade. Não se reúnam, não causem caos. Mas o caos também pode aumentar de forma isolada. Como as fornalhas de todas as fundições esfriam para brasas suavemente crepitantes e depois para cinzas frias como a neve, os muitos pequenos desesperos não podem deixar de escapar dessa quarentena para suavemente desabar em um caos maior que pode um dia, como esse contágio social, se provar difícil de conter.

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Notas:

[i] Muito do que explicaremos nesta seção é simplesmente um resumo mais conciso dos argumentos de Wallace, voltados para uma audiência mais geral e sem a necessidade de “debater” com outros biólogos através da exposição de uma argumentação rigorosa e extensa pesquisa. Para aqueles que contestariam as evidências básicas, nos referimos ao trabalho de Wallace e seus compatriotas.

[ii] Robert G Wallace, Big Farms Make Big Flu: Dispatches on Infectious Disease, Agribusiness, and the Nature of Science, Monthly Review Press, 2016. p.52

[iii] Ibid, p.56

[iv] Ibid, pp. 56-57

[v] Ibid, p.57

[vi] Isso não quer dizer que as comparações dos EUA com a China hoje também não sejam informativas. Como os EUA possuem seu próprio setor agroindustrial, eles próprios contribuem enormemente para a produção de novos vírus perigosos, sem mencionar infecções bacterianas resistentes a antibióticos.

[vii] Ver: Brundage JF, Shanks GD, “What really happened during the 1918 influenza pandemic? The importance of bacterial secondary infections”. The Journal of Infectious Diseases. Volume 196, Number 11, December 2007. pp. 1717–1718, 1718–1719; e: Morens DM, Fauci AS, “The 1918 influenza pandemic: Insights for the 21st century”. The Journal of Infectious Diseases. Volume 195, Number 7, April 2007. pp 1018–1028

[viii] Ver “Picking Quarrels” na segunda edição do nosso períodico: http://chuangcn.org/journal/two/picking-quarrels/

[ix] A seu modo, esses dois caminhos da produção pandêmica espelham o que Marx chama de subsunção “real” e “formal” na esfera da produção propriamente dita. Na subsunção real, o próprio processo real de produção é modificado através da introdução de novas tecnologias capazes de intensificar o ritmo e a magnitude da produção – semelhante à maneira como o ambiente industrial mudou as condições básicas da evolução viral, de modo que novas mutações são produzidas a um ritmo amis intenso e com maior virilidade. Na subsunção formal, que precede a subsunção real, essas novas tecnologias ainda não foram implementadas. Em vez disso, as formas de produção anteriormente existentes são simplesmente reunidas em novos locais que têm alguma interface com o mercado global, como no caso de trabalhadores manuais sendo colocados em uma oficina que vende seu produto com lucro – e isso é semelhante à maneira pela qual os vírus produzidos em ambientes “naturais” são trazidos da população selvagem e introduzidos nas populações domésticas pelo mercado global.

[x] É um equívoco equiparar esses ecossistemas com um estado “pré-humano”. A China é um exemplo perfeito, pois muitas de suas paisagens naturais aparentemente “primitivas” foram, de fato, o produto de períodos muito mais antigos de expansão humana, que exterminaram espécies que antes eram comuns no continente asiático, como os elefantes.

[xi] Tecnicamente, este é um termo genérico para cinco vírus distintos, o mais mortal dos quais é chamado de vírus Ebola, anteriormente vírus do Zaire.

[xii] Para o caso da África Ocidental, especificamente, cver: RG Wallace, R Kock, L Bergmann, M Gilbert, L Hogerwerf, C Pittiglio, Mattioli R and R Wallace, “Did Neoliberalizing West African Forests PRoduce a New Niche for Ebola,” International Journal of Health Services, Volume 46, Number 1, 2016; E para uma visão mais ampla da conexão entre as condições econômicas e o Ebola, como tal, ver: Robert G Wallace and Rodrick Wallace (Eds), Neoliberal Ebola: Modelling Disease Emergence from Finance to Forest and Farm, Springer, 2016; E para a afirmação mais direta do caso, ainda que menos acadêmica, veja o artigo de Wallace, link acima: “Neoliberal Ebola: the Agroeconomic Origins of the Ebola Outbreak,” Counterpunch, 29 July 2015. https://www.counterpunch.org/2015/07/29/neoliberal-ebola-the-agroeconomic-origins-of-the-ebola-outbreak/

[xiii] Ver Megan Ybarra, Green Wars: Conservation and Decolonization in the Maya Forest, University of California Press, 2017.

[xiv] Certamente é incorreto sugerir que toda a caça furtiva é realizada pela população rural pobre local, ou que todas as forças de guarda florestal nas florestas nacionais de diferentes países operam da mesma maneira que os antigos paramilitares anticomunistas, mas os confrontos mais violentos e os todos os casos mais agressivos de militarização das florestas parecem seguir essencialmente esse padrão. Para uma ampla visão geral do fenômeno, consulte a edição especial de 2016 da Geoforum (69) dedicada ao tópico. O prefácio pode ser encontrado aqui: Alice B. Kelly e Megan Ybarra, “Introdução à questão temática: ‘Segurança verde em áreas protegidas’”, Geoforum, Volume 69, 2016. pp.171-175. http://gawsmith.ucdavis.edu/uploads/2/0/1/6/20161677/kelly_ybarra_2016_green_security_and_pas.pdf

[xv] De longe a mais baixa de todas as doenças mencionadas aqui, seu alto número de mortes tem sido o resultado de sua rápida disseminação para um grande número de hospedeiros humanos, resultando em um número elevado de mortes absolutas, apesar de ter uma taxa de mortalidade muito baixa.

[xvi] Em uma entrevista em podcast, Au Loong Yu, citando amigos no continente, diz que o governo de Wuhan está efetivamente paralisado pela epidemia. Au sugere que a crise não está apenas destruindo o tecido da sociedade, mas também a máquina burocrática do PCCh, que só se intensificará à medida que o vírus se espalhar e se tornar uma crise intensificada para outros governos locais em todo o país. A entrevista é de Daniel Denvir, do The Dig, publicado em 7 de fevereiro: https://www.thedigradio.com/podcast/hong-kong-with-au-loong-yu/

[xvii] O vídeo em si é real, mas vale a pena notar que Hong Kong tem sido um foco especial de atitudes racistas e teorias de conspiração direcionadas aos habitantes do continente e ao PCCh, muito do que é compartilhado nas mídias sociais por Hong Kong sobre o vírus deve ser cuidadosamente verificado.

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