Chile, quarenta anos do golpe militar

Raul Estrada

Há quarenta anos, em 11 de setembro de 1973, Santiago do Chile sofreu um violento bombardeio aéreo. Suas Forças Armadas, com os voos rasantes de seus Hawker Hunter, despejaram centenas de bombas sobre o Palácio de La Moneda, até a constatação da morte do presidente Allende. Era o desfecho trágico de uma fase da luta de classes no Chile, com o massacre e assassinato de milhares de trabalhadores chilenos e seus aliados. Mas significava também a vitória das classes dominantes chilenas, representadas em armas por uma das ditaduras mais sanguinárias do continente.

É importante frisar que apesar do bombardeio e do caráter militar do desfecho, a derrota no Chile foi, em sua essência, política. Não estão em discussão a coragem e a dignidade de Allende e de milhares de homens e mulheres que perderam a própria vida durante o golpe, ou imediatamente depois, como assinalou Leblon1. No entanto há de se reconhecer que Pinochet provou, de forma sangrenta, que a democracia representativa e o Estado burguês não comportam as esperanças de uma transição pacífica para o socialismo, como acreditava a Unidade Popular (UP), liderada pelo PS e pelo PC chileno.

Em 1971, pouco tempo depois da posse de Allende, Raul Villa2 já apontava a clara contradição de um governo dos trabalhadores que defendia a construção das bases para o socialismo respeitando as regras parlamentares e a estrutura de um Estado burguês. A rigor tratava-se de um governo sustentado pelas organizações políticas e sindicais da classe operária chilena, um proletariado com tradições de luta, certamente o mais avançado do continente em experiência política, depois do cubano.  E esse é o ponto desconcertante, como assinalou Villa2, um proletariado com consciência de que lutava pelo socialismo, mas que respeitava o marco da legalidade burguesa.

A originalidade da rica experiência chilena em parte foi silenciada com a derrota. Uma história que ainda hiberna em um de seus aspectos políticos mais significativos. Trata-se do principal marco do governo da UP, um Governo de Transição, de acordo com a rica tradição marxista, desde a época de Marx. Na época da posse de Allende, o governo se apoiava de fato na classe operária, nos trabalhadores rurais e em camadas da pequena burguesia urbana. Isto é, um governo que lutava pelo socialismo, sustentado pela classe operária que, todavia, ainda não tinha conquistado as condições concretas para a conquista do poder. Em que pese tratar-se de um governo de transição para o socialismo, sua estratégia de respeito à legalidade burguesa o deixou a meio do caminho.

O fato é que Allende e a UP além de pregar a qualquer custo o respeito ao Estado burguês, endossavam politicamente dois mitos insustentáveis. O primeiro era a crença desmedida na solidez da democracia congressual chilena e o segundo, na postura profissional do exército do país. Foram ilusões deste tipo que fizeram com que proibissem a organização de milícias operárias.

Esse fato tornou-se evidente durante a greve patronal. Iniciada pelos caminhoneiros, imediatamente depois recebeu a adesão da Sociedade Nacional da Agricultura e por fim da Sociedade de Fomento Fabril, entidades que praticamente dominavam a economia chilena, a partir da indústria e da agricultura. Com o apoio aberto do imperialismo as classes dominantes tentavam sufocar a economia chilena e retirar Allende do governo.

Foi a ação decisiva e praticamente espontânea dos trabalhadores que conseguiu manter a economia em funcionamento. Inicialmente comparecendo ao trabalho sem os meios de transporte formais, posteriormente ocupando as fábricas durante o lockout patronal. É nesse processo que são criadas as coordenações de fábricas e posteriormente os cordões industriais. Organismos autônomos e independes do Estado que não poderiam ser enquadrados na estratégia e na concepção de Estado propostos pelo governo da UP, como citado por Villa3:

“É graças a um processo de democratização em todos os níveis e a uma mobilização organizada das massas que se construirá, a partir das bases, a nova estrutura de poder. Uma nova constituição institucionalizará a incorporação massiva do povo ao poder do Estado.”

O fato é que esse Estado idealizado pela UP foi construído sistematicamente, em todos os detalhes, para proteger a propriedade privada e manter a reprodução do capital. Então na época de crescimento dos movimentos massivos e autônomos dos trabalhadores, em particular, na época da criação dos cordões industriais, vem a tona o choque com o aparato jurídico do estado burguês: os camponeses ocuparam terras em que não foi possível sua expropriação, da mesma forma que inúmeras fábricas ocupadas pela classe operária foram devolvidas ao capital.

É muito importante constatar, de um ponto de vista histórico, que a mobilização dos trabalhadores, mesmo no âmbito da Unidade Popular, consegue gerar seus próprios organismos de luta, independentes e fora dos mecanismos previstos pela estratégia original do governo. Os Cordões Industriais, os Comitês Coordenadores de Lutas e os Comandos Comunais, surgiram fora da institucionalidade em vigor e demonstravam ao mesmo tempo, uma firme vontade de sua transformção3.

Com os seus primeiros passos no sentido da democracia direta, os cordões industriais iniciaram o exercício do controle operário da produção, da organização proletária da distribuição, da formação de uma aliança entre as classes exploradas sob a liderança natural da classe operária. Foram esses organismos que despertaram as mais profundas energias revolucionárias do proletariado e abriram uma perspectiva real para a luta pelo poder no Chile. No entanto, não foram estimulados pelo PS nem pelo PC.

Repetindo Villa2, o período do governo da UP criou situações desconcertantes. Um governo de transição para o socialismo, com o apoio explícito dos trabalhadores da cidade e do campo, manteve até o final uma concepção de respeito estrito ao jogo parlamentar, ao Estado burguês e todo seu aparato jurídico. Mas esse período de luta de classes no Chile é uma fonte inesgotável de ensinamentos para o futuro das lutas dos trabalhadores do continente.

  1. Saul Leblon, A Transição Interditada, Carta Maior em 11/03/2013.
  2. Raul Villa (1971) O Chile Entre a Legalidade Burguesa e a Revolução, Les Temps Modernes, n0 310, maio de 1972. (Raul Villa era o pseudônimo adotado por Eder Sader em seus escritos na década de 60 e 70)
  3. Eder Sader (1973) Cordón Cerrillos e Poder Proletário no Chile em 1972, Marxisme e Revolution.

Leia e divulgue o texto na íntegra em pdf:

Chile quarenta anos do golpe militar Raul Estrada

Faça seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *