50 anos do golpe militar: desafios do passado e do presente
por Coletivo CVM
No dia 1º de abril de 2014 completar-se-ão 50 anos decorridos do golpe militar que depôs o presidente João Goulart e instituiu a mais longa ditadura aberta de classe da história republicana do Brasil. A burguesia abriu mão de sua dominação direta pelo temor da radicalização das classes trabalhadoras numa situação de crise econômica, a primeira crise cíclica do capitalismo em nosso país. A burguesia abriu mão de sua dominação direta pelo temor da radicalização das classes trabalhadoras numa situação de crise econômica, a primeira crise cíclica do capitalismo em nosso país – a primeira crise gerada internamente.
A rememoração coletiva dos fatos, processos e consequências do golpe e da ditadura militar, embora propiciada pela criação, em 2012, da Comissão Nacional da Verdade, praticamente tomou impulso na segunda quinzena de março.
A CNV assumiu apenas a tarefa de identificar presos torturados, desaparecidos e mortos por seus algozes, sem levantar as razões desse processo extremamente violento que abalou a sociedade brasileira e cujas consequências ainda se fazem sentir hoje. Os próprios resultados das investigações limitam-se a confirmar as informações e reforçar suspeitas, sem que as instituições repressivas e seus altos mandatários tenham sido apontados publicamente mediante exigência de seu julgamento, como aconteceu na Argentina.
Por outro lado, o debate sobre os 50 anos tem sido incipiente e restrita à imprensa burguesa; seus desdobramentos nas redes sociais da internet foram provocadas em boa medida pelas revisões que ex-militantes da esquerda fizeram sobre o passado e sua própria atuação e agora voltaram a afirmar. O centro da polêmica está na defesa da democracia representativa, ou seja, da democracia burguesa, como se não tivesse ocorrido luta de classes e, nesse processo, as esquerdas não tivessem assumido posições revolucionárias ou mesmo reformistas radicais para o contexto de 1964.
As limitações ideológicas apontadas tem motivação política. Os sucessivos governos de coalizão entre o PT e o PMDB expressaram uma política de colaboração de classes entre trabalho e capital que implicou, dentre outros aspectos e no que diz respeito especificamente às instituições do Estado burguês, no reconhecimento da Lei da Anistia imposta pelos militares em 1979, ratificada pelo Supremo Tribunal Federal por 7 votos a 2, em 28 de outubro de 2010, que bloqueou uma ampla, profunda e radical avaliação histórica do papel das Forças Armadas. Mais ainda, diante da retomada das lutas sociais neste ano de 2014, marcado pelo mega-evento da Copa do Mundo em julho e, principalmente, pelas suas repercussões nas eleições praticamente gerais de outubro, o governo capitulou às pressões para conferir poder de polícia as Forças Armadas por meio da Garantia da Lei e da Ordem, em nome do suposto combate ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro.
Entendemos, portanto, que o desafio do passado permanece. Não somente porque as bases sociais da ditadura militar se mantiveram, mas também devido à continuidade do papel tutelar que as Forças Armadas desempenham na sociedade brasileira. Sabemos que apenas uma nova fase histórica de luta de classes poderá colocar em questão essa tutela. Mas tal perspectiva é igualmente parte do futuro projetado a partir dos desafios do presente.
Uma contribuição para o exame desses desafios, com os olhos voltados para o passado, encontra-se no texto “Formação e natureza da ditadura militar: subsídio para análise das perspectivas das lutas de classe no país”, um texto de marxismo militante escrito quando a ditadura se consolidava como forma aberta e indireta de dominação burguesa. Destacamos os seguintes aspectos do documento, apesar de seu caráter inconcluso, pela sua atualidade, contra as visões esquemáticas e empobrecedoras de golpe civil-militar e de ditadura empresarial-militar das interpretações vigentes sobre esta época: o golpe militar como resultado do agravamento da luta de classes, conduzindo a uma polarização de classes na sociedade brasileira; a iniciativa do golpe nas mãos do Alto Comando das Forças Armadas; a imposição da ditadura militar à própria oposição burguesa, num processo contraditório, de avanços e recuos, expressivo do novo curso da luta de classes após o golpe; a compreensão da ditadura militar como uma forma de ditadura aberta e indireta da burguesia, na qual a hegemonia é exercida pela fração do capital financeiro, num processo resultante da luta de classes e do desenvolvimento capitalista no período.
Uma contribuição para o exame desses desafios, com os olhos voltados para o passado, encontra-se postada a seguir para nossos leitores em Formação e natureza da ditadura militar – Informe Nacional n° 13 POC Julho 1969, um texto de marxismo militante escrito quando a ditadura se consolidava como forma aberta e indireta de dominação burguesa.
Nota: O Partido Operário Comunista (POC) foi constituído pela fusão da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária e da Dissidência Leninista do Partido Comunista da seção do Rio Grande do Sul ocorrida em abril de 1968. O congresso de unificação, considerado o V Congresso do POC, deliberou a criação de uma organização com este nome por considerar-se o núcleo do partido revolucionário da classe operária, ou seja, com o objetivo de se transformar na vanguarda operária na medida em que sua linha política fosse capaz de dirigir as lutas operárias diárias com um sentido revolucionário. A oposição revolucionária à ditadura burguesa-latifundiária (organizada como ditadura militar) teria de ser o resultado das lutas travadas pela classe operária. Em maio de 1968, a direção do POC admitia que a derrubada da ditadura implicaria na necessidade da criação de um foco guerrilheiro, mas este deveria respaldar a insurreição operária nas cidades. Esta defesa de um caminho revolucionário em que a luta armada surgia como desdobramento da luta de classes foi considerada limitada pela maioria dos militantes do POC.
A luta interna em 1969 entre a posição dos que defendiam o enraizamento no movimento operário a partir das lutas de massa e aqueles defensores da prioridade da organização da luta armada conduziu à cisão no partido. A minoria tomou a decisão de criar, em abril de 1970, a Organização de Combate Marxista-Leninista — Política Operária. O POC desapareceu após a onda repressiva que praticamente a desmantelou em meados de 1971.
INFORME NACIONAL Nº 13 – JULHO DE 1969
PARTIDO OPERÁRIO COMUNISTA
Formação e natureza da ditadura militar – Subsídio para análise das perspectivas das lutas de classe no país
A trajetória política da ditadura militar
1964 marca a falência do populismo e da democracia representada como forma de dominação política da burguesia. De lá para cá assistimos a constituição de novas bases do poder burguês e dos conflitos que ela engendra. A luta revolucionária para a derrubada desse poder exige o conhecimento daquilo que ele representa, sua força e sua fraqueza, sem o que o formidável alento das classes se dispersará sem êxito. Para sabermos como conduzir a luta política do proletariado brasileiro é que precisamos, a cada mudança da situação, responder a essas questões: em que bases se sustenta a ditadura de classe? Através de que meios ela se exerce? Que contradições ela engendra ou aguça? Que perspectivas ela abre para as lutas sociais? Quais são os seus pontos fortes e fracos? Por onde devemos atacar? A análise da constituição da ditadura militar é por isso indispensável para a condução da luta política.
a) A Renovação da Liderança
Não houve uma alteração das classes no poder em abril de 1964. O Estado era e permaneceu uma ditadura burguesa e latifundiária, subordinada ao imperialismo e sob a hegemonia do setor industrial. Mas toda a dominação de classe se faz através de determinadas instituições que se constituem nas bases mais diretas do poder. Foram essas instituições que sofreram alterações em 1964.
Até então as classes dominantes exerciam sua ditadura através do sistema da “democracia representativa”, no qual os setores que prevaleciam sobre o eleitorado (através do populismo nas cidades e do coronelismo no campo) ganhavam o acesso à máquina política. A combinação de um executivo mais dependente das práticas populistas e de um legislativo que através da política de clientela eleitoral (as trocas de favores e benefícios por votos) expressava mais as várias facções das classes dominantes (além de uma minoria reformista pequeno-burguesa e mesmo operária), produzia um poder político de aliança dos vários setores das classes exploradoras sob a hegemonia do setor industrial.
Esse sistema mostrou seus limites quando o movimento de massa ameaçou escapar do controle das lideranças populistas. A partir da renúncia de Jânio, as bancadas rurais já passaram a chamar os industriais para um bloco anticomunista reacionário de que o IBAD foi um exemplo. E os próprios industriais, através de organismos como o IPES, tomaram suas próprias iniciativas. A incapacidade de Jango de satisfazer e conter o movimento operário e de massas em geral foi prova final da falência do velho sistema num momento em que a crise cíclica do sistema exigia uma política dura sobre os salários.
Manifestação pelas Reformas de Base – comício da Central do Brasil,
13 de março de 1964, RJ
O golpe de abril não mudou as classes no poder, mas alterou a forma do seu poder e o peso específico de cada um dos setores dominantes. A substituição da “democracia representativa” (que é na verdade uma ditadura velada e direta das classes dominantes) pela ditadura militar (que é uma ditadura aberta e indireta) traz consequências para o desenvolvimento da luta de classes: a) as várias facções não têm mais um acesso direto ao poder, não podem mais fazer valer seus interesses através de um lugar no Legislativo ou na dependência do Executivo de suas bases eleitorais; apenas algumas facções mais poderosas tem acesso direto ao poder e as demais se beneficiam ou não das medidas gerais em favor da conservação do regime; b) o distanciamento entre o poder político e suas bases dá aos governantes maior liberdade de ação, pois não precisam prestar contas de cada ato para seus sustentáculos sociais; c) eliminadas as possibilidades efetivas de uma oposição burguesa legal esta passa para o campo das conspirações militares; d) o afastamento das massas da vida política legal estimula suas organizações ilegais.
Roberto Marinho e Costa e Silva: afinidades
A mudança na forma do poder tinha que se dar através da contínua e conflituosa depuração de velhas lideranças, da destruição do poder dos velhos representantes da dominação de classe, da organização de novas instituições e novas lideranças. As lutas política no seio das classes dominantes de lá para cá promoveram essa substituição de lideranças e com isso alteraram a própria correlação de forças na composição das classes dominantes, com a hegemonia mais nítida dos grupos monopolistas e financeiros.
b) O Processo de Formação da Ditadura Militar
Foi bastante ampla a aliança política que derrubou Jango em abril de 1964: a oficialidade militar “nacionalista” e a “entreguista”, PSD, UDN, PSP, etc., as associações de classe dos industriais, fazendeiros, banqueiros, comerciantes, o clero reacionário, os bandos de lumpens anticomunistas, etc. Mas desde os primeiros dias ficou patente que eram os militares que tinham a iniciativa e que estavam capacitados para a missão: não tinham os compromissos que os representantes civis tinham com o populismo passado e, pela própria função, estavam mais adaptados para a política repressiva necessária às classes dominantes naquele momento.
Isso não quer dizer que o sistema militar tenha se edificado tranquilamente. Pelo contrário, são tantas as contradições que ele engendra dentro de uma complexa sociedade industrial capitalista, que seus mentores foram obrigados a contínuos vai-e-vem, a recusa, a concessões e contornos. Por isso, a história da ditadura militar nesses 5 anos é a história não só de sua luta contra o movimento de massas como ainda de suas manobras para tentar impor-se definitivamente à classe dominante.
De abril de 64 a novembro de 65 ela procurou desmantelar as organizações de massa (sindicatos operários, ligas camponesas, associações de marinheiros, grêmios estudantis), a esquerda e as lideranças ligadas ao governo deposto, ao mesmo tempo em que procurava apenas conter os setores civis ávidos de recuperarem as rédeas do poder. A ditadura ainda jogava com os partidos existentes e com a velha constituição apenas emendada com o Ato 1 (que tinha um prazo de vigência fixado) e haviam até articulações para eleições presidenciais.
Foi após a vitória eleitoral de representantes da pretensa oposição liberal (Negrão de Lima na Guanabara, Israel em Minas) que as bases militares pressionaram o governo através de seu ministro da Guerra (Costa e Silva que então se tornou fiador de suas pretensões), levando a uma nova investida contra a representação civil. O Ato 2 em novembro e o 3 em fevereiro de 66 adiaram as eleições presidenciais, tornaram-nas indiretas, retomaram as cassações e acabaram com os velhos partidos. Os militares investiram sobre as instituições mesmas da antiga dominação burguesa para apresentar-se à burguesia como seus legítimos representantes. Isso não podia deixar de abrir a luta dentro da burguesia. E não se tratava mais simplesmente de golpear um Mauro Borges ou um Juscelino que mantinham compromissos com o sistema janguista. Agora Lacerda, Adhemar, os Mesquitas, Moreira Salles, passavam a constituir-se em oposição ao governo.
O ano de 66 acelerou com isso o isolamento social da ditadura militar. De um lado a oposição latente das massas exploradas golpeadas em suas organizações e em suas rendas com a super-exploração do arrocho; e se a classe operária ainda não tivera condições de sair abertamente à luta, o movimento estudantil saiu às ruas exprimindo a profunda oposição ao regime. De outro lado, havia a própria burguesia descontente com o isolamento de sua ditadura, a incapacidade do sistema militar em auscultar as várias facções da classe e controlar os movimentos de massa; a crise econômica e o aceleramento forçado da monopolização capitalista aumentavam as áreas de oposição burguesa. A oposição burguesa a Castelo buscou uma alternativa mais “nacionalista” (oposição à interdependência política de Golbery e econômica de Roberto Campos) e “democrática” (a tentativa de diálogo de Passarinho).
A partir da direita, os Generais Castelo Branco, Geisel e Costa e Silva.
O governo de Costa e Silva no período de março de 67 a dezembro de 68 assume a aparência por isso de um recuo nas linhas gerais caracterizadas no governo de Castelo. A abertura política de Costa e Silva e uma política econômica menos ortodoxa quanto ao arrocho salarial e à associação imperialista objetivavam obter, para a burguesia, uma ditadura de bases de apoio mais amplas. Mas é preciso ver, atrás das drásticas alterações na aparência, a profunda continuidade na essência do sistema: a) Costa e Silva toma posse com novas normas institucionais que concentravam nas mãos de seu governo os mais plenos poderes; b) a integração imperialista prosseguia ainda que em termos menos imediatistas e também o arrocho salarial, a despeito da relativa recuperação econômica, já mais acentuada em 1968.
A ditadura militar não pode ampliar as bases da participação sem por em risco sua própria sustentação. A abertura de 67-68 facilitou o processo de reativação das massas trabalhadoras. O movimento estudantil retomou ativamente a luta, desmoralizou o regime e levou a agitação política a setores mais amplos. Toda oposição burguesa reaglutinou-se, especulou com o esvaziamento social do regime pata opor suas alternativas, usou as possibilidades legais ampliadas para preparar (ainda que com todo cuidado e covardia características de toda oposição burguesa) uma alteração dentro do poder político. Na Igreja, nas Universidades e até nas Forças Armadas, penetrava a oposição pela estreiteza da ditadura militar.
Movimento estudantil: passeata dos cem mil em 26 de junho de 1968
Mas a própria burguesia receia que a queda de sua ditadura militar abale os próprios fundamentos de sua dominação de classe. O fantasma da revolução social é a principal arma que manipula a ditadura militar para afastar a burguesia de seus sonhos de volta à democracia burguesa. Foi brandindo essa ameaça que os gorilas desfecharam o novo golpe do Ato 5, fechando o período de abertura política e reforçando novamente a ditadura militar.
A nova abertura politica, com a reabertura do Congresso e dos partidos políticos não pode, portanto, ser vista como volta às condições de 68. A investida repressiva que se seguiu ao 5º Ato desmantelou o que restava da vida política legal nos meios civis.
c) Características da Ditadura Militar
Os ziguezagues da política da ditadura são produtos dos obstáculos que ela encontra e das suas tentativas de vencê-las ou contorná-las. Ela mudou várias vezes de diretrizes. Mas podemos ver quais [as suas] suas tendências básicas.
Em primeiro lugar vemos que o ato 5 deu o golpe de misericórdia nas velhas lideranças civis e no que restava da fachada representativa burguesa. Hoje [o que] restam de partidos e legislativos não são mais que trapos gastos. Os “representantes civis” sabem que a fonte de seus mandatos está nos quartéis e não em nenhum corpo eleitoral. Por isso agora a verdadeira vida política da burguesia se decide nos quartéis, as facções burguesas se fazem representar por generais e a força de cada facção se mede pelo peso de cada regimento.
Sarney em reunião com o ditador Costa e Silva em 1969 – imagem do Arquivo Nacional
Isso não quer dizer que a burguesia não aspire um governo civil. O governo militar se choca a cada momento com a complexa rede de necessidades de uma sociedade industrial: de um lado os capitalistas não sentem a necessária liberdade de ação para seus negócios. De outro, a impossibilidade de uma oposição legal cria uma constante insegurança política que se reflete também nos negócios.
Mas justamente a falência das representações civis exige que toda tentativa de alteração do governo no sistema atual tem que passar pelas conspirações militares.
Em segundo lugar, esse distanciamento entre o poder político e as bases sociais permitiu à ditadura militar fazer a politica de um setor mais dinâmico do sistema, exatamente aquele setor que está também mais destacado de qualquer atividade em particular e que representa o capital em sua forma mais pura: o setor financeiro. É essa camada da classe dominante que detém hoje a hegemonia do regime e são suas necessidades que explicam os movimentos principais do governo.
Os fundamentos sociais da Ditadura Militar
As bases sociais do Estado brasileiro permaneceram essencialmente as mesmas após a abrilada de 64, mas as transformações que vinham se operando na economia brasileira explicam muito as alterações na correlação de forças dentro das classes dominantes. Se quiséssemos simplificar, diríamos que foi o processo de integração imperialista que preparou a mudança política de 64 e que foi, por sua vez, acelerado com a nova liderança burguesa.
A raiz do processo está no desenvolvimento capitalista da década passada. A montagem de um grande parque industrial implicou num enorme processo de centralização e concentração do Capital. Tal processo de centralização e concentração do capital teria que levar a uma monopolização acelerada da economia, onde as empresas mais fracas quebram ou associam-se aos capitais imperialistas. É esse fenômeno geral do desenvolvimento capitalista que acarretou dois outros processos básicos: a crise da agricultura arcaica com a urgência da passagem a uma agricultura adaptada às necessidades do mercado interno; a intervenção crescente do estado para auxiliar o processo de acumulação de capitais. Além disso, o que é fundamental, o Brasil entra na fase da integração imperialista na qualidade de uma economia dependente. Essas são características básicas para compreendermos as contradições que movem a sociedade brasileira e que explicam a configuração particular assumida pelo Estado brasileiro.
Médici homenageado pelos governadores nomeados pela ditadura. Novembro de 1970
É generalizado na esquerda o uso de ideias sobre o latifúndio, a burguesia nacional e o imperialismo sem levar em conta as transformações operadas nos últimos anos, o que leva a evidentes desvios. Porque o desenvolvimento capitalista recente alterou radicalmente o quadro das classes dominantes. De um lado, o velho latifúndio perdeu muito seu peso e tem um lugar decididamente inexpressivo na aliança dominante. De outro, os setores dominantes da burguesia brasileira estão associados ao complexo imperialista mas isto não quer dizer que não mantenham contradições secundárias com os centros imperialistas. Os principais conflitos com os norte-americanos não podem mais ser vistos como choques entre uma “burguesia nacional não integrada” e a burguesia imperialista. A burguesia não integrada, não monopolista, já é um setor bem fraco, que não possui autonomia de movimento e que não tem poder político de decisão sobre o Estado brasileiro. Sua dependência em relação ao Estado e aos grandes monopólios, além disso, determinam um comportamento politicamente submisso desse setor. Já as manifestações – ainda que fracas – de relativa autonomia como são expressas, por exemplo, pelo atual ministro do exterior (que é significativamente um dos grandes banqueiros do país) se originam do comportamento da grande burguesia brasileira, que é, no essencial, integrada ao imperialismo. São choques entre um setor da burguesia integrada ao imperialismo que está estabelecida no país e que por isso pretende defender seu mercado e os centros imperialistas que necessariamente ameaçam esse mercado de tempos em tempos. Isso quer dizer que: a) está barrado o caminho para qualquer desenvolvimento capitalista autônomo; b) mas nem por isso deixam de existir contradições secundárias, não antagônicas, entre a burguesia brasileira (ou melhor, instalada no Brasil) e os centros imperialistas estrangeiros. Só assim se pode entender corretamente o comportamento da ditadura militar brasileira, ao mesmo tempo firmemente associada ao [capital] imperialista, mas nem por isso deixando de defender interesses dos capitais aqui investidos.
Médici e Nixon: cooperação na política, na economia e na repressão.
Dezembro 1971
a) Domínio do Capital Financeiro
Foi o grande salto desenvolvimentista da década de 60 que preparou o reinado do capital financeiro no Brasil. Porque os grandes investimentos exigidos para a montagem das indústrias de base ou de bens de consumo duráveis (automóveis, por exemplo) não permitiam à burguesia industrial brasileira movimentar-se com seus fundos próprios. Uma das soluções foi o apelo aos monopólios estrangeiros, que já são a expressão do capital financeiro (ou seja, grandes corporações que fundem o capital bancário ao industrial, que possuem por isso seus próprios fundos de investimento).
Mas foi a crise cíclica de 63-65 que consolidou tal reinado. Quando o mercado se retraiu as indústrias só podiam sobreviver se obtivessem financiamento para suas empresas independentemente das possibilidades de realização imediata [de seus lucros] no mercado. Daí a intensificação da participação estatal, do domínio acelerado do capital estrangeiro (financeiro).
A grande procura de dinheiro levou também a uma centralização e concentração no sistema bancário. Concentração: aumento de capital interno em cada unidade; o sistema bancário e financeiro aproveitou-se da grande procura de dinheiro para beneficiar-se de altas taxas de juros. Ver tabela abaixo:
(Relação anual do Banco Central para 1968)
Enquanto a inflação caía o custo médio do dinheiro continuou em ascensão, o que representa um grande aumento nos juros reais, onde se vê que o capital e as sociedades de financiamento foram os grandes beneficiados da política anti-inflacionária.
Centralização: reunião de capitais de várias empresas em unidades maiores: o reforço do capital bancário se fez a par da diminuição constante do número de bancos. Ver tabela abaixo:
(Atualidade Est. Do Brasil – 1968 – IBGE. Dados de 1968)
O fortalecimento do sistema bancário foi uma das condições para o surgimento do capital financeiro. O outro foi a sua fusão com o capital industrial. A partir de 65 o governo estimulou a constituição de bancos de investimento, pressionando para uma rápida centralização de capitais. As pesadas exigências financeiras reduzem os bancos de investimento ao número de 21, boa parte dos quais totalmente estrangeiros.
A monopolização da economia e o domínio do capital financeiro reduzem as pequenas e médias empresas que pouco mais são dos que complementos das grandes. Um exemplo é o da indústria de autopeças que se firmou à sombra da indústria automobilística. Com a consolidação desta as empresas de autopeças receiam que agora sejam englobadas ou marginalizadas.
Outra consequência da centralização de capitais é o agravamento das desigualdades regionais. No processo de monopolização foram as empresas das áreas mais atrasadas do país que principalmente foram absorvidas pelos grandes complexos econômicos centrados no centro-sul. E é significativo que o Nordeste passou por um pequeno surto de desenvolvimento justamente na fase em que a economia passava globalmente por uma crise: é quando se retrai o desenvolvimento nas áreas centrais que as áreas mais atrasadas do desenvolvimento capitalista tem possibilidade de expansão. A retomada econômica vai encontrar o Nordeste sob uma dependência mais estreita dos capitais do sul.
a) A Intensificação do Capitalismo de Estado
O surgimento do capital financeiro no Brasil está intimamente ligado à intervenção econômica do Estado. A fraqueza econômica da burguesia e o interesse dos capitais externos para as áreas mais lucrativas exigiram desde cedo do Estado uma complementação para cobrir os setores em que a iniciativa privada não convinha entrar. Centralizando em seus cofres as poupanças de milhares de atividades, o Estado brasileiro não é só o principal financiador do país como ainda é importante investidor direto.
Costa e Silva e seu escudeiro Delfim Netto.
O peso maior do Estado pode ser visto no quadro abaixo sobre a porcentagem da formação bruta de capital fixo sobre o total da procura de bens e serviços:
Enquanto o estado resistiu à depressão econômica, mantendo constante sua taxa de investimento, o setor privado se retraiu, garantindo uma proporção maior para os investimentos estatais. Isso se dá porque o Estado não se guia pela possibilidade mais imediata de lucro. Ao invés disso, o papel econômico que lhe é atribuído é justamente criar as condições para a realização do lucro pelo setor privado. É isso o que explica os orçamentos deficitários das empresas estatais – siderúrgicas, fábricas de motores, petróleo, ferrovias. O Estado não é, assim, nem concorrente dos capitalistas e nem um setor independente que se guia por outros critérios que não o lucro como querem fazer crer os reformistas. O Estado tem como critério de sua eficiência econômica as condições que ele cria para a realização do lucro privado.
A enorme intervenção do estatal na economia brasileira atesta a incapacidade do capitalismo brasileiro de abranger largas áreas de investimento, revela ao mesmo tempo as lacunas que não podem mais ser preenchidas pelas simples leis do mercado capitalista. Mas ao mesmo tempo é uma ilusão pensar que a intervenção governamental possa se guiar pelas leis do planejamento e da necessidade coletiva. Tome-se uma entidade como o Banco Nacional de Habitação como exemplo. Ele expressa a intervenção governamental para reunir uma soma extraordinária de poupanças individuais com a finalidade de ampliar um mercado para a indústria privada da construção civil. A crescente participação estatal na economia se faz acompanhar de uma assistência cada vez maior ao capitalismo decadente do país, coisa que [pode] ser evidenciada pelo aumento acelerado dos créditos e financiamentos públicos ao setor privado.
O Estado não tem, pois, um papel independente na economia. Mas o peso de sua intervenção deixa marcas no regime. Do ponto de vista político a mais importante é a fragilidade da burguesia enquanto classe, sua dependência dos financiamentos estatais. O próprio processo de centralização de capitais é, de certa forma, orientado pelo Estado e, assim, os setores monopolistas que tomam as rédeas do poder político utilizam-no para acelerar a monopolização em seu proveito.
Leia o texto na íntegra em pdf:
Formação e natureza da ditadura militar – Informe Nacional n° 13 POC Julho 1969