Ucrânia: o antagonismo inter-capitalista se exacerba (I)
O CVM reproduz uma série de reportagens sobre a crise na Ucrânia publicadas em Carta Capital, de autoria de Antonio Luiz M. C. Costa.
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Carta Capital Edição 789 – 05 de março de 2014
por Antonio Luiz M. C. Costa
Ucrânia: Se o novo regime não contiver seus radicais, arrisca uma intervenção e uma crise mundial.
Quando Viktor Yanukovich deixou Kiev, governadores aliados se reuniram em Kharkov e ameaçaram não acatar o novo governo que se formava na capital, produto de um misto de revolta popular regional, militância direitista e golpe de Estado. Mais tarde, os governadores de Kharkov e Donetsk, as duas principais regiões do leste, fizeram declarações mais conciliadoras em prol da unidade, em aparente sinal de estarem dispostos à acomodação se o governo pró-ocidental em Kiev os respeitar. Não se fala de secessão fora da Crimeia, onde parece estar refugiado o presidente deposto, mas seria muita credulidade pensar que a crise está encerrada e o risco de de guerra civil definitivamente eliminado. Seria mais ingênuo ainda pensar no que aconteceu como uma vitória da democracia.
Que havia corrupção e autoritarismo no governo de Yanukovich, não é preciso insistir, ante as mortes de 82 manifestantes pelas quais seus inimigos querem vê-lo ser julgado em Haia e as imagens da mansão luxuosa que obteve por meios obscuros e agora se tornou um dos pontos turísticos da capital. O ex-presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, diz tê-lo ouvido se gabar do quanto abusava dos cofres públicos na Assembleia-Geral da ONU de 2011, perto dele e de vários líderes de ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central.
Mas os que o depuseram não parecem melhores. A ex-primeira-ministra e ex-candidata presidencial derrotada do partido “Pátria”, Yulia Timoshenko, foi libertada da prisão em Kharkov e recebida como heroína em Kiev quando seu rival deposto fazia o caminho contrário, mas as acusações que a levaram à cadeia não foram totalmente falsificadas. Beneficiária das privatizações selvagens da era pós-soviética, enriqueceu nos anos 1990 como “pricesa do gás” ao se apoderar da orincipal distribuidora de combustíveis do país, posição da qual ela e seus sócios e parentes notoriamente abusaram para construir um império industrial, financeiro e de transportes. Seu ex-sócio e ex-primeiro-ministro Pavlo Lazarenko se apoderou ilegalmente de 200 milhões de dólares, foi preso na Suíça e depois julgado e condenado nos Estados Unidos por extorsão, fraude e lavagem de dinheiro. Ele e Timoshenko foram acusados pelos assassinatos de ao menos dois outros empresários.
A ponta de lança das manifestações violentas, convém sempre lembrar, foi formada por militantes da ultradireita. Quando a antiga oposição assumiu o controle de Kiev, o rabino Moshe Reuven Azman fechou os colégios judaicos e aconselhou aos judeus deixarem a cidade e se possível o país, citando as constantes ameaças às instituições judaicas. Em janeiro, um professor e um aluno de uma yeshivá foram espancados e esfaqueados por mascarados.
Aleksandr Muzychko, uma das lideranças do partido Setor Direita promete desde 2007 lutas contra “os comunistas, os judeus e os russos”, mas mesmo essa agremiação diz não compartilhar as ideias racistas do partido “Liberdade” (cujo símbolo é claramente neonazista) o terceiro mais importante da frente contra Yanukovich. Ambos agora desfraldam em frente ao parlamento a bandeira negra e vermelha do nacionalista Exército Insurgente da Ucrânia, grupo formado em 1941 que ofereceu apoio aos nazistas contra Stalin e mesmo rejeitado (os nazistas queriam os ucranianos como escravos, não aliados) continuou a considerar a União Soviética a principal inimiga. Seus seguidores derrubam e depredam não só estátuas de Lenin, como também monumentos que derrotaram Adolf Hitler e Napoleão. Por sua iniciativa o novo governo proibiu rádios t tevês russas de transmitir na Ucrânia e aboliu uma lei de 2012 que permitia aos governos locais usar as línguas predominantes em suas regiões (russo, no sul e no leste), medida criticada tanto pela Rússia quanto pelo chanceler luxemburguês Jean Asselborn, representante da União Européia.
Não se trata, portanto, de uma história de mocinhos e bandidos. Yanukovich, assim como Vladimir Putin, desconfia do Ocidente e do liberalismo, mas não tem nada de socialista, embora tenha sido apoiado pelos comunistas locais contra a oposição de ultradireita. Trata-se de uma disputa entre facções de oligarcas, cada uma dos quais tem bases populares, étnicas e regionais divergentes e está comprometida com diferentes alianças internacionais. As regiões do sul e leste da Ucrânia são cultural e economicamente mais vinculadas à Rússia e na maior parte falam russo, enquanto aquelas do norte e oeste falam ucraniano e estão mais ligadas ao Ocidente. Quando manifestantes derrubam estátuas de Lenin em Kiev ou prometem protegê-las em Kharkov e Sebastopol, não é por representarem o bolchevismo, e sim a ligação histórica da Ucrânia com a Rússia.
Como aponta, porém, o pensador Immanuel Wallerstein, a questão não é apenas se a Ucrânia se filiará a Bruxelas ou a Moscou. Um vídeo provavelmente obtido pela espionagem russa, mas de autenticidade indiscutível, mostra a subsecretária de Estado dos EUA para a Europa, Victoria Nuland, em uma discussão sobre a Ucrânia com embaixador de Washington em Kiev, na qual seu ponto é “que se f**** os europeus” – não os russos – ao se opor à participação do ex-pugilista Vitali Klitschko, líder do partido Reforma (o mais centrista da oposição), no futuro governo. O verdadeiro propósito de Nuland para prevenir uma aliança geopolítica Paris-Berlim-Moscou, formada tanto em torno da complementação energética quanto da concorrência com a Parceria Transpacífica articulada por Washington com seus aliados da Ásia, América Latina e Oceania.
Nem as tensões internas nem as externas vão desaparecer com um eventual acordo provisório. Em atos de legalidade duvidosa, deputados de oposição e desertores do Partido das Regiões depuseram Yanukovich, escolheram Aleksandr Turnichov (homemde confiança de Timoshenko) como presidente interino e marcaram eleições para 25 de maio, coincidindo com as eleições europeias, mas não podem fazer desaparecer da noite para o dia a metade dos cidadãos que desconfiam do Ocidente e do nacionalismo ucraniano, falam russo ou mesmo (na Crimeia) se consideram inteiramente russos. Nem têm como tentar convencê-los de que Bruxelas vai lhes trazer prosperidade no futuro previsível. A União Europeia vai esperar por um governo estável para assinar qualquer acordo comercial ou oferecer ajuda financeira e aceitar a Ucrânia como membro está fora de cogitação, dado o tamanho do país, a fragilidade de sua economia e o veto de França, Alemanha e Holanda a novas ampliações.
Segundo um diplomata europeu anônimo ouvido pela France Presse, “os europeus precisam convencer Moscou a aceitar que não controla mais Kiev e convencer os ucranianos a aceitar que Moscou manterá sua base naval na Crimeia e sua influência no leste russófono”. Os nacionalistas parecem, porém, pouco dispostos a transigir com a realpolitik depois de terem feito do patriotismo ucraniano (ou de sua versão da Ucrânia) uma causa sagrada e uma questão de vida ou morte, sem meio-termos. Os governadores do leste podem estar dispostos a aceitar um governo liderado pelo oeste, mas não a erradicação de suas bases e interesses. E na Crimeia, que pertenceu à Rússia até 1954 e tem uma população que se considera russa, há ampla rejeição ao novo regime. Em Sebastopol, abrigo de uma das principais bases navais da Rússia (com 25 mil fuzileiros e acordo de concessão renovado por Yanukovich até 2042), o prefeito nomeado por Kiev foi deposto e um empresário local com cidadania russa escolhido pela Câmara em seu lugar. O chefe de polícia prometeu recusar “ordens criminosas” do governo central e comícios locais de até 20 mil participantes queimaram bandeiras ucranianas e pediram a reintegração da região à Rússia, enquanto a minoria tártara local se contramanifestava em apoio ao novo regime.
Quando as regiões da Abcázia e Ossétia do Sul pediram separação da Geórgia, Moscou não hesitou em reconhecer sua “independência”, enviar tropas e anexá-las na prática. A Crimeia é estrategicamente muito mais importante. Se o novo regime ucraniano tentar se impor a ela pela força ou, pior, tentar expulsar os russos de sua base, é praticamente certo que Putin intervirá. Sequer um “ataque preventivo” está fora de questão. Reforços russos forma levados de avião e navio a Sebastopol e as tropas das regiões do centro e oeste da Rússia forma postas em alerta no dia 26 como “teste de prontidão para o combate”. Além disso, a Ucrânia depende da Rússia para seu abastecimento de gás, crítico no inverno.
Moscou, cujo primeiro-ministro, Dmitri Medvedev, exortou Yanukovich a “não ser capacho” e resistir, pôs em dúvida a legitimidade de sua deposição e acusou o novo regime de métodos “ditatoriais e terroristas”, deve estar disposta a preservar seus interesses estratégicos na Ucrânia. Mas, se a exaltação nacionalista da Ucrânia ocidental não aceitar seus limites, os russos não vão cruzar os braços. O risco de uma guerra civil à iugoslava se combinaria, neste caso, com o de um confronto direto com a Otan.