Ucrânia: o antagonismo inter-capitalista se exacerba (II)

O CVM publica a segunda matéria sobre a crise na Ucrânia de autoria de Antonio Luiz M. C. Costa, de Carta Capital.

A REDEFINIÇÃO DO PODER MUNDIAL
Carta Capital Edição 790 – 12 de março de 2014

por Antonio Luiz M. C. Costa

Vladimir Putin “está fora da realidade, em outro mundo”, comentou a alemã Angela Merkel com Barak Obama ao telefone, segundo o New York Times, depois do fracasso em persuadir o presidente russo a recuar na Ucrânia. Se tomada ao pé da letra, a frase seria mais que alarmante: o líder da segunda potência nuclear do mundo age irracionalmente, ficou louco? Obviamente, não é o caso. O comportamento de Putin pode ser desagradável, mas é racional. Conversou por horas com líderes ocidentais, aceitou negociações e investigação da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa proposta por Merkel e evitou violência.

Mas ele e os líderes ocidentais não jogam pelas mesmas regras. Merkel e a maioria de seus pares agem como quem joga Banco Imobiliário. Livra-se de Viktor Yanukovich com uma carta de “sorte ou revés”, “compra” a Praça Maidan com a proposta de acordo comercial e ajuda financeira (11 bilhões de euros, equivalentes aos 15 bilhões de dólares oferecidos pela Rússia à Ucrânia para cancelar o acordo com a União Europeia) e se julga no direito de construir e cobrar pedágio. Para Putin, o tabuleiro ainda é de xadrez e a manobra do Ocidente aliado à oposição ucraniana foi uma ameaça de xeque em duas jogadas a exigir resposta imediata.

Para o Kremlin, uma Ucrânia ainda independente e neutra não seria problema. Mas, em janeiro de 2008, o então presidente ucraniano Viktor Yoshchenko, a premier Yulia Timoshenko (atual candidata presidencial) e o presidente do Parlamento, Arseniy Yatsenyuk (atual premier), pediram formalmente a incorporação da Ucrânia à Otan. Houve protestos de ucranianos pró-russos, França e Alemanha não quiseram provocar a Rússia e a própria Otan decidiu, em abril, não aceitar por então a proposta. O governo pró-ocidental continuou a buscar essa aproximação até 2010, quando Yanukovich venceu a eleição presidencial. Com a volta de Timoshenko e seus aliados ao poder, desarquivar a proposta seria questão de tempo.

Para a Rússia, que não é um sócio menor dos Estados Unidos como os demais membros do G-8, e sim um rival disposto a disputar espaço e eventualmente desafiá-los, isso é inaceitável. A Ucrânia é relativamente grande, maior do que qualquer país da Europa Ocidental. A fronteira sul-ocidental é formada pelos Montes Cárpatos, que oferecem certa proteção contra, que oferecem certa proteção contra uma invasão militar e estão a mais de mil quilômetros da capital russa, mas a oriental é uma linha traçada na planície a cerca de 450 quilômetros de Moscou. Uma Ucrânia aliada à Otan reduziria a menos da metade o percurso de um exército ocidental disposto a tomar o Kremlin, eliminaria os obstáculos físicos e permitiria mísseis a menos de meia hora de voo da capital russa. Em 2008, a proposta de antimísseis na Polônia, a 1,3 mil quilômetros de Moscou, já enfurecia Putin. Em 5 de março, o chanceler russo Segey Lavrov alegou ao colega espanhol ter informações de que o novo regime ucraniano ofereceu hospedar defesas dos EUA em troca de ajuda econômica.

O litoral da Ucrânia, especialmente Sebastopol, é a principal base da Marinha russa desde 1783 e continuou a sê-lo mesmo após a independência do país, ao qual aliás, a Crimeia foi incorporada apenas em 1954, por uma manobra interna de Nikita Kruchev, que fez sua carreira política na Ucrânia, como líder soviético. Em 2007, ante o risco de que o governo de Yushchenko e Timoshenko não renovasse a concessão de Sebastopol que venceria em 2017, Putin iniciou a construção de uma base em Novorossiysk, no litoral russo do Mar Negro, mas esta será muito inferior. Tem menos profundidade e proteção natural e a área comercial do porto deixa pouco espaço à Marinha de Guerra. Para Yanukovich renovar a concessão até 2042, por estreita maioria, foi uma importante vitória russa.

Perder a Crimeia para Otan seria um golpe severo nas pretensões da Rússia (que negocia bases navais em Cuba, Nicarágua, Venezuela, Vietnã, Ilhas Seychelles e Cingapura, além da já existente na Síria) de desempenhar papel global, como mostrou a ação decisiva da Armada ao bloquear a intervenção ocidental na Síria. E daria aos porta-aviões e submarinos dos Estados Unidos a oportunidade de operar a apenas mil quilômetros da capital russa.

Hipocrisias à parte, a reação russa, certamente preparada com certa antecedência, deveria ter sido prevista e provavelmente o seria se a inteligência dos EUA não estivesse mais ocupada em bisbilhotar cidadãos, jornalistas e segredos comerciais de supostos aliados. Em 27 de fevereiro, milícias armadas pró-russas (autodenominadas “forças de autodefesa”, eufemismo também usados pelos neonazistas armados da EuroMaidan) tomaram o Parlamento regional da Crimeia em um mini-Maidan às avessas. Em seguida, 64 dos 100 deputados regionais destituíram o governador nomeado por Yanukovich, elegeram um empresário com cidadania russa, Sergey Aksyonov, e marcaram um plebiscito, inicialmente sobre “independência como Estado e parte da Ucrânia” para 25 de maio, mesma data das eleições presidenciais da Ucrânia marcadas por Kiev e das eleições para o Parlamento Europeu.

Simultaneamente, tropas e blindados russos já presentes em Sebastopol foram deslocados para outros pontos estratégicos da Crimeia e mais 6 mil soldados desenbarcaram na península, trazidos em aviões de transporte de tropas e helicópteros. Somaram-se ao 15 mil já presentes sem violar o teto de 25 mil que a concessão autoriza a Rússia a manter na região. Bases ucranianas foram cercadas e comandantes militares locais intimados a entregar base e navios e aderir aos russos. Ou, formalmente, jurar fidelidade ao governo pró-russo da Crimeia.

Alguns o fizeram, dos quais o mais notável foi o contra-almirante Denis Berezovsky. Nomeado comandante da Marinha ucraniana por Kiev em 1º de março, desertou e jurou lealdade ao governo crimeano no dia seguinte, entregando-lhe a base naval ucraniana em Sebastopol e assumindo o comando de sua nova Marinha. Outros permaneceram leais a Kiev, mas  pouco puderam fazer. Na base aérea de Belbek, tomada na maior parte por um grupo de militantes pró-russos, um grupo de soldados ucranianos desarmados tentou em 4 de março recuperar o arsenal. Um dos “russos” deu um tiro de advertência- o primeiro registrados desde o início da ocupação da Crimeia – e os ucranianos recuaram. Mais tarde, fizeram um acordo pelo qual alguns ucranianos entraram para, simbolicamente, montar guarda ao depósito de armas.

Ao que tudo indica, militares russos presentes nas bases da Crimeia forneceram equipamentos a russófilos locais, misturaram-se a eles e trocaram os uniformes oficiais pelos trajes improvisados das milícias de modo que a distinção se tornou imprecisa, se não fictícia. Muitos desses “homesns armados” genéricos ahem como soldados disciplinados e usam veículos militares com placas russas(mais especificamente do norte do Cáucaso, notou um jornalista).

Ao mesmo tempo, Putin fez o Parlamento russo aprovar uma autorização para invadir a Ucrânia e exercitou tropas perto da fronteira com sua presença. Manifestações e rebeliões com bandeiras russas foram registradas em cidades do sul e leste da Ucrânia, notadamente Kharkov, Odessa, Mariupol, Dnepropetrovsk e Donestsk. Nesta última, a Cãmara Municipal rejeitou o governador nomeado por Kiev (proprietário de uma das grandes siderúrgicas da região) e convocou um referendo similar ao da Crimeia. As tropas de Moscou não apareceram, mas jornais ocidentais viram “turistas” russos nos protestos.

Direta ou indiretamente, a Rússia adquiriu o “completo controle operacional” da Crimeia, como admitiu o governo dos Estados Unidos em 3 de março. No mesmo dia, o primeiro- ministro russo, Dmitri Medvedev, assinou um decreto autorizando a empreiteira estatal Avtodor a construir a ponte entre a Rússia e Crimeia pelo Estreito de Kersh. Negociada em dezembro com Yanukovich, provavelmente seria cancelada pelo novo governo.

No dia seguinte, Putin, até então silencioso, esclareceuseu ponto de vista em uma entrevista coletiva. Segundo ele, o novo governo ucraniano é produto de um golpe de força orquestrado p-elo Ocidente (o que muito tem de exagero) e a substituição de um grupo de escroques por outro (o que é bem verdade). Se fosse uma “revolução” como quer o Ocidente, a Rússia não teria obrigações para com o novo Estado – alusão ao memorando de Budapeste de 1994, no qual prometeu respeitar a integridade territorial da Ucrânia em troca de seu desarmamento nuclear. Portanto, Yanukovich é legalmente o presidente da Ucrânia – e uma carta sua, pedindo a intervenção da Rússia, foi exibida por Lavrov – o que não impediu Putin de tratá-lo com desprezo. Informou ter-lhe dito que não tem futuro político, lamentou a corrupção na Ucrânia “excessiva até pelos padrões russos” e chegou a manifestar simpatia pela indignação dos manifestantes da EuroMaidan. Mas avisou que não reconheceria as eleições de 25 de maio em “clima de terror” e sugeriu um referendo constitucional em primeiro lugar. Culpou os próprios líderes da rebelião pela morte de manifestantes e talvez não seja mera propaganda. Na quarta-feira 5, surgiu na internet uma gravação obtida pela inteligência russa na qual o chanceler estoniano Urmas Paet diz à chanceler europeia Catherine Ashton ter ouvido que os franco atiradores não eram de Yanukovich, e sim de “alguém da nova coalizão”. A gravação é autêntica, admitiu Paet, mas negou acreditar na informação que transmitia.

Putin deu de ombros ante o cancelamento da reunião do G-8 em Sochi e a ameaça de outras sanções do Ocidente. Quanto à acusação de violar as leis internacionais, foi-lhe fácil apontar que o Ocidente agiu da mesma maneira do Afeganistão, Iraque e Líbia. Nesse ponto, é difícil não lhe dar razão: ao declarar na tevê no domingo 2 que “não se pode agir à moda do século XIX no século XXI e invadir outro país com pretextos forjados”, John Kerry foi a piada do dia. A acusação de incentivar o separatismo também é hipócrita por parte do Ocidente, que não hesitou em promover a independência do Kosovo da Sérvia. Questão mais séria é que, com sua nova postura, a Rússia esvazia o discurso de respeito à soberania e não interferência em assuntos internos invocados em outras ocasiões, inclusive na Síria, para se arrogar o direito de intervir para seus interesses em nome dos direitos humanos, ou ao menos os de cidadãos russos (ou pró-russos, ou russófilos) de países vizinhos – perspectiva alarmante patra algumas das ex-repúblicas soviéticas, principalmente os paízes bálticos.

Dos atos e palavras pode-se concluir que o Kremlin considera a Crimeia inegociável. Quer um governo local sob sua proteção. Quant ao resto da Ucrânia, “todas as opções continuam na mesa”, como gostam de dizer Obama e Kerry à Síria e ao Irã. A pistola continua fora do coldre, mas não necessariamente para ser usada. Putin espera um acordo pacífico que garanta a neutralidade do país e os interesses regionais dos russos e seus aliados. A opinião pública da Rússia o apoia, mas não vê o risco de guerra com bons olhos. A maioria aceita a versão russa dos acontecimentos, mas a decisão de intervir na Ucrânia foi impopular. Putin só sairá fortalecido se puder proclamar vitória sem derramar (muito) sangue ou causar danos graves à economia.

Aparentemente, tem chances de atingir seus objetivos. Os EUA querem sanções à Rússia, mas suas relações com o país são demasiado distantes para afetá-lo mais que superficialmente. Só a Europa está em posição de prejudicar seriamente os interesses russos, mas seus principais líderes não têm a intenção de fazê-lo. A maior parte da Europa continental, especialmente a Alemanha, precisa dos recursos russos (principalmente gás natural, insubstituível a curto prazo) e do mercado russo para colocar boa parte de suas exportações. O Reino Unido não tem esse tipo de dependência, mas tem outra mais crucial: seu mercado financeiro depende das aplicações dos milionários russos. O Guardian vazou  um documento, no qual David Cameron rejeita qualquer sanção comercial que afete a City e admite apenas restrições de viagens e vistos a funcionários do Kremlin.

A “finlandização” da Ucrânia é sugerida há anos por estrategistas ocidentais e foi lembrada nos últimos dias por Zbigniw Brzezinski, ex-conselheiro de Jimmy Carter, e Henry Kissinger, ex-secretário de Estado de Richard Nixon e Gerald Ford. É uma alusão à situação da Finlândia durante a Guerra Fria: o país se comprometeu a permanecer neutro, manter forças armadas limitadas, não permitir tropas ocidentais e, se necessário, pedir ajuda soviética para expulsá-las. Em troca, teve a independência no comércio exterior e assuntos internos. Merkel, por sua vez, propôs na segunda-feira 3 uma estrutura federal para a Ucrânia, também de acordo com as pretensões russas. Tornar permanente a concessãorussa em Sebastopol também não seria absurdo. Os Estados Unidos têm condições semelhantes em Guantánamo e os britânicos em Chipre.

Isso poderia ser aceitável para a maioria dos ucranianos. Uma pesquisa de fevereiro indicou que 68% desejavam uma relação especial com a Rússia, com fronteiras abertas e sem vistos ou alfândegas, 12,5% a anexação e 14,7% a independência total. O problema é que, como diz Kissinger, “a Ucrânia esteve sob governo estrangeiro desde o século XIV e foi independente por apenas 23 anos. Seus líderes não aprenderam a arte do compromisso, muito menos perspectiva histórica”. A breve história da Ucrânia independente é a de facções tentando impor sua vontade ao país, o que os acontecimentos recentes apenas exacerbaram.

De um lado, o governo provisório de Kiev, pela primeira vez na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, admite fascistas declarados, fanaticamente antirrussos, em seu ministério – Andriy Parubiy, do Liberdade, na Segurança Nacional, e Dmytro Yarosh, do Setor de Direita, na Defesa. Do outro, os pró-russos da Crimeia votaram na quinta-feira 6 a própria incorporação à Rússia e a adoção do rublo como moeda, além de remarcar a consulta, agora sobre a anexação, para 16 de março. Não está claro se isso tem a chancela de Putin, mas certamente não ajuda a caminhar para um acordo, amenos que seja um desses proverbiais bodes a serem retirados da sala no momento oportuno. Ou um mero aviso de que, se o governo da Ucrânia não transigir, terá de dar adeus à Crimeia.

Mesmo que não se chegue a um acordo amigável, a ideia de uma nova Guerra Fria é inadequada. As analogias com as intervenções soviéticas na Hungria de 1956 e na Tchecoslováquia de 1968 são improprias, tanto pela ausência de causas ideológicas quanto pela falta de disposição russa de marchar sobre Kiev. Ao contrário de Kruchev e Leonid Brejnev, Putin depende de apoio popular e de um sistema ao menos formalmente democrático. Também é inadequada a analogia com a anexação dos Sudetos pelo III Reich em 1938, a não ser quanto ao pretexto: Adolf Hitler alegou a proteção das minorias alemãs na Tchecoslováquia, assim como Putin diz proteger os russos na Crimeia. Mas são muito diferentes os contextos ideológicos e estratégicos. A Rússia não avança sobre o Ocidente, defende bases e influência preexistentes contra uma manobra pró-ocidental.

Ainda assim, é um momento importante de redefinição geopolítica. Cadáveres insepultos, o G-8 e a ficção de uma globalização neoliberal sob hegemonia de Washington vão para o túmulo. Os EUA ainda precisam da colaboração da Rússia para estabilizar a situação no Oriente Médio, mas a relação vai esfriar. Moscou provavelmente assumirá a rivalidade e o mundo se polarizará mais claramente entre o G-7 e o BRICS, mesmo que a China permaneça neutra neste episódio. A rivalidade entre pretensões nacionais são mais parecidas com as tensões anteriores à Primeira Guerra Mundial, quando os conflitos se armavam em torno de interesses nacionais e comerciais nus e crus, e não por ideais políticos.

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