Como me tornei socialista

Jack London (1876-1916) do site  do Coletivo Avante

 

Pode-se dizer que me tornei um socialista de maneira similar à dos pagãos teutônicos ao cristianismo – à força. Não apenas eu não procurava o socialismo na época da minha conversão, mas lutava contra ele. Eu era demasiado jovem e inexperiente, não sabia nada de coisa alguma e, apesar de nunca ter ouvido falar de uma escola de pensamento chamada “individualismo”, cantava o hino dos fortes com todo o meu coração.

Isso porque eu próprio era forte. Por forte quero dizer que tinha boa saúde e músculos rijos, ambas características que podem ser facilmente explicadas. Vivi minha infância nos ranchos da Califórnia, vendendo jornais nas ruas de uma próspera cidade do Oeste e passei minha juventude nas águas saturadas de ozônio da Baía de San Francisco e do Oceano Pacífico. Amava a vida a céu aberto, desempenhando as tarefas mais difíceis. Sem aprender nenhum ofício, mas pulando de emprego em emprego, observava o mundo e gostava dele em todos os sentidos. Deixe-me repetir: esse otimismo existia por que eu era forte e saudável, nunca experimentando dores nem debilidades, nunca sendo recusado por um patrão por não aparentar estar em boas condições físicas, sempre capaz de obter trabalho nas minas de carvão, como marinheiro ou como trabalhador braçal de qualquer espécie.

Por tudo isso, exultante em minha juventude, capaz de me defender bem, tanto no trabalho como nas brigas, eu era um feroz individualista. E isso era muito natural. Eu era um vencedor. Por conseguinte, considerava o jogo, da forma como era jogado, muito apropriado para HOMENS. Ser HOMEM significava escrever em letras maiúsculas no meu coração. Arriscar-me como homem, lutar como homem, fazer o trabalho de homem (mesmo que com o salário de menino) – essas eram coisas que me tocavam profundamente e ficavam gravadas em mim como nenhuma outra. E eu olhava adiante as amplas paisagens de um futuro nebuloso e interminável, em direção ao qual – jogando o que eu considerava um jogo de homens –, continuaria a viajar com uma saúde inquebrantável sem acidentes, e com os músculos sempre vigorosos. Como digo, esse futuro era interminável. Podia ver-me apenas avançando pela vida sem fim como uma das feras louras de Nietszche, perambulando lascivamente e triunfando pela simples superioridade e força.

Quanto aos desafortunados, aos doentes, aos que sofrem, aos velhos e aos aleijados, devo confessar que raramente pensava neles, a não ser que vagamente achasse que estes, salvo acidentes, poderiam ser tão bons quanto eu e trabalhar igualmente tão bem, se realmente o desejassem. Acidentes? Bem, eles representavam o DESTINO, também soletrado com letras maiúsculas, e não havia modo de se esquivar do DESTINO. Napoleão sofreu um acidente em Waterloo, mas isso não tirou meu desejo de ser outro Napoleão. Além disso, o otimismo, vindo de um estômago que podia digerir pedaços de ferro moído e de um corpo que florescera de uma vida dura, não me permitia considerar que acidentes tivessem qualquer relação, mesmo que remota, com minha personalidade gloriosa. Espero ter deixado claro que eu tinha orgulho de ser um daqueles seres eleitos da Natureza. A dignidade do trabalho era para mim a coisa mais impressionante do mundo. Sem ter lido Carlyle ou Kipling, formulei um evangelho do trabalho que varriam os deles “no chinelo”. O trabalho era duro. Era a santificação ou a salvação. O orgulho que sentia depois de um dia de trabalho árduo e bem feito seria algo incompreensível para os demais. Ë quase inconcebível para mim quando penso nisso agora. Nunca um capitalista explorou um escravo do salário tão fiel quanto eu. Embromar ou ludibriar o homem que me pagava o salário era um pecado, primeiro contra mim mesmo, e depois contra ele. Para mim era um crime que vinha logo atrás da traição, mas tão ruim quanto.

Resumindo, meu individualismo entusiasta era dominado pela ética ortodoxa burguesa. Eu lia os jornais burgueses, ouvia os pregadores burgueses e repetia plenitudes sonoras dos políticos burgueses. E não duvido que – se outros eventos não tivessem mudado minha trajetória -, viesse a me transformar num fura-greves profissional (um dos heróis do reitor Eliot), e tivesse minha cabeça e minha capacidade de trabalho irremediavelmente esmagadas por um porrete nas mãos de algum sindicalista militante.

Por essa época, voltando de uma viagem que durara sete meses, e logo após ter completado dezoito anos de idade, pus na cabeça a ideia de que iria vagabundar. Em vagões de passageiros ou compartimentos de carga, desbravei meu caminho pela vasta região Oeste, onde os homens trabalhavam duro e os empregos procuravam as pessoas, até os congestionados centros operários da região Leste, onde os homens tinham pouco valor e davam tudo que tinham para conseguir trabalho. E nesta nova aventura de fera loura, comecei a ver a vida de um ângulo novo e totalmente diferente. Eu havia descido da condição de proletário para o que os sociólogos chamam de “porção submersa”, e comecei a descobrir a maneira como aquela porção submersa era recrutada.

Lá encontrei todo tipo de homens, muitos dos quais haviam sido algum dia tão bons e tão feras louras quanto eu: marinheiros, soldados, operários, todos estropiados, comidos e desfigurados pelo trabalho, pelas agruras e pelos acidentes e dispensados por seus patrões como cavalos velhos. Com eles mendiguei nas ruas, pedi comida nas portas dos fundos das casas e senti frio em vagões de trens e parques da cidade, ouvindo as histórias de vidas, que começavam sob auspícios tão favoráveis como os meus, com estômagos e corpos iguais ou melhores do que os meus, e que terminavam ali, diante de meus olhos, arruinados, no fundo do Abismo Social.

E enquanto eu ouvia, meu cérebro começava a funcionar. A mulher das ruas e o homem da sarjeta se tornaram muito próximos de mim. Vi a imagem do Abismo Social vividamente, como se fosse algo concreto. Eu os observava lá no fundo do abismo, um pouco acima deles, agarrando-me às paredes escorregadias com todo o suor e a força de minhas unhas. E confesso que um medo terrível se apoderou de mim. E se acabasse minha força? E quando me tornasse incapaz de trabalhar lado a lado com os homens fortes que ainda estavam por nascer? Aí, então, fiz um juramento. Era algo mais ou menos assim: Todos os dias tenho trabalhado até a exaustão com meu corpo e apesar do número de dias que trabalhei, cheguei bem próximo do fundo do Abismo. Deverei sair dele, mas não com os músculos do meu corpo. Não vou nunca mais trabalhar como trabalhei e que Deus me fulmine se um dia eu der de mim mais do que o meu corpo pode dar. E desde então tenho me dedicado a fugir do trabalho duro.

A propósito, enquanto vagabundava por umas 10.000 milhas pelos Estados Unidos e Canadá, entrei na cidade de Niágara Falis, fui pego por um policial à caça de multas, tive negado o direito de me declarar culpado ou inocente, fui imediatamente sentenciado a trinta dias de prisão por não ter residência fixa ou meio aparente de subsistência, algemado e acorrentado a um grupo em situação similar, despachado para Buffalo e registrado na penitenciária do condado de Erie; meu cabelo e meu incipiente bigodinho foram raspados, fui vestido com o uniforme de prisioneiro, vacinado compulsoriamente por um estudante de medicina que praticava em pessoas como nós, obrigado a marchar em fila e a trabalhar sob a vigilância de guardas armados com rifles Winchester – tudo isso por ter me lançado em aventuras ao estilo das feras louras. Para mais detalhes, esta testemunha declara-se muda, embora se possa desconfiar que seu exultante patriotismo tenha se evaporado um pouco e vazado por alguma fresta no fundo de sua alma – pelo menos, desde que passou por essa experiência, já se deu conta de que se interessa muito mais por homens, mulheres e criancinhas do que por linhas geográficas imaginárias.

Voltando a minha conversão. Acho que aparentemente meu individualismo feroz foi efetivamente extraído de mim e foi-me inculcada outra coisa, de forma igualmente eficaz. Mas, assim como eu havia sido um individualista sem saber, era agora um socialista sem saber, ou seja, um socialista não científico. Eu havia renascido, mas não havia sido rebatizado, e andava à toa por aí, tentando descobrir o que de fato era. Voltei para a Califórnia e abri os livros. Não me recordo quais abri primeiro. Este é um detalhe sem importância, de qualquer forma. Eu já era isso, seja lá o que isso fosse, e com a ajuda dos livros descobri que isso era ser socialista. Desde aquele dia abri muitos livros, mas nenhum argumento econômico  nenhuma demonstração lúcida da lógica e da inevitabilidade do socialismo me afeta tão profundamente e tão convincentemente como o dia em que vi pela primeira vez os muros do Abismo Social se erguerem à minha volta e me senti escorregando, escorregando, para as ruínas que se amontoavam lá no fundo.

Jack London, 1903.

. . . . . . . . . . . . . . . . .
Nota biográfica, por John Griffit.

Jack London nasceu em San Francisco, Califórnia, EUA, em 12/01/1876. Romancista e jornalista, filho de uma família pobre cujo pai saiu de casa quando soube que a esposa estava grávida, teve uma infância terrivelmente difícil. Abandonou a escola aos 14 anos para trabalhar numa fábrica de enlatados, depois foi jornaleiro, varredor, balconista e na adolescência viveu uma experiência duríssima como empregado numa tecelagem de juta. Em maio de 1893, aos 17 anos, retornando de sua primeira grande viagem marítima (que o conduzira ao Japão e às ilhas Bonin), encontrou-se economicamente quebrado. Viu-se então forçado a aceitar o mais terrível emprego da sua vida, numa tecelagem de juta: dez horas por dia a dez cents à hora. Um conto sobre um tufão na costa do Japão, premiado com 25 dólares pelo San Francisco Morning Call, livrou-o dessa situação. A experiência de oito meses, porém, deixou-lhe marcas profundas.

Em 1894, depois da tecelagem e do trabalho igualmente mal pago numa usina elétrica, sentiu que já era tempo de pegar a estrada. A decisão se deu quando, banhando-se num rio em Sacramento, ele encontrou uma gangue de “road kids“, garotos estradeiros. “As aventuras que eles contavam faziam minha experiência como pirata de ostras parecer histórias da carochinha”, anotou em seu diário. Então, com os novos amigos, ele aprendeu a saltar nos trens de carga e neles cruzou os Estados Unidos. As viagens de trem conduziram Jack às exuberantes cataratas do Niágara.

Em julho de 1894, quando visitava as quedas, ele foi preso por vagabundagem e enviado para a Penitenciária de Erie County, em Buffalo, Nova Iorque. Viveu um mês entre assassinos, facínoras e escroques. Inimigo ferrenho do capitalismo, odiava a ganância que impulsionava o desenvolvimento da América. Sua infância sacrificada, a adolescência rebelde e a experiência na prisão deram-lhe profundas convicções socialistas. Viveu no Klondike, Canadá, no ano de 1897, durante a Corrida do Ouro.

Após isso, decidiu “viver do cérebro” deixando de lado “o poder do músculo” e tornou-se escritor. Seu primeiro conto, The son of the wolf (1900), descreve a luta de um homem num meio hostil, e fez grande sucesso desde o seu lançamento. Seus romances manifestam quase sempre o conflito entre o acentuado individualismo do autor e seus anseios por reformas sociais. Em seguida publicou O Chamado da floresta, considerado a mais famosa história de cachorro já escrita. Navegou durante anos por terras distantes. Essas experiências de viagem, mais tarde, lhe inspiraram contos e romances que o tornaram famoso, com seu estilo típico de relatar os aspectos brutais e vigorosos da vida. Operário, catador de ostras clandestino, revolucionário marxista, dono de uma mal-sucedida fábrica de sucos, correspondente de guerramarinheirominerador de ouro, escritor best-seller, vagabundo…

London carregava consigo a imagem de um homem de ação. Diferentemente de alguns de seus sucessores entusiasmados pelos cenários urbanos, como F. Scott Fitzgerald ou os beatniks, ele preferia os perigos da natureza, nas geleiras no alto-mar ou nas selvas tropicais. Bebedor imoderado, não tardou a sentir os efeitos da vida intensa e desregrada. Após sofrer muito tempo de uremia, suicidou-se aos 40 anos, ingerindo uma overdose de morfina, em sua fazenda de Glenn Ellen, Califórnia (chamada de Casa do Lobo). Outras obras: The Sea-Wolf (O Lobo do Mar) (1904); White Fang (Caninos Brancos) (1906); Adventure (1911;The Scarlet Plague (1912): trad. portuguesaA Praga Escarlate); The Star Rover (O Andarilho das Estrelas) (1915); Jerry of the Islands(1917); Hearts of Three (1920). Faleceu em 22/11/1916.

Faça seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *