Sobre a Intervenção Soviética no Afeganistão

Érico Sachs
publicado em “Qual é a herança da Revolução Russa?” Ed. Segrac, 1988

Nota do CVM: com o recente retorno do Talibã ao poder no Afeganistão, é oportuna a publicação desta análise de Érico Sachs sobre o período histórico em que as tropas soviéticas ocupavam este país.

 

 

A retirada das tropas soviéticas do Afeganistão está sendo exigida tanto pela diplomacia do imperialismo norte-americano e europeu quanto pelos porta-vozes da Segunda Internacional e a composição desta frente única em si já daria para desconfiar. Acontece, todavia, que a mesma reivindicação encontra apoio não só em certos partidos eurocomunistas, que se adaptam à política parlamentar-democrática, como mesmo em certos grupos da esquerda tidos como revolucionários. O que nos preocupa é justamente a confusão que a intervenção soviética criou nesse campo.

Uma avaliação dos acontecimentos naquela parte do mundo, do ponto de vista revolucionário (isto é, do ponto de vista do combate ao capitalismo e imperialismo), tem que levar em conta diversos fatores. Antes de tudo, o desenrolar da situação interna naquele país, da revolução afegã. Em segundo lugar, o papel que o Afeganistão desempenha no confronto mundial de dois sistemas sociais, do capitalismo versus mundo socialista. Terceiro, o estado das relações entre a União Soviética e o Afeganistão no passado. E por último, mas por isso não menos importante, a repercussão que a intervenção soviética tem sobre a luta do proletariado mundial e a causa do comunismo.

É preciso partir do fato que a revolução afegã é um produto legítimo da evolução interna do país, que procura romper as cadeias da idade média muçulmana, semifeudal e em parte pré-feudal, isto é, tribal. A queda da monarquia foi o primeiro passo nesse sentido, mas o governo de Daud foi a tentativa de salvar o máximo possível das antigas estruturas e dos privilégios das classes dominantes. Nesse intuito tentou reprimir o movimento revolucionário das cidades e o resultado foi a revolução de 1978. O partido Khalque, que liderou essa revolução em aliança com os jovens oficiais das Forças Armadas, dificilmente pode ser considerado um partido comunista. Originário das classes médias das cidades (num país onde a classe operária é praticamente inexistente ainda), o Khalque se assemelha mais – e isso diz respeito a todas as suas facções – a um movimento nacional-revolucionário, que nos áureos tempos do Comintern eram admitidos como “partidos simpatizantes”.

Não há dúvida que o Khalque, no seu empenho de levar a revolução para frente o mais depressa possível, não soube avaliar as relações de forças internas. Decretou uma reforma agrária sem mobilização e participação das massas camponesas e sem criar uma infraestrutura material para a continuidade da produção. No seu empenho de educar o povo, ofendeu gratuitamente tradições muçulmanas próprias ao país e facilitou dessa maneira a liderança dos mulás interior. Transformou grande parte do país numa vasta “Vendéia” e levou a revolução a um beco sem saída – o que explica o acirramento das lutas de facção no próprio Khalque.

É preciso ver que esse desenrolar das coisas criou fatos consumados para a própria União Soviética. É muito simplório querer explicar a revolução afegã com produto da “intromissão soviética”. O interesse nacional da União Soviética não exigia nem a eliminação da monarquia nem a eliminação do governo de Daud. Moscou se deu bem com ambos os regimes. Dispunha de força material, no pós-guerra, para assegurar a sua presença no país fronteiriço e para evitar que se tornasse ponto de partida de agressões imperialistas, como tinha sido o caso com o Irã, Paquistão e outros. A fórmula diplomática da eliminação da influência ocidental era o “neutralismo afegão”.

A própria revolução no país vizinho, entretanto, obrigou os burocratas de Moscou a tomar posição e apoiar as forças revolucionárias. Com o aguçamento das contradições no Afeganistão, a polarização interna começava a refletir os antagonismos mundiais, resultados do confronto de dois sistemas sociais em escala mundial. Com o apoio ativo do Imperialismo às forças contrarrevolucionárias, uma volta ao “neutralismo” não é mais possível. Uma derrota da revolução levaria o Afeganistão a uma dependência direta do campo imperialista.

Estes são os fatos consumados, mas fatos consumados não invalidam críticas. Estas, todavia, não podem consistir no coro ocidental. Para o processo revolucionário mundial, a presença de tropas soviéticas no Afeganistão não é um fator negativo, em si. Críticas merece a maneira como se deu, e os argumentos primitivos com que foi justificada. A ação soviética deu ao mundo a impressão de que o novo governo foi instalado nas pontas das baionetas soviéticas e forneceu pretextos que permitiram aos Estados Unidos obter o apoio do mundo subdesenvolvido e semicolonial na ONU. Revalorizaram regimes desmoralizados, como o do Paquistão e da Arábia Saudita e permitiram ao imperialismo americano estabelecer bases que ameaçam as revoluções da Etiópia e do Iêmen. Permitiram aos EUA desviar a atenção do mundo da derrota que sofreram no Irã e reforçaram a posição das forças conservadoras iranianas no intuito de encontrar uma sana para a crise. O oportunismo da política externa soviética, que se antecipou a uma agressão norte-americana contra o Irã, permitiu aos EUA se refazerem parcialmente das derrotas sofridas na região. Prestou um serviço ao Governo Carter, permitindo-o adiar represálias militares contra o Irã. A realização destas, entretanto, teriam permitido ao mundo, à classe operária do Ocidente, e mesmo a grande parte do povo afegão, ver a presença soviética como medida defensiva.

A crítica aos métodos empregados pela URSS não nos leva, portanto, a esquecer de que o Afeganistão vive um processo revolucionário e que o apoio à revolução afegã implica em reconhecer o papel histórico dos soviéticos no desenvolvimento desta revolução.

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