Consertar o clima – simplesmente não é lucrativo
Michael Roberts – 23.06.24
Em 2023, foi a primeira vez na história registrada que a temperatura da superfície global do planeta ultrapassou 2,0°C acima da linha de base do IPCC de 1850-1900. Além disso, mais de 90% dos oceanos do mundo sofreram ondas de calor, as geleiras perderam o maior número de gelo já registrado e a extensão do gelo marinho da Antártida caiu para muito além dos níveis mais baixos já medidos.
E o mês passado marcou um ano inteiro de temperaturas globais recordes, com maio de 2024 classificando-se como o maio mais quente já registrado. As temperaturas dos oceanos da Terra também estabeleceram um recorde pelo 14º mês consecutivo, de acordo com dados e cientistas dos Centros Nacionais de Informação Ambiental da NOAA. De acordo com o Global Annual Temperature Rankings Outlook do NCEI, há 50% de chance de que 2024 seja classificado como o ano mais quente já registrado e 100% de chance de que ele fique entre os cinco primeiros.
A tendência atual das emissões de dióxido de carbono (a principal causa do aquecimento global e das mudanças climáticas) sugere que a temperatura média da superfície da Terra ultrapassará facilmente os 1,5ºC acima do limite da meta de referência estabelecida pela Conferência do Clima de Paris de 2015 até o final desta década. De fato, sem uma ação muito mais drástica, as emissões de CO2 estão caminhando para pelo menos 1,8ºC acima da linha de base até meados deste século ou antes. O chefe climático da ONU, Simon Stiell, disse que o planeta está a caminho de um aumento “catastroficamente alto” da temperatura global de 2,7ºC desde a era industrial.
O que fazer? Há uma série de tecnologias sendo propostas para controlar as emissões de carbono e até mesmo capturar o CO2 existente e retirá-lo da atmosfera. Além disso, o impulso para “eliminar” a produção de combustíveis fósseis e substituí-la pelas chamadas renováveis (eólica, solar, hídrica etc.) é o apelo das “potências constituídas”, retomado na última conferência internacional do clima, a COP28. E o investimento em energia limpa é agora quase o dobro dos combustíveis fósseis.
Mas ainda não é suficiente. A produção de combustíveis fósseis não está sendo “eliminada” com a rapidez suficiente e as energias renováveis não estão substituindo os combustíveis fósseis com a rapidez suficiente. A Agência Internacional de Energia Renovável estima que uma média de 1.000 gigawatts de capacidade de energia renovável precisa ser construída globalmente todos os anos até 2030. Mas os planos mundiais de energia limpa (e são apenas planos) ainda estão quase um terço aquém do necessário para chegar a esse número.
E para atingir o nível necessário de investimento, o financiamento climático precisará aumentar para cerca de US$ 9 trilhões por ano globalmente até 2030, ante pouco menos de US$ 1,3 trilhão em 2021-22, de acordo com a Climate Policy Initiative.
Esse financiamento simplesmente não está ocorrendo. Os países ricos finalmente cumpriram sua meta de entregar míseros US$ 100 bilhões em financiamento climático às nações mais pobres em 2022 – dois anos depois do prometido. Além disso, na última década, os fluxos públicos impulsionaram a maior parte do crescimento das transferências relacionadas ao clima para os países mais pobres. A ajuda governamental ou o financiamento de bancos multilaterais de desenvolvimento quase dobraram entre 2013 e 2022, de US$ 38 bilhões para US$ 83 bilhões no total. Mas o financiamento climático privado foi “teimosamente baixo”, com apenas US$ 21,9 bilhões em 2022, de acordo com a OCDE.
E mesmo esse financiamento público foi exagerado. Isso porque parte do dinheiro foi retirado dos orçamentos de ajuda externa existentes, e parte do que é contabilizado como financiamento climático inclui fundos alocados principalmente em projetos de desenvolvimento, como saúde e educação, com apenas benefícios tangenciais para o clima. Se todas essas somas forem retiradas, então apenas US$ 21-24,5 bilhões dos US$ 83 bilhões permanecerão como financiamento climático puro sem restrições, de acordo com a Oxfam em seu Climate Finance Shadow Report 2023.
Por que a meta climática não está sendo cumprida? Por que não vem o financiamento necessário? Não é o preço de custo das renováveis. Os preços das energias renováveis caíram drasticamente nos últimos anos. O problema é que os governos estão insistindo que o investimento privado deve liderar o impulso para a energia renovável. Mas o investimento privado só ocorre se for rentável investir.
A rentabilidade é o problema – de duas maneiras. Em primeiro lugar, a rentabilidade média global está em níveis baixos e, portanto, o crescimento do investimento em tudo também diminuiu. Em segundo lugar, ironicamente e contraditoriamente, o menor investimento e o crescimento do PIB vão desacelerar a expansão das emissões de carbono, reduzindo o uso de energia de combustíveis fósseis. Um estudo recente de 18 países que conseguiram “atingir o pico e diminuir” suas emissões de carbono no período 2002-2015 demonstrou que um dos principais motores desse processo – responsável por 36% da queda nas emissões em média – foi a diminuição do uso de energia, que resultou, em parte, do “baixo crescimento do PIB de cerca de 1%” (Le Quéré et al., 2019: 215). À medida que a taxa de crescimento do PIB se aproxima de zero, dissociar absolutamente o crescimento das emissões de carbono torna-se mais viável (Schroder e Storm, 2020).
Mas, por outro lado, os preços mais baixos das renováveis arrastam para baixo a rentabilidade desses investimentos. A fabricação de painéis solares está sofrendo um severo aperto nos lucros, juntamente com os operadores de fazendas solares. Isso revela a contradição fundamental no investimento capitalista entre reduzir custos por meio de maior produtividade e desacelerar o investimento por causa da queda da lucratividade.
Esta é a mensagem-chave de mais um excelente livro de Brett Christophers, The Price is Wrong – why capitalism won’t save the planet (O Preço está Errado – por que o capitalismo não vai salvar o planeta). Christophers argumenta que não é o preço das energias renováveis versus a energia dos combustíveis fósseis que é o obstáculo ao cumprimento das metas de investimento para limitar o aquecimento global. É a rentabilidade das energias renováveis em comparação com a produção de combustíveis fósseis.
No caso das renováveis, os principais tomadores de decisão são as empresas de energia, outros desenvolvedores e, em particular, as instituições financeiras cujas decisões sobre avançar ou não o capital de investimento, e a que custo, determinam em última instância se os projetos de parques solares e eólicos prosseguem ou não. Qual é, portanto, a questão primordial na mente desses financiadores quando apresentados a propostas de investimento por incorporadores de energias renováveis? É o seguinte: vou receber meu dinheiro de volta, e com um nível aceitável de retorno financeiro? A resposta básica para essa pergunta é, claro: apenas, geralmente, se o projeto for lucrativo.”
Christophers mostra que, em um país como a Suécia, a energia eólica pode ser produzida muito barata. Mas o próprio barateamento dos custos também deprime seu potencial de receita. Essa contradição aumentou os argumentos das empresas de combustíveis fósseis de que a produção de petróleo e gás não pode ser eliminada rapidamente. Peter Martin, economista-chefe da Wood Mackenzie, explicou de outra forma: “o aumento do custo de capital tem implicações profundas para as indústrias de energia e recursos naturais“, e que taxas mais altas “afetam desproporcionalmente as energias renováveis e a energia nuclear por causa de sua alta intensidade de capital e baixo lucro“.
Como Christophers aponta, a rentabilidade do petróleo e do gás tem sido geralmente muito maior do que a das renováveis e isso explica por que, nas décadas de 1980 e 1990, as grandes empresas de petróleo e gás fecharam sem cerimônia seus primeiros empreendimentos nas energias renováveis quase assim que as lançaram. “O mesmo cálculo comparativo explica igualmente por que hoje as mesmas empresas estão migrando para a energia limpa em ritmo não mais do que a de uma lesma“.
Christophers cita o CEO da Shell, Wael Sawan, em resposta a uma pergunta sobre se ele considerava os lucros mais baixos das renováveis aceitáveis para sua empresa:
“Acho que sobre baixo carbono, permita-me ser, na minha opinião, categórico nisso. Vamos buscar lucros fortes em qualquer negócio em que entramos. Não podemos justificar a opção por um ganho baixo. Nossos acionistas merecem nos ver indo atrás de lucros altos. Se não conseguirmos alcançar os lucros de dois dígitos em um negócio, precisamos questionar muito se devemos continuar nesse negócio. Com certeza, queremos continuar a apostar em emissões cada vez mais baixas e mais baixas, mas tem de ser rentável.”
Por essas razões, os economistas do banco JP Morgan concluem que “o mundo precisa de um “choque de realidade” em sua mudança dos combustíveis fósseis para a energia renovável, dizendo que pode levar “gerações” para atingir as metas líquidas zero [NT: zero de emissão de carbono]. O JPMorgan avalia que mudar o sistema energético mundial “é um processo que deve ser medido em décadas, ou gerações, não anos“. Isto porque o investimento em energias renováveis “oferece atualmente ganhos inferiores“.
As grandes empresas de combustíveis fósseis martelam esse ponto. O presidente-executivo da produtora de petróleo Chevron disse ao Financial Times em outubro passado. “Você pode construir cenários, mas vivemos no mundo real e temos que alocar capital para atender às demandas do mundo real.” Quatro em cada cinco executivos de empresas consideraram “a capacidade de criar retornos aceitáveis em projetos uma das principais barreiras à descarbonização do sistema energético“. “Devemos abandonar a fantasia de eliminar gradualmente o petróleo e o gás e, em vez disso, investir neles refletindo adequadamente as suposições realistas de demanda“, diz Amin Nasser, presidente-executivo da Saudi Aramco. “Você pode discutir ecologia o dia todo e ONGs o dia todo, mas esses são os fatos. Acho que essa mensagem está começando a ressoar.” disse Liam Mallon, chefe do negócio de upstream da ExxonMobil.
Sem surpresa, descobrimos que o JPMorgan é um dos principais financiadores de projetos de combustíveis fósseis. O banco subscreveu US$ 101 bilhões em acordos de combustíveis fósseis em 2021 e 2022, em comparação com US$ 71 bilhões em acordos de baixo carbono. JPMorgan Chase, Mizuho e Bank of America foram apontados como os maiores financiadores da indústria de combustíveis fósseis no ano passado, em um relatório de ativistas climáticos que calcula que os maiores bancos do mundo forneceram um total de US$ 6,9 trilhões ao setor nos oito anos desde o acordo climático de Paris.
Christophers conclui que “se o capital privado, circulando nos mercados, ainda não está conseguindo descarbonizar a geração global de eletricidade com rapidez suficiente, mesmo com todo o apoio que recebeu e está recebendo dos governos, e mesmo com os custos de tecnologia tendo caído tão longe e tão rápido quanto eles, é certamente um sinal tão claro quanto possível de que o capital não foi projetado para fazer o trabalho“.
Em vez disso, Christophers argumenta que, se quisermos alcançar reduções rápidas nas emissões de carbono, “a propriedade pública extensiva de ativos de energia renovável parece o modelo mais viável“. Acrescento que isso também deve exigir a propriedade pública dos produtores de combustíveis fósseis para garantir qualquer transição rápida.
Enquanto isso, o planeta continua a aquecer a um ritmo alarmante.
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