Boletim de Conjuntura Nacional Nº 4 – março de 2014

2014: EM COMPASSO DE ESPERA

As manifestações de junho do ano passado deixaram evidente que o pavio da luta de classes está novamente aceso no Brasil. Em setembro do mesmo ano, as agências de classificação de risco para investimentos externos sinalizaram que o país poderia ser “rebaixado”. Ambos fatos apontam para o esgotamento da política de colaboração de classes entre trabalho e capital promovido pelo governo Dilma Roussef, sustentado na coalizão entre PT e PMDB, com apoio da CUT e outras centrais sindicais. No final do ano, o pêndulo do governo deslocou-se mais à direita, com o abandono de veleidades reformistas e concessões nítidas às pressões do capital financeiro, bem como às forças da direita que exigem o reforçamento da ordem política contra os protestos de rua. Num cenário sem uma oposição partidária capaz de ameaçar imediatamente a reeleição de Dilma, iniciamos o ano de 2014 em compasso de espera. Mais pairam no ar incertezas e ameaças a direitos e conquistas das classes trabalhadoras que elas precisam estar preparadas para enfrentar. 

1. Qual o sentido maior das manifestações populares de junho do ano passado?

O descontentamento social de alguns segmentos das classes trabalhadoras surpreendeu o governo de coalizão PT-PMDB porque partia de suas próprias bases sociais apoio. Com um projeto para se manter no poder pelo menos até 2022, a reeleição de Dilma e a vitória na eleição seguinte, em 2018, dependeriam de manter e ampliar essas bases sociais, aliás enquadradas numa suposta classe média emergente. Daí certa decepção expressa por Luiz Inácio Lula da Silva – no momento em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do ABC, aliás uma criação de seu governo – de que, tendo garantido o ingresso na universidade dos filhos da geração que fez o sindicalismo nos anos 1970 e 1980, eles, uma vez formados, não foram “agradecidos”. Do contrário, afirmou Lula, “ele vai para a rua fazer manifestação contra você”.

A solução para viabilizar o sucesso do projeto político é clara; vai na direção da continuidade do crescimento econômico e qualificação dos empregos: “Nós precisamos continuar nos matando para garantir que, depois de formado, ele possa aperfeiçoar seus estudos e (conquiste) o emprego do sonho dele. Quando ele conseguir isso, pode estar certa de que ele não vai mais sair para passeata” (O Globo, 04/12/2013: “Lula sugere que PT continuará na Presidência até 2022”). Esse cenário supõe o conformismo das classes trabalhadoras, tendo por pressuposto o emprego, a expansão da massa salarial e do consumo e endividamento dos trabalhadores. Uma forma de dizer: consome e cala a boca.

O problema é que a tentativa de alcançar esse objetivo com a política econômica vigente até aquele momento fracassou. A política de desonerações tributárias, o controle dos preços administrados e o aumento do gasto público não conseguiram mais do que impulsionar em 2,3% o crescimento do Produto Interno Bruto, graças ao desempenho da agropecuária (7%), frente ao baixo desempenho dos serviços (2%) e da indústria (1,3%). Eis um quadro comparativo das taxas de crescimento do PIB desde 2002:

Brasil: variação histórica do PIB
Taxa de Crescimento AnualFonte: IBGE

A situação econômica, vista pelo lado das relações com a economia mundial, definida como transações correntes ou contas externas, agravou-se de modo inédito: segundo o Banco Central, atingiu um déficit de US$ 81,37 bilhões, equivalente a um resultado negativo de 3,6% do PIB, o mais baixo desempenho desde 2001, quando chegou a 4,2% do PIB. Quer dizer que os resultados da balança comercial (diferença entre exportações e importações) e das operações de entrada e saída de capital apontam para a deterioração deste importante indicador econômico.  Mais grave, porque os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) em 2013 não foram suficientes para cobrir o déficit na conta corrente do ano.

Podemos entender, então, o motivo pelo qual as agências de risco, fiéis intérpretes dos interesses do capital financeiro, ameaçaram rebaixar o nível de classificação do Brasil em matéria de segurança para investimentos externos.

2. Como essas contradições se expressaram politicamente?

A reticência dos grupos empresariais em apoiar financeiramente a campanha de Dilma e a emergência de uma possível aliança entre Marina Silva e Eduardo Campos “acenderam as luzes vermelhas” para Lula e a cúpula dirigente do PT (Valor Econômico, 1, 2 e 3/11/2013: “A difícil missão de Lula para 2014”, p. A2). Quem deu o tom da resposta a esta ameaça foi novamente aquele que continua a ser a eminência governante, Lula. O que acarretou mudança de rumos, com um deslocamento do pêndulo governamental mais à direita.

Assim, assistimos, no segundo semestre de 2013, em matéria de política econômica, ao leilão de privatização dos novos campos de pré-sal, com a garantia imediata de aplicação dos recursos do leilão para sustentar a dívida pública, a abertura do capital do Banco do Brasil para aplicadores “externos”, leilões de concessões de areoportos e rodovias ao setor privado e o bloqueio da pauta do Congresso em torno do aumento salarial para os agentes comunitários de saúde e outros gastos sociais, como o aumento do repasse da União para o fundo de participação dos municípios.

Em matéria de política, Lula desqualificou as manifestações populares sob o argumento de que protestos se fazem por meio das eleições e não nas ruas: “Vá disputar a eleição porque fora da política não tem solução”. (UOL Notícias, 23/07/2013) O governo Dilma respaldou esta posição mas foi além, ao apoiar a campanha direitista a favor de uma legislação repressiva especial, com juizado volante nas manifestações e a articulação entre as forças de repressão do Rio de Janeiro e São Paulo.

3. E quanto à burguesia, como se posicionou frente ao governo?

A burguesia é como o patriciado diante dos plebeus em Roma antiga: pode tolerá-los, jamais os aceita. Tolera o governo de coalizão do PT com o PMDB tendo claro que este último é o fiel da balança política, até o momento em que seus interesses são ameaçados. Mas a cada passo, a cada manobra, a burguesia pressiona para que o governo ceda mais e mais se identifique com seus interesses de classe.

É assim que o PT está a “descobrir”, a reboque das relações de forças vigentes na sociedade, que o Brasil continua a ser um país capitalista integrado ao sistema imperialista sob a égide americana e que precisa desvencilhar-se da ilusão de que se possa encaminhar uma política econômica voltada a privilegiar a “produção da riqueza” em detrimento do capital financeiro.

Este é um dos preços a pagar por querer administrar politicamente os negócios da burguesia tentando conseguir, ao mesmo tempo, pequenas concessões materiais para as classes trabalhadoras. Outro tem a ver com o reforçamento repressivo sob a democracia burguesa.

4. Assim é que entramos em 2014.

O primeiro ato político do ano se deu em janeiro com a divulgação de uma nota no Portal do Brasil, de que o Ministério da Defesa aprovou o “Manual Unificado das Forças Armadas”. Trata-se de um documento que orienta a ação das Forças Armadas para Garantia da Lei e da Ordem em situações em que a segurança pública esteja ameaçada. A intervenção das tropas do exército já se fizeram presentes por ocasião do Leilão do Campo de Libra pela Petrobrás, algo que pode vir a acontecer agora numa proporção maior com a Copa do Mundo, de modo a deixar claro que o Brasil é um país seguro para o turismo e o investimento internacional. Para isso a democracia burguesa no Brasil conta com recursos para enfrentar as manifestações que eventualmente possam questionar a ordem social: o estado de defesa ou “estado de sítio parcial” constante no artigo 136 da Constituição.

Esta sombra do poder repressivo se projeta também sobre outras as manifestações populares, como a ocupação dos shoppings (“rolezinhos”) em São Paulo e grande região metropolitana, mas foi marcada principalmente depois dos enfrentamentos de rua decorrentes do aumento da tarifa pública dos ônibus pelo prefeito do Rio de janeiro,  Eduardo Paes, uma nítida provocação pois foi a única prefeitura a aumentar o preço das passagens naquele momento.

Após um cinegrafista ter sido atingido acidentalmente por um manifestante, a imprensa burguesa desencadeou uma prolongada e intensa campanha a favor do endurecimento da repressão contra os Blaks Blocs. No episódio ficou patente, por outro lado, como este grupo que se pauta por ser uma simples tática de auto-defesa das manifestações populares, além do equívoco de impor-se aos movimentos, é incapaz de sustentar uma luta organizada e de impedir infiltrações em seu próprio meio.  Tornaram-se, assim, alvos de manipulação entre as duas facções que, dentro da Polícia Militar, representam as candidaturas de Luiz Fernando Pezão, candidato do PMDB, e de Anthony Garotinho, do Partido da República, ao governo do Estado do Rio de Janeiro em 2014.

Do ponto de vista governamental, por enquanto as manifestações de rua constituem um desfio político menor, para o qual, como vimos, julga estar preparado. Somente a entrada da classe operária na cena política, por seus próprios métodos, poderia alterar este quadro. Mas as lutas tem se mantido nos limites das reivindicações econômicas por categorias, de um modo geral sob controle de sindicatos alinhados com o governo e os patrões.

Em decorrência, o governo Dilma fica de mãos livres para resolver problemas de maior urgência, como a reforma ministerial necessária por conta de que vários ministros são candidatos a cargos nas eleições em outubro de 2014. O que está em jogo aí é a distribuição dos cargos no poder executivo capaz de assegurar os esquemas políticos estaduais na reeleição de Dilma, a exemplo do Ministério da Integração Nacional. O PMDB, por meio do grupo parlamentar de Eduardo Cunha, mais uma vez procura aumentar seu poder dentro da coalizão com a ameaça de ruptura!

– Risco de apagão

Outro desafio, este mais difícil de solucionar no curto prazo, diz respeito às definições em matéria de política econômica para tentar acelerar o crescimento da economia, devido a diminuição das margens de manobra desde o final de 2013. Exemplo deste desafio é o “risco energético” por conta da prolongada estiagem: o problema é que os níveis dos reservatórios das hidrelétricas estão muito baixos, o sistema de distribuição de energia passou a ser operada com a oferta das usinas termoelétricas, acionadas apenas em situações de emergência por conta do repasse dos custos à população mediante reajuste das tarifas e/ou da transferência de recursos do Tesouro Nacional às distribuidoras. Mas na primeira hipótese a inflação irá aumentar e o Banco Central terá de aumentar a taxa de juros, implicando em menor crescimento econômico; noutra, aumentará o gasto público, deteriorando as contas públicas. Também aqui o país parece estar no compasso de espera de um “milagre natural”, a saber a chegada das chamadas “águas de março”.

Para o governo de coalizão PT-PMDB é fundamental que o país, se não voltar a crescer economicamente a taxas mais elevadas, pelo menos entre em compasso de espera, dois à frente, dois atrás até que a apuração dos votos, se possível no primeiro turno, com a preferência do eleitorado pela coalizão, possibilitem avançar mais claramente…à direita.

5. Na situação de conjunto há um ponto não debatido publicamente, mas alvo de discussões entre economistas na imprensa burguesa especializada. As baixas taxas de crescimento desde 2010 apontam para a necessidade imperiosa de aumentar a “competitividade” da indústria. De acordo com o economista Luiz Gonzaga Belluzo, a política de desonerações e juros mais baixos praticados pelo governo Dilma foi “muito defensiva e pouco eficaz” (Valor Econômico, 05/02/2014). Um sinal nesta direção é a discussão entre os pequenos e médios capitalistas industriais de São Paulo sobre a oportunidade de seguir o movimento já em curso de transferir seus capitais para o Paraguai, onde os custos de produção, principalmente da força de trabalho são muito mais baixos. O economista defende que os reajustes salariais precisam ser pactuados, de modo a acompanhar o aumento da produtividade, “uma regra que não pode ser violada em uma economia em que se tem competição e concorrência externa”. Tradução: uma nova etapa de acumulação de capital pressupõe o aumento da taxa de exploração da força de trabalho. Ao que tudo indica também uma medida como esta entrará no compasso de espera neste ano de 2014. Mas tal possibilidade precisa ser tratada como um desafio posto aos direitos e conquistas parciais das classes trabalhadoras, a ser discutida pelos ativistas nas fábricas e empresas.

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Boletim de Conjuntura Nacional N° 4 – março de 2014

 

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