Cordón Cerrillos e Poder Proletário no Chile em 1972

Artigo publicado na Revista “LES  TEMPS  MODERNES”  N. 347 JUNHO DE 1974

Eder Sader

Escrito em Agosto de 1973 para a revista« Marxisme et Révolution », este ensaio reflete, na sua introdução, linguagem e conclusão, um momento preciso da luta de classes no Chile. Creio, no entanto, que a análise mesma das condições de desenvolvimento do Cordón Cerrillos1 — o primeiro Cordón da região industrial chilena mais importante — permanece válida e necessária para compreender as características e os problemas da vanguarda operária face à criação de um duplo poder.

Nota do CVM: Leia também os textos O Chile entre a legalidade burguesa e a Revolução” e “Complemento ao documento: Chile entre a legalidade…“, ambos de Raul Villapseudônimo utilizado por Eder Sader em seus escritos políticos nas décadas de 60/70. O autor foi fundador e dirigente da ORM Política Operária até se exilar no Chile após o Ato Institucional Nº. 5. No Chile, militou nas organizações de esquerda, tendo sido dirigente do MIR – Movimiento de Isquerda Revolucionaria.

Há uma contradição em se querer um poder popular que respeite o Estado de direito: significa ao mesmo tempo reconhecer que esse poder tem a sua base fora do Estado e subestimar a sua realidade.

O programa de governo da Unidade Popular não vê contradição entre « poder popular » e « via legal ». A nova ordem surgiria da incorporação massiva do povo às instâncias do Estado chileno que, durante esse processo, se democratizaria e mudaria o seu caráter de classe. « É graças a um processo de democratização em todos os níveis e a uma mobilização organizada das massas que se construirá, a partir das bases, a nova estrutura de poder. Uma nova constituição institucionalizará a incorporação massiva do povo ao poder do Estado ». A mobilização popular mais revolucionária (na medida em que ela mudaria a natureza do Estado) poderia se realizar pelas vias institucionais.

Não se trata aqui de fazer crítica ideológica a essa concepção oportunista do Estado e da revolução, mas sobretudo de verificar concretamente o caminho pelo qual a classe operária e as mais amplas massas de trabalhadores criaram seus organismos de luta para a tomada do poder no Chile. É muito importante ver como as massas populares mobilizadas no âmbito da Unidade Popular conseguem gerar seus organismos fora dos mecanismos previstos pela estratégia original.

Os « cordones industriales »1os comitês coordenadores de lutas, os comandos comunais, não somente surgiram fora da institucionalidade em vigor, mas ao mesmo tempo demonstram uma firme vontade de transformá-la. Não é por acaso que os porta-vozes da burguesia se opõem tão radicalmente a esses organismos, mobilizando contra eles as forças armadas e apelando aos preconceitos mais obscurantistas das classes médias. Isso porque, com os seus primeiros passos no sentido da democracia direta, do controle operário da produção, da organização proletária da distribuição, da formação de uma aliança entre as classes exploradas, esses organismos despertam as mais profundas energias revolucionárias do proletariado e abrem uma perspectiva real para a luta pelo poder no Chile.

Os reformistas, ao quererem enquadrar esses organismos no interior das instituições estabelecidas, mostram-se incapazes de dirigir o exército mais poderoso das massas populares no enfrentamento social atual.

Estudamos o desenvolvimento e as perspectivas do «Cordón Cerrillos – Maipú » em 1972 (ver « Consejo Comu­nal de Trabajadores y Cordón Cerrillos-Maipú 1972 — Balance y perspectivas de un embrión de poder popular » de Cristina Cordero, Eder Sader, Mónica Threfall, CIDU… 1973), e é a partir desse estudo que pretendemos discutir algumas questões importantes para os desdobramentos do « cordón ».

 

Breve Relato dos Fatos

Em primeiro lugar, deve-se sublinhar a existência de uma tradição sindical na comuna. Isto é, fosse pela força particular de seus sindicatos , fosse pelas características peculiares da comuna (que chega a constituir praticamente uma região autonôma no interior de Santiago), nela começavam já a surgir embriões de articulação intersindical : a Comissão de Defesa das Liberdades Cívicas, o Departamento Sindical do Oeste, a CUT comunal. Mesmo se esses organismos não existiam mais ou não funcionavam mais, de qualquer forma, eles demonstravam uma tendência latente da classe.

A essa força operária, deve-se adicionar em 1972 dois novos elementos: uma onda de ocupação de terras pelos camponeses das áreas rurais da comuna, especialmente durante o mês de março, e também uma retomada do movimento reivindicatório dos “pobladores” – (basicamente relacionado à saúde, transportes e habitação). Em abril, os “pobladores” ocupam as ruas e atacam os ônibus em protesto contra a insuficiência dos meios de transporte.

Em abril e maio, uma vanguarda local constituída sobretudo por militantes socialistas teve a iniciativa da organização de um« Cabildo abierto »3, para que as pessoas pudessem discutir os problemas de habitação, transporte e saúde na comuna. A agitação se devia à incapacidade das instituições burguesas para dar uma resposta concreta a essas reivindicações elementares. É a partir daí que amadurece o projeto de um Conselho Comunal de Trabalhadores.

Em junho novo impulso de greves industriais, durante as quais os operários exigem a passagem das indústrias ao setor estatal (« setor social »). Para lutar juntos, os operários de Perlak, El Mono e Polycron se uniram. No dia 2 deste mês, os operários destas três empresas, bem como os do C.I.C. que também estão lutando, invadem o gabinete do Ministério do Trabalho para exercer pressão sobre as decisões. Uma semana mais tarde, os operários de trinta empresas reuniram-se para coordenar sua luta. Foi nessa reunião que se criou o “Comando de coordenação das lutas dos trabalhadores do Cordón Cerrillos-Maipú” . A principal reivindicação é a passagem das indústrias ao setor estatal. Decide-se então ocupar as vias de acesso à comuna para pressionar o governo que, nesse momento, após o conclave “Conclave de Lo Curro”,discutia com os democrata-cristãos a regulamentação dos três setores da economia. No dia seguinte, os trabalhadores das principais indústrias da comuna e os moradores de vários “campamentos”4, além de camponeses e estudantes, tomam as ruas. A força pública está presente, mas não se atreve a intervir diante da atitude decidida dos manifestantes. O governo cede. As massas adquirem confiança.

Em julho, o “cordón” se manifesta através de mobilizações contra os atrasos da passagem ao “setor de propriedade social” e contra o poder judiciário que condena os camponeses da cidade vizinha de Melipilla. Em julho, agosto e setembro, os conflitos operários continuam a crescer.

Mas o Partido Socialista se manifesta contra a Assembleia do Povo de Concepción. Este evento e também o medo de organizações paralelas provocam a saída de seus militantes do comando do « cordón ».

A conjuntura de outubro consolida nacionalmente essa mesma concepção do « cordón ». O exemplo de Cerrillos espalha-se por toda parte. Na própria comuna se desenvolvem as formas de controle da produção, bem como aquelas das “feiras populares”5, do controle da distribuição em algumas fábricas;  também vão se realizar as primeiras experiências maciças de defesa e vigilância. No entanto, o grande atraso existente na frente dos « pobladores » impede um maior desenvolvimento de novas formas de distribuição que tenham surgido nessa conjuntura em outras comunidades populares.

 

O Projeto do «Cordón».

A partir dessa descrição, podemos distinguir os aspectos-chave do « cordón » em 1972. As formas de luta utilizadas: ocupação de estradas, indústrias e edifícios públicos e pressão sobre as autoridades. As principais reivindicações: mudança das indústrias para o setor estatal, a sua defesa e seu uso classista (seja do poder interno, seja da distribuição dos bens industrializados). Os objetivos das vanguardas: a criação de um conselho comunal enquanto base loca de um conselho comunal enquanto base local de um poder popular. Os objetivos políticos mais imediatos: a mobilização operária e popular como principal meio para arrancar o poder à burguesia e decidir o caminho concreto para o socialismo através da luta de classes.

O Comitê de Coordenação das lutas do  Cordón Cerrillos-Maipú surgiu em junho de 1972 e sua criação revela o grau de maturidade política alcançado por setores importantes da vanguarda operária e também o apogeu de vários movimentos reivindicatórios da comuna. Isto significa que um projeto mais claro de poder revolucionário era canalizado por organismos sindicais e de “pobladores” que conduziam as lutas mais básicas por vias que iam além dos mecanismos tradicionais.

Desde novembro de 1970, o problema da tomada do poder político se coloca objetivamente para a classe operária. A crise da economia capitalista e da dominação burguesa no Chile se aprofundava com o controle do governo pela Unidade Popular que se apoiava sobretudo nos grandes partidos da classe operária. A divisão da burguesia e a ascensão do movimento de massas permitem que chegue ao Governo a UP, que por sua vez irá estimular a expansão e a radicalização do movimento de massas, o que impede a

burguesia de superar a sua crise econômica. Estes fatores caracterizam o período pré-revolucionário que se abre e coloca na ordem do dia a questão da tomada do poder.

No entanto, a forma de intervenção do proletariado em 1970 contribuiu para esconder os problemas reais que teria de enfrentar a classe operária em sua luta pelo poder. As experiências do primeiro ano do governo permitiram a conscientização das possibilidades abertas pelo governo da Unidade Popular. Primeiro, as lutas revelam uma classe dominante na defensiva e desorientada; seu aparato repressivo é quase neutralizado. Já desde aí se fazem sentir os benefícios de uma política popular no que diz respeito aos salários, serviços e democratização da vida pública. Então, progressivamente, com o esgotamento da política de redistribuição, percebem-se os limites de uma política popular no âmbito do regime capitalista. Ao mesmo tempo, começa-se a perceber que o governo não é uma garantia para a criação gradual de um poder popular: a opção pelos caminhos legais bloqueou seu projeto de assembléia do povo, deu ao projeto de gestão operária (“participação”) um simples papel de consulta, e estabeleceu severos limites ao projeto de controle de abastecimento (Junta de Abastecimento e Preços), para que este não pudesse intervir no comércio estabelecido.

Nem todos perceberam estes vários elementos desde o início. Obviamente, apenas a vanguarda dos diferentes sectores da esquerda revolucionária viu aí as condições a partir das quais os embriões de poder popular poderiam se formar. A relativa neutralização do aparelho repressivo, a crise econômica que força estratos sociais cada vez maiores a participar da luta, o aprofundamento do processo de construção de um grande setor estatal na economia, todos estes elementos abriram novas vias pelas quais se engajaram novas manifestações das massas de trabalhadores. A idéia que as unificava era a criação de conselhos comunais de trabalhadores, utilizando formas de ação direta para coordenar suas lutas.

Em Maipu essa concepção foi implementada principalmente segundo as estratégias do MIR e do PS.

 

Caráter do Movimento de Massas que Sustenta o « Cordón ».

Dissemos anteriormente que o projeto do conselho comunal dos trabalhadores estava no apogeu de vários movimentos de protesto. Examinemos sua importância e sentido.

O movimento camponês foi significativo em Maipu. Os solos de Maipu e de Barrancas estão entre os mais férteis do Chile e por isso 70% das hortaliças consumidas em Santiago são produzidas nessas duas comunas. A população rural é constituída por 5% dos habitantes da comuna. Havia três sindicatos de agricultores: dois com mais quatrocentos membros: « A Rinconada de Maipú », onde predomina o PS, e « El Abrazo de Maipú » onde predomina a D.C., e um terceiro sindicato contando trinta e cinco membros. O recrudescimento das tomadas de terras no começo do ano (que coincide com o mesmo fenômeno na comuna vizinha de Melipilla), produz uma grande mobilização dos camponeses que vão reforçar as suas organizações. O P.S. se fortalece durante este processo. Em 1972, oito das sessenta e três greves registradas pelos Carabineros em Maipu foram em propriedades rurais. Essa agitação nas áreas rurais ligadas ao movimento operário se manifestará pela presença de líderes camponeses – da « Rinconada de Maipú » – na organização do « cabildo » e, posteriormente, em várias reuniões do comando tanto nas agitações de rua como na realização de “feiras populares”5 contra o “lockout” de outubro de 1972, liderado pela burguesia.

O movimento de “pobladores” poderia ser importante, dada a defasagem entre a população residente na comuna e aquela que aí trabalha.

Segundo o censo de 1970, a comuna de Maipu tinha 117 mil habitantes. De acordo com uma pesquisa realizada em 1971, 12,4% de seus moradores trabalhavam na indústria, o que pode ser considerado um percentual elevado, levando-se em conta que essa percentagem é de 8% para a Grande Santiago; mas, por outro lado, isso prova que existe uma boa parte da população que não está relacionada à atividade industrial. Mais de 10 mil trabalhadores das indústrias e da construção civil provinham de outras comunas de Santiago, o que corresponde a mais ou menos a metade da sua força de trabalho na indústria e construção.

Certamente, um dos aspectos fundamentais das mobilizações da comuna seria o encontro entre esses trabalhadores e a população que vive na comuna mas não está empregada em suas indústrias. Esse encontro não seria fácil. Na comuna não se encontra nenhum dos « campamentos » que surgiram a partir das ocupações combativas das terras e que foram em outros lugares os centros de difusão da agitação revolucionária. Além disso, os resultados das eleições dos eleitos locais de 1971 mostram a predominância local do P.N. — 31 %, seguindo-se o P.S. — 29 %, a D.C. — 18 %, o P.C. — 15 %, o P.S.D. – 2,5% e o P.R., – 2,4%7. De qualquer forma, havia na comuna 22 « campamentos », com um total de 3.178 famílias.

O movimento dos « pobladores » não teve, durante 1972, um desenvolvimento relacionado com aquele das ocupações de terras: foram onze em 1970, nove em 1971 e cinco em 1972. Em abril e junho eles se mobilizaram sobre os problemas de transporte. No início de abril os « pobladores » dos « campamen­tos » « El Despertar » e « 3 de la Victoria » e os moradores das Unidades Residenciais Nos 13 e 15 se reuniram com outros líderes para discutir os problemas do transporte. Quem conduz a reunião são operários socialistas que vivem na cidade. No final de maio realizou-se um « cabildo » com a participação massiva dos« pobladores » do « El Despertar » e representantes sindicais da comuna, e a partir desse momento o Conselho de Saúde local foi ativado. Em junho, os « pobladores » ocupam a estrada de Pajaritos para protestar contra a falta de transporte. No final do mês muitos deles participarão ativamente na tomada da comuna. Após isso, os « pobladores » de « El Despertar » vão estar presentes nas reuniões do comando.

Assim, o momento da formação do comando coincide com o aumento das atividades locais dos agricultores e da frente dos« pobladores ». Mas o apogeu do movimento de massas que serviu de base ao comando é devido às lutas dos operários.

É sabido que os movimentos de greve no Chile estão em ascensão desde 1969. No ensaio de Emir Sader sobre a « Mobilización de Masas y sindicalización en el Gobierno de la U.P. » (C.E.S.C.O., 1973), encontramos estes números: 115 greves em 1967; 1124 em 1968;  977 em 1969;  1819 em 1970 e 2709 em 1971.

Durante o primeiro semestre de 1972, já tinha havido 1.763 greves. Nesse mesmo ano, os Carabineros registraram 63 greves só em Maipu, o que representa 9% do total de Santiago. Sua duração média no primeiro semestre foi de 6,4 dias, bem acima dos 3,7 dias que representam a duração média de greves nacionais.

Cerca de 40% das greves ocorreram nas indústrias metalúrgicas, segundo a tabela abaixo, que mostra os conflitos por setor:

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